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Holi

Nos próximos dias 09 e 10 de março de 2020, a Índia inteira vai parar. Trata-se do festival Holi, uma mistura de festa, ritual, culto religioso, folclore, etc. Essa manifestação é milenar, fala-se que sua origem remonta a séculos antes de Cristo, ou seja, há mais de dois mil anos aquela cultura, anualmente, celebra esse rito antropológico.

Como a festa acontece? Por que o fazem? Que símbolos estão envolvidos? Que mensagem nos passam? Por que esses tipos de festivais acontecem em diversas culturas, ao longo de milhares de anos? Pretendemos refletir sobre essas questões no presente texto.

A festa acontece assim: um dia antes, acendem-se várias fogueiras em toda a Índia, sempre depois do pôr do sol e em noite de lua cheia. É veementemente proibido fazê-lo antes do pôr do sol. No dia seguinte, explode o festival, que lembra uma espécie de bloco gigante de carnaval brasileiro, com muita gente na rua, muita alegria, muita música, muitas danças e muitas cores. Os participantes passam o dia inteiro energicamente dançando, pintando-se e pulverizando cores uns nos outros, pigmentos azuis, amarelos, verdes, vermelhos, tintas líquidas, em pó, naturais, sintéticas, em uma vibração múltipla, diversa e cheia de vida. Em paralelo, vão preparando muitas comidas típicas e bem coloridas, que serão servidas à noite.

Cada movimento desse evento é carregado de símbolos e aspectos míticos. Há uma linguagem sagrada subjacente. Os principais acontecimentos, que são as fogueiras acesas no dia anterior e o lançamento de tintas uns nos outros no dia do festival, reúnem aspectos ligados a mitos milenares.

O primeiro mito refere-se à incineração de Holika. Este fala de uma mulher, chamada Holika, que tinha o poder de enfrentar o fogo. Ela podia entrar em uma fogueira e não se queimar. O irmão dela era um rei muito poderoso que era adorado como um deus, mas o filho dele, Prahlad, não reconhecia a sua divindade, pois via nele apenas um mortal, e preferia manter-se devoto à Vishnu, a verdadeira divindade hindu.

Desafiado pelo próprio filho, o poderoso Rei decidiu destruí-lo e assim, fez um acordo com Holika para que entrasse em uma fogueira com seu sobrinho Prahlad, pois ela sobreviveria em razão de seus poderes e ele seria incinerado. E assim foi feito, no entanto, quando os dois entraram na fogueira, os poderes de Holika foram misteriosamente retirados, e ela acabou sendo incinerada, enquanto Prahlad foi preservado das chamas por Vishnu. Esse mito, contado de várias formas e com várias interpretações ao longo dos tempos, traz em sua essência uma batalha entre dois pólos. Holika e o Rei que queria ser Deus representam o pólo da ambição, das artimanhas para a conquista e a ganância pelo poder, que levam à desumanização, corrupção e violação às leis morais invisíveis que regem a vida humana. No outro polo, Prahlad representa o amor ao sagrado, a verdade, a pureza, a humildade, os corretos meios de vida. De um lado está o poder terreno e do outro o poder celeste. Essa é a história que dá origem ao festival. Quando as fogueiras são acesas, a memória do mito de Holika se torna viva, e no dia seguinte a festa é a celebração da vitória do poder divino sobre o poder material.

Temos várias formas de acessar um mito, podemos fazê-lo a partir de uma narrativa, como o fizemos no parágrafo anterior, ou através de uma imagem, uma escultura, uma peça teatral ou cinematográfica, mas uma das maneiras mais profundas de se reviver um mito é a cerimônia, em que, através da ação, se invoca os elementos míticos para o plano vivencial, permitindo que esse plano físico, denso, vívido, com sons, cores e gostos comunique algo sutil, abstrato e quase inalcançável à linguagem comum. Ao participar de uma cerimônia, é como se a pessoa absorvesse um tipo de conhecimento que não pode ser explicado com palavras.

Uma pergunta que devemos nos fazer é: por que uma tradição como esta sobrevive há tantos anos? O que está por trás de sua renovação constante? Por quantas mutações históricas gigantescas a Índia passou ao longo desses dois milênios, e como esse ritual se preservou até os dias de hoje e está cada vez mais vívido e forte? Que potência jaz nas entrelinhas desse rito? O que isso nos comunica?

Há muitas respostas para essas perguntas, mas a intuição nos leva a perceber que esse movimento inconsciente ao longo da História traduz um esforço desmedido para preservar aspectos muito sutis que habitam dentro do coração humano. Assim como Holika, temos poderes latentes inimagináveis, mas também temos uma inclinação para usá-los em função de nossos interesses egoístas em prejuízo do interesse da coletividade. Isso nos leva à autodestruição.

A cerimônia Holi é um grito de desespero da cultura humana para nos lembrar que temos juntas dentro de nós a potência para criar e para destruir, e que, como Prahlad, somente o amor a Vishnu, ou seja, o amor e o serviço a Deus é o que nos protege da destruição.

Neste caso, independente da crença, podemos entender “Deus” como o impulso que há dentro de cada um de nós e que nos direciona à justiça, à bondade e à generosidade. Imagine tudo aquilo que nos dá poder material: dinheiro, posses, poder político, fama… Não importa o quão poderoso seja, tudo aquilo que é material vai se tornar pó, cedo ou tarde. Somente aquilo que está ligado ao divino é capaz de transcender a matéria e se tornar invencível. Como, por exemplo, a vivência do Amor, das virtudes e as ações inegoístas são as coisas que nos acompanham por vidas e vidas, mesmo após toda a matéria ter sido transformada em cinzas.

O segundo mito que subjaz à cerimônia se traduz no ato de lançar cores entre si, pintando uns aos outros. Na cultura hindu, Krishna é representado numa pele de cor azul bem escura, dizem que quando jovem, ele se enamorou de Radha que tinha uma pele clara e ele costumava jogar pigmentos nela, numa espécie de brincadeira de apaixonados, de modo que Radha ficava totalmente coberta de várias cores. Este é um símbolo que nos mostra que, quando estamos “enamorados” pelo divino, a nossa vida se enche de luz, de cores e de alegria. Assim como Radha, devemos buscar este relacionamento com Krishna, com o sagrado que habita em nós. Esse é também um aspecto sutil da realidade que o festival de Holi tenta lembrar todos os anos.

Os dois mitos estão conectados entre si. O mito de Holika está relacionado à esfera dos costumes, o mito de Krishna e Radha refere-se ao amor ao divino, ao sagrado, ao transcendental. Prahlad representa a fusão entre essas duas esferas, pois seu amor ao divino o salva de uma artimanha na esfera dos costumes mundanos. O festival então, une esses dois mundos.

Para além de um mero efeito visual de cores, Holi é um canal experiencial de uma mensagem profunda para a humanidade. É um jeito de nos lembrar que temos poderes latentes imensuráveis, mas esses poderes estão envoltos em tendências e inclinações que podem nos levar a uma destruição em larga escala. Holi nos lembra que nosso amor ao sagrado nos ilumina, colorindo nossa existência como as flores na primavera, e trazendo a alegria de uma vida cheia de sentido. Holi nos lembra que o “divino” e o “humano” não existem de forma separada, pois essas duas esferas estão fundidas em uma única ordem de realidade. Happy Holi!

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