A profundidade em Pessoa

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Crédito da Imagem: Revista NCULTURA

Fernando Pessoa é um daqueles artistas unânimes da história da Humanidade, impossível não gostar da sua obra. Natural de Portugal, suas poesias ganharam o mundo, principalmente depois de sua morte, sempre com mensagens profundas sobre a Vida e seus Mistérios. Viveu entre 1888 e 1935, deixando como legado uma obra tão vasta que até hoje não foi completamente conhecida. De certo, todos nós conhecemos alguns dos seus mais de 100 heterônimos e é através deles que temos a oportunidade de mergulhar na profundidade da Vida que, ele mesmo, contemplou e imortalizou em suas obras.

Ler a obra de Fernando Pessoa é navegar em águas profundas do seu Ser. É notória a habilidade de expressar sentimentos que o poeta português possui, de maneira que nos faz sentir junto com ele a dor, a alegria, a tristeza, a bondade, a beleza e o Amor aos Mistérios…Esta habilidade natural para ver poesia na Vida, foi desde muito cedo alimentada por seu profundo contato com obras clássicas. Aos 16 anos Fernando Pessoa já conhecia toda a obra de Shakespeare, John Milton, Poe e muitos outros grandes escritores que influenciaram o desenvolvimento da sua Arte.

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

(Fernando Pessoa)

Depois de um longo período entre a infância e a adolescência morando na África do Sul com a família, Fernando Pessoa volta a Portugal, em 1905, e inicia a faculdade de Letras, que logo depois abandonou para dedicar-se sozinho e no seu próprio ritmo à escrita. Fundou uma tipografia, que faliu em pouco tempo. Participou de algumas revistas literárias, a mais famosa delas foi a Orpheu, onde teve a oportunidade de publicar alguns dos poemas de seus heterônimos.

“Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?”

(Fernando Pessoa)

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Crédito da imagem: Medium

Os heterônimos de Fernando Pessoa não se tratam de pseudônimos, mas sim de personalidades criadas por ele com nome completo, data e local de nascimento, estilo de escrita, identidade e até estudo de mapa astrológico, um dos conhecimentos que o poeta se debruçava a estudar. Dentro da casa dele foi encontrada uma arca com inúmeros escritos de diversos heterônimos, até agora passando do número de 100, pois ainda não se concluiu o estudo do material encontrado, abrindo-se a possibilidade de Pessoa ter criado ainda mais. Os três principais e mais conhecidos são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterônimo de grande importância, autor do Livro do Desassossego, é o Bernardo Soares, considerado um semi-heterônimo por ter características semelhantes com o que se chama de Ortônimo, ou seja, o próprio Fernando Pessoa.

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Crédito da imagem: Internet

O heterônimo Álvaro de Campos era um engenheiro de educação inglesa e de origem portuguesa que se sentia estrangeiro em qualquer canto do mundo. Sua obra vai passar por inúmeras fases, demonstrando esta inquietação interna – desde uma apologia à vida moderna até uma fase de questionamentos sobre seu lugar no mundo. Um dos poemas mais conhecidos é o Tabacaria, um dos mais relevantes da obra de Fernando Pessoa.

“Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

(Trecho de A tabacaria, Álvaro de Campos)

Ricardo Reis é um heterônimo de identificação com o clássico, com influências do estoicismo, movimento filosófico que valorizava uma vida moral baseada em Virtudes Humanas, e do epicurismo, movimento que busca a realização e a felicidade própria do Ser Humano. Nos escritos de Ricardo Reis percebemos uma busca por simetria, ou seja, por uma Harmonia, como uma espécie de resgate dos Valores Atemporais da Humanidade, a exemplo da Beleza, da Justiça e da Bondade, e também um forte senso de finitude desta existência, tomando a morte como uma presença constante nos seus poemas.

“Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.”

(Trecho de Segue teu destino, Ricardo Reis)

Fernando Pessoa considerava Alberto Caeiro um poeta-filósofo, apesar do próprio heterônimo negar uma filosofia. Percebemos em seus poemas uma escrita direta e simples porém, bastante profunda e reflexiva. Caeiro não teve uma educação formal, diferente dos demais heterônimos. Pessoa diz que “uns agem sobre os homens como o fogo, que queima nele todo o acidental, e os deixa nus e reais, próprios e verídicos, e esses são os libertadores. Caeiro é dessa raça, Caeiro teve essa força.”

“Sou um guardador de rebanhos

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.”

(Trecho de O guardador de rebanhos IX, Alberto Caeiro)

O semi-heterônimo Bernardo Soares é conhecido pelo seu Livro do Desassossego, obra fundadora da ficção portuguesa do século XIX, cheia de fragmentos autobiográficos ainda hoje sendo complementada, já que sempre se encontram trechos do livro na arca encontrada na casa de Fernando Pessoa depois de sua morte. Pessoa diz que “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade.”

“Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.”

(Trecho do Livro do Desassossego de Bernardo Soares)

Uma das possíveis explicações para a criação tão rica desses heterônimos é o contato profundo de Fernando Pessoa com a Teosofia, principalmente através da tradução do livro de Helena Petrovna Blavatsky, “A voz do silêncio” – livro que trouxe para o ocidente uma parte dos Preceitos de Ouro, escritura sagrada do Tibet. A partir daí, se aprofundou nos estudos teosóficos, de maneira que, em toda sua obra podemos ver o reflexo do quanto buscou respostas profundas para os Mistérios da Vida nessas tradições de Sabedoria da Humanidade.

Seus heterônimos, vistos nesse contexto, são uma profunda consciência dos diversos ‘eu’s’ presentes no Ser Humano. É aquilo que nos faz em um momento sermos justos e em outros adotarmos uma postura somente conveniente para nós mesmos. É quando dentro de nós existe algo que nos chama para atender a um dever e, ao mesmo tempo, algo que nos chama para aplacar algum desejo. Nas tradições do oriente, chamamos esses diversos aspectos, esses ‘eus’, de personalidade, que precisa ser comandada por um Eu mais elevado, superior, que é quem de fato nós somos. Em Fernando Pessoa, a profunda consciência dele mesmo o fez dar nome e sobrenome as suas características de personalidade. Numa carta que trata deste assunto ele diz:

“Não sei se sou histérico simplesmente, se sou mais propriamente um histero-neurastênico. Prefiro esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que é a histeria propriamente dita; a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e simulação. Estes fenômenos, felizmente para mim e para os outros, mentalizaram-se em mim. Quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior, ao contato com os outros. Explodem para dentro, vivo-os eu a sós comigo. Assim, tudo acaba em silêncio e poesia”.

Morreu em 1935, diagnosticado com cólica hepática, depois de ter publicado o livro Mensagem, um dos que mais podemos perceber a influência do ocultismo, do estudo daquilo que está no campo do sutil, transcendente, oculto, em sua vida. Durante toda a Vida, Fernando Pessoa traduziu inúmeras obras teosóficas e foi se aprofundando cada vez mais nesse conhecimento, que podemos traduzir como “Sabedoria Divina”. Abaixo podemos perceber um dos poemas que mais retratam a importância desse conhecimento na vida do poeta:

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

(…)

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem o teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tem vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

(…)

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não está morto, entre ciprestes.

(…)

Neófito, não há morte.

(Trecho de Iniciação, Fernando Pessoa)

Em inúmeras cartas a amigos, e ao longo de sua obra, podemos perceber o quanto foi se aprofundando no conhecimento de si mesmo visando sempre o transcendente, o elevado, o Divino na Vida. Podemos aprender com o seu exemplo a relevância de entrar nessa Jornada Humana com um profundo contato com o nosso coração, com nossa identidade, com quem nós somos de verdade, de maneira a colocarmos essa essência, aquilo que temos de melhor, em tudo que fizermos, nas nossas poesias, no nosso trabalho, na forma que falamos, ou seja, em todas as experiências que nos couber viver.

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