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Por Que Espalhar Boatos Não Vai Te Levar a Lugar Algum

Originalmente publicado em Ano Zero

Alysson Augusto

Qualquer um que se preocupe com a verdade, está preocupado em combater boatos.

Há poucas semanas todos fomos pegos pela notícia de que a frase “Não temos provas, mas temos convicção” teria sido dita pelos procuradores de uma denúncia contra o ex-presidente Lula, o que não era verdade.

Mais recentemente, o Brasil acordou com a notícia de que o estudo da filosofia, sociologia e educação física deixaria de ser algo obrigatório no ensino médio, o que depois se revelou como um boato.

Longe de querer medir os prós e contras das repercussões dessas notícias falsas, minha preocupação aqui é óbvia: refletir sobre onde se encontra a verdade.

E encontrar a verdade não é algo que se faz de qualquer maneira, vendo o que queremos ver. Para encontrar a verdade, a primeira coisa a ser feita é simples: adotar uma postura filosófica. E então a clareza toma conta.

Boatos, história e tragédia

Vamos encarar um fato: nada é essencialmente ruim ou bom. Categorizamos as coisas, muitas vezes, de acordo com nossas preferências, mas mais do que a perspectiva que adotamos, o que definirá se algo é bom ou ruim são, rasamente, suas consequências.

Não se trata aqui daquele papo supostamente maquiavélico de que “os fins justificam os meios”. Se trata de perceber que são os meios que definem os fins, quando o que fazemos é espalhar boatos e fofocas por aí.

E isso pode ser exemplificado, ilustre e tristemente, em dois famosos casos.

A mentira contada mil vezes

Em outubro de 1897, nascia um menino chamado Paul. Paul, um jovem franzino, de baixa estatura e com o pé direito deformado, nasceu e se desenvolveu numa família alemã e cristã, que o imaginava como um futuro padre.

Quando jovem adulto, foi rejeitado pelo serviço militar para a Primeira Guerra Mundial, devido à sua deformidade, que o fazia coxear quando caminhava. Passou então para a carreira acadêmica, que o fez se afastar da igreja.

Mulherengo e perturbado, o já maduro Paul torna-se doutor por uma prestigiosa universidade com o apoio de intelectuais judeus, e mais tarde vem a ser jornalista de publicações anti-semitas e anti-comunistas.

Paul era ninguém menos que Paul Joseph Goebbels, um líder nazista alemão. Mais especificamente, o mais famoso e poderoso mestre da propaganda.

Joseph Goebbels discursando em Berlim.

Grande orador, Goebbels chegou a um posto de inestimável prestígio na Alemanha Nazista, respondendo diretamente tão somente a Hitler, do qual era braço-direito e que, para Goebbels, tratava-se de um “gênio”, digno de idolatria.

Para efetuar e manter sua posição, porém, Goebbels precisava seguir à risca a máxima que até hoje é a ele atribuída: “uma mentira contada mil vezes torna-se verdade.”

Definitivamente, ele sabia como mobilizar as massas, inflamá-las e manipulá-las a serviço da ideologia nazista – sua nova religião.

Conta-se inclusive que, com Hitler, ele provocava conflitos entre seus próprios subordinados, provocando a desconfiança e competição (“dividir para conquistar”), a fim de concentrar e maximizar seu poder.

Pulando todos os detalhes da vida de Goebbels, que pode ser lida no livro Joseph Goebbels, uma biografia, de Peter Longerich. O importante aqui é notar o poder destrutivo que ele atingiu tão somente por meio de boatos – contra judeus, comunistas e toda uma sorte de pessoas não-arianas.

A necessidade de fomentar exaustivamente mentiras em uma população, para poder controlá-la conforme seus interesses políticos, não o tornava exatamente um monstro, mas uma pessoa problemática, desejosa de status e reconhecimento, frágil e incapaz de lidar com seu próprio ego – tal como Hitler.

Na verdade, seu apego aos boatos e à desinformação foram tão destrutivos à sua própria vida que, quando Hitler se suicidou, pondo um fim à narrativa falsa do nazismo, Goebbels e sua mulher também o fizeram, num ato de amor incondicional a seu ídolo – bem como de egoísmo ao reconhecerem que o mundo os julgaria pelos seus crimes -, mas antes e cinicamente, Goebbels não hesitou em levar junto de si os seus seis filhos, os matando.

Goebbels viveu em cima de boatos, e morreu em função deles.

O boato mortal

A biografia do grande propagandista nazista é indiscutivelmente histórica e emblemática para minha crítica a boatos, mas vamos agora a uma abordagem mais cotidiana.

Em 2014, muitas pessoas estavam indignadas com a falta de segurança e de justiça na cidade do Guarujá, em São Paulo. Insufladas pelo desejo de um mundo mais justo, ansiavam pela penalização daqueles foras da lei das redondezas.

Acontece que o Estado é lento e burocrático demais para dar conta das demandas do povo por justiça, sendo insuficiente para os anseios da população. Por isso, iniciativas civis das mais variadas começaram a pipocar para divulgar problemas públicos e rostos de criminosos. Nascia então a página “Guarujá Alerta“.

Certo dia, tal página deu voz a um boato: o de que uma sequestradora estaria agindo em alguns bairros, raptando crianças que seriam usadas em rituais de magia negra. Não só isso: a página divulgou uma suposta imagem da criminosa para seus mais de 50 mil seguidores.

Retrato falado da suposta criminosa do Guarujá.

A mentira tornou-se conhecimento público, sendo replicada mais de mil vezes até ser vista como verdade, ganhando status de notícia para o povo leigo e que acredita em tudo o que vê na internet.

Boatos geram não apenas comentários, como também mais boatos.

Estava socialmente instaurado o desejo por justiça, nem que fosse pelas próprias mãos. Para conter os ânimos do povo sedento por sangue, precisava-se de um bode expiatório, alguém para apontar como demônio e expurgar de sua vida.

O nome desse alguém foi Fabiane Maria de Jesus.

Com 33 anos, casada, dona de casa e mãe de duas crianças, Fabiane foi confundida e apontada como a suposta criminosa, sendo linchada publicamente, com direito a vídeo gravado e postado nas redes sociais, com pessoas compartilhando com ares de “justiça feita”. (As cenas de sua morte são horríveis, portanto não busque assistir se você não quer perder a fé na humanidade). Fabiane Maria de Jesus, mãe inocente e trabalhadora, vítima de um mero boato de internet. E ela não foi a única. Outros 21 casos, pelo menos, foram registrados no mesmo ano.

Ceticismo: a defesa contra a mentira

Mostrei dois casos ilustres do poder maldito do boato. Mas apontar problemas é pouco satisfatório, é preciso que sejamos propositivos, e que apresentemos soluções.

Seja você ou não alguém familiarizado com filosofia, é fácil classificar essa área do conhecimento como “a busca pela verdade”.

A verdade, enquanto objeto de estudo filosófico, necessita portanto de interpretações sobre como ela pode ser alcançada, e mesmo sobre o que ela é.

E uma dessas perspectivas, que aqui apresento como “solução anti-boatos”, chama-se ceticismo.

Conforme o dicionário priberam, o ceticismo trata-se de:

ce·ti·cis·mo |èt|substantivo masculino

1. Doutrina dos que afirmam que o homem não pode atingir a verdade absoluta.2. Disposição para duvidar de tudo.3. [Figurado] Descrença.4. Incredulidade.

O ceticismo que aqui proponho se refere, senão somente, ao menos principalmente à definição 2: disposição para duvidar de tudo.

Não se trata de assumir como Verdade que Verdades Absolutas não existem, mas que não temos qualquer fundamento para sustentar que novas evidências contra o que possamos chamar de Verdade não surjam futuramente.

O ceticismo existe em contraposição ao dogmatismo, que, conforme o Blog Cético, especializado no assunto, trata-se da abordagem de pensadores que:

1. acreditam ter encontrado uma ou mais verdades absolutas; e2. acreditam ser capazes de provar tais verdades absolutas.

Substancialmente, o dogmatismo se difere do ceticismo por sua falta de suspensão de juízo.

Para um cético, suspender o juízo é essencial. É o ato de não julgar e não fazer afirmações sobre aquilo que não se sabe, de que não se tem provas e/ou convicções bem fundamentadas.

O cético é não apenas aquele que evita tomar partido quando confrontado com uma realidade pouco conhecida. Ao suspender o juízo, é o perfeito “isentão em cima do muro”, tão mal visto por aqueles que defendem um mundo dualista e de verdades autoevidentes.

O vídeo abaixo, traduzido por nós da equipe AZ, ilustra este ser tão pouco compreendido de todos os tempos, de forma muito engraçada e simplesmente épica (vale cada segundo assistido).

O cético, colocando-se em cima do muro (de Berlim?) para ver de qual lado a grama é mais verde, portanto, não está impedido de tomar partido. Pelo contrário: ele apenas se posicionará em nome daquilo que se mostrar comprovadamente mais aproximado de uma Verdade.

No caso da linchada e assassinada Fabiane Maria de Jesus, céticos foram todos aqueles que desconfiaram da veracidade da informação e percebiam o potencial desinformativo e destrutivo do boato.

Na Alemanha Nazista de Goebbels, cético era todo indivíduo que, questionando os dogmas socialmente cultivados, quando percebia a falsidade de narrativas não apenas as descartava, como também se posicionava contra elas.

Nos casos dos boatos sobre a medida provisória da educação, da convicção sem provas, do “Lulinha dono da Friboi“, das 80 horas de trabalho semanal e inúmeros outros que surgem na internet, cético é aquele que não deixa seu desejo sobre como as coisas deveriam ser nublar seu bom senso e avaliação racional.

Mas antes de responder se você é ou não um cético, você precisa se perguntar se você é capaz de combater a fofoca.

O método socrático

Se a religião cristã tem a Jesus, a filosofia tem a Sócrates.

Em Atenas, na Grécia Antiga, os nomes Platão, Xenofonte e Aristófanes nos apresentam um outro personagem, creditado como um dos fundadores e ícone-mor da filosofia: Sócrates.

Sócrates, assim como Jesus Cristo, nada escreveu, mas muitos falam sobre ele. Não havendo provas de sua existência a não ser por relatos escritos, Sócrates talvez seja o personagem mais idealizado da história da filosofia.

Mas, afinal, o que havia de tão especial nesse velho baixinho, feioso e barrigudo para ser tão importante para o saber humano?

A resposta está num estranho fato: Sócrates era filho de uma parteira.

Parteira? Bem, deixa eu explicar isso melhor…

Conforme o famoso diálogo Teeteto, Sócrates revela que sua mãe, Fanarete, era uma parteira, o que o faria ver sua vida filosófica como uma atividade de “dar à luz”, a “arte de partejar”. Nascia então a maiêutica e a ironia socrática.

A maiêutica ocorre em duas etapas:

1. Levar o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais.

2. Levar o interlocutor a vislumbrar novos conceitos, novas opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si mesmo.

A ironia de Sócrates, por sua vez, tratava-se simplesmente de levar o interlocutor a entrar em contradição, tentando então levá-lo à conclusão de que seu conhecimento é limitado.

Com esses métodos, Sócrates não apenas abre caminho para o ceticismo; ele demonstra que qualquer Verdade passará, antes, pelos crivos da racionalidade, dizimando boatos e mesmo fofocas, dando autonomia para o sujeito rever suas próprias crenças e dogmas.

Os 3 filtros de Sócrates

Nesse sentido, vamos então a um raciocínio atribuído a Sócrates, no qual são propostos três filtros capazes de não apenas nos aproximar de verdades, como também de nos fazer levar uma boa vida em comunidade.

Quando você for contar algo a alguém, espalhando alguma notícia ou boato, portanto, lembre-se do que vem a seguir.

O filtro da Verdade

Aqui, a preocupação é com a verdade. Note que verdade não significa “Verdade Absoluta”, mas tão somente se aquilo que se apresenta corresponde a fatos, ou a qualquer outra coisa que confira segurança ao interlocutor para fazer uma afirmação.

Tomemos o caso da frase viralizada “não temos provas, mas convicção”.

Antes de repetir essa frase, a espalhando por aí tal como se espalha fofocas sobre quem você não gosta só porque a “notícia” agrada a sua forma de ver as coisas, Sócrates propõe que você se pergunte: estou completamente seguro disso?

Quando fazemos essa pergunta sincera a nós mesmos, é bem provável que nossa resposta será: “bem, na verdade não tenho certeza disso, tenho que pesquisar um pouco mais antes de repetir isso por aí, se é que me importo mesmo com a verdade.”

Fofocar e disseminar boatos quando atingimos uma resposta cética, que nos coloca inevitavelmente em cima do muro e suspendendo o juízo, torna-se então uma contradição, e deixamos de nos sentir confortáveis disseminando mentiras (ou verdades não-confirmadas).

O filtro da Bondade

Mas Sócrates vai além da avaliação de fatos. É preciso que nos preocupemos também com as prováveis consequências daquilo o que dizemos. Assim, contribuindo no campo da ética, ele propõe que levemos a bondade em conta quando formos disseminar informações por aí.

No nosso caso, a bondade aqui pode ser entendida como honestidade intelectual.

Intelectualmente honesta é uma pessoa que não só é capaz de fazer um jogo limpo ao trazer relatos e argumentos, como principalmente executa essa honestidade. É, em suma, uma pessoa íntegra, reconhecedora de méritos e falhas.

Uma pessoa intelectualmente honesta e bondosa avaliaria o boato sobre “não haver provas, só convicção”, pesaria se a replicação dessa mentira prejudicaria a terceiros e justificaria, a partir disso, que é preferível não fazer parte de um boato quando ele é simplesmente desonesto e maldoso.

Para além disso, uma pessoa que passa o filtro da bondade, caso já tivesse replicado o boato, reconheceria seu erro sem pestanejar, de tal forma que o jogo limpo seria resguardado.

O filtro da Utilidade

Por fim, Sócrates sugere que passemos o filtro da utilidade. Trata-se aqui de um crivo necessário: aquilo o que espalhamos por aí, se não é verdadeiro nem bondoso, ao menos é útil?

Definitivamente, a melhor informação é aquela que passa com sucesso pelos três filtros de Sócrates; não compondo essa completude, porém, Sócrates admite que sendo tão somente verdadeiro, bom ou útil, temos permissão para fazer afirmações.

A utilidade, é bom notar, pode servir a qualquer interesse, seja por verdades ou por construções de narrativas e boatos – bastando que alguém veja como útil a manipulação das massas, como Goebbels viu um dia.

Mas não tiremos Sócrates de seu contexto: por utilidade ele defende que toda informação seja obrigatoriamente útil para favorecer as pessoas e a comunidade.

Isso é perceptível quando, ao passar o filtro da verdade e da bondade, Sócrates [1] busca fatos verídicos, sem alterações e deturpações da realidade que prejudiquem a comunidade; e [2] tem como objetivo precípuo um ato de bondade, com o propósito de ajudar e servir ao próximo.

Tirinha sobre os 3 filtros de Sócrates.

Bom senso, afinal. É tudo o que peço

Sim, todas estas mais de 2.600 palavras foram para pedir a você e a todos os que estão lendo algo simples, mas de grande estima: bom senso.

Há dois anos, trabalhamos aqui no AZ para ajudar as pessoas a encontrarem a melhor versão de si mesmas, produzindo conteúdo diariamente que se encaixe na nossa visão de raposa e que se adeque aos nossos propósitos.

E esse é um projeto grande, pra vida toda, que está recém começando. Nós queremos mudar o mundo, por mais ambicioso que isso soe. Queremos um mundo de pessoas mais céticas e que não tenham escrúpulos em passar os filtros de Sócrates.

Queremos que você seja uma dessas pessoas. E faremos o possível para que você se torne uma. Acredite nisso.

Um forte abraço!

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