Grandes obras de arte são uma espécie de unanimidade de Beleza, todos nós nos sentimos tocados e inspirados ao observá-las. A obra “O nascimento de Vênus” de Sandro Botticelli, pintada em meados do Renascimento, no quattrocento, encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de Médici para a Villa Medicea di Castello, é uma dessas que de tanta Beleza e Profundidade nos conecta com as ideias expressas pelo artista, independente do momento em que vivemos. É o que podemos chamar de obras Atemporais.
Exposta atualmente na Galleria degli Uffizi, em Florença, na Itália, de têmpera sobre tela, com 172,5 cm de altura por 278,5 cm de largura, é interessante notarmos que mesmo que não saibamos conscientemente os símbolos, as técnicas ou os motivos pelos quais o pintor a fez, ainda assim, somos capazes de admirá-la. De parar alguns instantes diante dela, seja no museu, seja na imagem de algum livro, ou até estampando os milhares de produtos como camisetas e cadernos. Imagina então se pudéssemos nos aprofundar nos símbolos da vida tão bem representados por Botticelli!
Auto retrato de Sandro Botticelli
Como um bom renascentista, Botticelli colocou em sua obra a visão de mundo humanista, clássica, fazendo assim, um resgate de Valores próprios do Ser Humano. As Virtudes da Bondade, da Justiça, da Beleza, a busca por uma Identidade Humana, a reverência ao Sagrado, e tantos outros temas que naquela época, saindo da Idade Média, o Ser Humano buscava novamente viver, foram explorados pelo artista.
Desta maneira, os renascentistas não só tinham um grande apreço pela cultura grego-romana, fazendo muitas obras com temas próprios do mundo clássico, mas também utilizavam uma representação que hoje em dia poderíamos chamar de realista. Um esmero no desenho de anatomia, nas perspectivas, na luz e nas cores, pois, para eles a própria Vida, com suas Leis e Mistérios, já nos ensina sobre o que é mais Belo, mais Bondoso e mais Justo, de tal maneira que o que nos cabe é aprender com ela e imitá-la.
Entendendo um pouco melhor o contexto, iremos agora nos debruçar mais detalhadamente na obra. Conta o mito que Vênus, ou Afrodite, é filha de Urano, o Deus do céu estrelado, daquilo que vem antes do tempo, antes de Cronos. Se diz que o falo de Urano cai no mar e da espuma (aphros, em grego) gerada nasce Afrodite, a Deusa da Beleza e do Amor. Afrodite então trata do Amor e da Beleza, que nos une com o Atemporal, com o Eterno. Ela representa o que em nós é fruto do nosso melhor, do nosso lado mais elevado. Não é qualquer Amor, ou qualquer Beleza, mas aqueles que nos inspiram Bondade, que nos conectam com os demais, que nos fazem ser parte da Vida e não à parte dela.
Botticelli a representa então no mar. A raiz desta palavra é comum com matéria, maya, maria, símbolo da matéria presente em diversas tradições, ou seja, daquilo que se manifesta, que vem pro mundo concreto. Mas Afrodite está acima do mar, acima da matéria, não sucumbe às aparências. Afrodite nasce dentro de um concha pois ela é a própria pérola, aquilo que está oculto e que é o mais precioso no mundo concreto. E o que é uma pérola, senão uma jóia gerada quando a concha transforma suas dificuldades em preciosidades? Botticelli nos mostra assim, o quanto nós podemos ser como Afrodite, ver nossas dificuldades como oportunidades de crescer, de nos fazer chegar ao nosso melhor.
Vênus está nua na pintura porque, no geral, no mundo clássico e no Renascimento, a nudez representava a Pureza. Mas assim que ela chega na matéria, ao se aproximar da terra, Flóris, representando a primavera, tenta encobri-la, como que avisando a importância da Alma ganhar uma máscara, uma personalidade, para que viva as experiências necessárias neste nosso mundo.
É importante percebermos a sutileza deste gesto, porque no geral, tendemos a esquecer nossa Alma. Pensamos que somos um corpo com uma Alma, quando na verdade, o que as tradições nos dizem é que nossa Alma é que tem um corpo, assim como representado no quadro. No fundo, acabamos esquecendo por não vivermos nada próprio da natureza da Alma. Passamos a vida vivendo em função dos instintos, dos nossos desejos e caprichos, e nunca nos perguntamos: o que faz nossa Alma vibrar?
Do lado esquerdo do quadro, vemos o Deus do vento Zéfiro, representando as Leis da Natureza soprando em Afrodite, os ciclos da vida repleto de flores, fazendo com que a concha do seu nascimento se aproxime da terra, da existência. Aqui percebemos o quanto a Vida tem suas próprias Leis, seus próprios Mistérios e o quanto, por nos sentirmos à parte da Natureza, esquecemos que nossa existência é graças a este ciclo. O que comemos, o ar que respiramos, o corpo que voltará ao pó. Será que estamos conscientes de que toda a Vida corrobora para a nossa existência? E o quanto podemos retribuir aquilo que nos é dado através de nossa atuação no mundo?
Talvez o que nos faça ainda hoje admirar “O Nascimento de Vênus” de Botticelli seja um reconhecimento da nossa Alma, da nossa jornada. Talvez admirar esta obra de arte nos faça lembrar o quanto somos Humanos, o quanto temos, todos nós, algo especial. Talvez percebamos naqueles instantes de contato com Vênus que somos uma pérola preciosa e o quanto precisamos colocar no mundo, através dos nossos pensamentos, sentimentos e ações, todos os nossos Valores.