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O Ser Humano é a única espécie da natureza a produzir arte. Assim como a ciência, a religião e a política, podemos dizer que esse é um traço indelével de nossa evolução, tanto a nível individual como coletivo. A bem da verdade, na sociologia clássica fala-se que a produção de arte é um elemento de destaque dentro de uma civilização e que sociedades que não produzem algum tipo de elemento artístico são, em geral, percebida como de caráter simples. Nesse sentido, arte é muito mais do que a técnica ou a expressão de uma forma de pensar e sentir, mas uma verdadeira chave para o desenvolvimento das emoções, dos pensamentos e da construção de uma cultura.

A humanidade, ao longo de suas diversas experiências, produziu diferentes tipos de arte. Desde simples pinturas rupestres até as telas de cinema, sempre esse meio foi utilizado como um modo do Ser Humano traduzir ideias que a priori são intangíveis, abstratas e que não participam objetivamente do mundo. Por isso podemos dizer, em um sentido mais profundo, que a arte é, antes de tudo, uma ponte que liga os aspectos subjetivos ao mundo material, traduzindo-o em forma de uma obra.

Sendo assim, é possível que a arte nos transmita ideias? Ou sua finalidade é apenas a apreciação da beleza, da harmonia e da técnica empregada pelo artista? Buscaremos entender essas questões a partir da obra “A morte do cisne”, uma composição de Ballet clássico inspirada no poema homônimo de Lord Tennyson. 

Contudo, antes de prosseguirmos com nosso texto, sugerimos que o leitor assista à dança interpretada pela bailarina Anna Pavlova.

(Créditos: Cisne Russa Anna Pavlova)

Uma das coisas que a arte pode nos ensinar é que tudo tem sua beleza, inclusive a morte. Não de forma superficial, ou como frase de efeito, mas como entendimento de que a morte é uma etapa da vida. É o fim de um ciclo para que um outro comece, e por isso é belo e natural. A morte do Cisne (The Dying Swan), ballet de 1905, coreografado por Mikhail Fokine, com composição de Camille Saint-Saëns, é uma linda metáfora para o fim da nossa existência, para o fim de todos os ciclos que passamos durante a vida. 

O solo de ballet protagonizado pela grande bailarina Anna Pavlova nos ensina que, a cada instante, devemos morrer, e deixar morrer aquilo que já não tem mais sentido dentro de nós, guardando a devida beleza de termos feito parte do grande espetáculo da vida. E a vida, afinal, não é assim? Uma sucessão de eternos nascimentos e mortes que ocorrem em nós, todos os dias. Podemos não perceber, mas a todo instante esse processo ocorre a nível celular em nosso organismo. Após o cumprimento de sua jornada, uma célula se esvai, mas antes faz nascer outra célula idêntica para continuar servindo ao todo.

Se levarmos essa percepção para um nível mais profundo, quantas emoções, pensamentos e lembranças são passageiras em nossa existência? E ao seu lugar novas formas de pensar, sentir e agir surgem a partir das experiências do presente? Não somos os mesmos que há dez anos, seja considerando o aspecto biológico, psíquico e espiritual. Assim, devemos entender a morte como sinônimo de mudança e não como uma oposição à vida. 

(Créditos: O meu Repertório)

Essa tal profundidade é percebida pelo artista, que, com a sensibilidade e técnica apurada, consegue traduzir essas percepções em uma forma de beleza, que encanta e ensina aos espectadores. Mas qual a história por trás dessa obra de arte? Não podemos negligenciar os fatos e referências que inspiram os artistas, uma vez que são dessas vivências que se extrai a essência de uma ideia ou sentimento. 

Dito isso, vamos conhecer um pouco sobre o processo desse ballet. Uma das referências foi o poema de Lord Tennyson intitulado “The Dying Swan”. Além disso, a centelha da criatividade de Fokine se deu quando observava os cisnes de um parque público. A graciosidade do cisne que faz do seu nado um espetáculo de harmonia para quem o vê foi uma fonte de inspiração não apenas para Fokine, mas principalmente para Anna Pavlova. Os movimentos rápidos e agitados que aparentemente contradizem com a calma do cisne é, na verdade, a tradução quase perfeita de como o nado dessa ave ocorre. Na superfície não podemos ver o esforço feito para poder deslizar sobre as águas, porém, se observássemos as patas do cisne que estão dentro do lago, poderíamos enxergar o bater rápido dos seus membros para que possa, com tanta energia, demonstrar a sua elegância. 

Conta-se que Pavlova perguntou se Mikhail Fokine poderia criar um solo de ballet para apresentar em um concerto em 1905, no Marinsky Imperial Opera. Ele então sugeriu uma dança para a composição do francês Camille Saint-Saëns, em violoncelo, “Le Cygne”, parte da peça “Le Carnaval des Animaux”. A coreografia era composta principalmente por movimentos da parte superior do corpo, especialmente os braços, e por um pequeno passo chamado “pas de bourrée suivi”.

Fokine comentou o seguinte sobre o ensaio com Pavlova: “Era quase um improviso. Dancei na frente dela, ela logo atrás de mim. Em seguida, ela dançou e eu caminhava ao lado dela, curvando os braços e corrigindo detalhes de poses. Antes dessa composição, fui acusado de rejeitar a dança nas pontas dos pés. A Morte do Cisne foi a minha resposta a essas críticas. Esta dança tornou-se o símbolo do Novo Ballet Russo. Foi uma combinação de técnica magistral com expressividade. Foi como uma prova de que a dança pode e deve satisfazer não só o olho, mas por meio do olho deve penetrar a alma”.

(Créditos: Wikipédia)

Não é a toa que o espetáculo causa grande impacto na nossa Alma. Além da interpretação sensível de Pavlova e da belíssima coreografia de Fokine, o poema de Tennyson que inspirou a obra também nos faz sentir como se estivéssemos ali contemplando a leveza e a profundidade dos cisnes em meio à natureza. Assim, quando falamos da “morte do cisne”, não é possível pensar em apenas uma forma de arte, mas numa grande composição que perpassa através de vários formatos uma mesma ideia. A inspiração no poema de Tennyson, a leveza e o esforço advindos da observação dos cisnes e, junto a isso, a melodia da música de Camille Saint-Saëns proporcionaram uma obra única, que se tornou um clássico do ballet e da arte mundial. 

Considerando esses aspectos, devemos afastar de nossa mente a falsa ideia de que a arte é somente um “talento” ou “dom”, que o artista produz suas obras com pouco esforço e dedicação, porque suas habilidades naturais já lhe são suficientes. Como podemos perceber, ao contrário do que se imagina, criar uma obra de arte – seja em qual tipo de arte for – necessita de um grande esforço criativo, intelectual e físico, pois os movimentos realizados na “morte do cisne”, por exemplo, não são simples de executar.

Dessa forma, é importante percebermos que “A Morte do Cisne” não é somente sobre o cisne e sua vida solitária num parque da cidade, mas sim, como bem apresentado por Pavlova, uma luta contra a morte, uma luta pela existência, uma luta que travamos pelo que vale a pena ser vivido. Por outro lado, a obra também nos ensina a aceitar as Leis da Vida e nos mostra que também precisamos aprender a morrer, a reconhecer o fim dos ciclos e a interpretá-los com beleza.

Atualmente, a coreografia inspira muitas versões contemporâneas de Odette, o cisne branco em “ O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, chegando até a nos confundir em quem inspirou quem ou até mesmo pensar que são a mesma obra. É importante percebermos também que, para além de uma grande exibição técnica, a proposta original de Fokine era algo mais profundo. Como diz sua neta Isabelle: “Não é necessário uma demanda técnica enorme, mas sim grande sensibilidade artística porque todo movimento, todo gesto, deve demonstrar alguém tentando fugir da morte”. 

Assim, a intenção de Fokine era tocar nossa Alma através da beleza que um cisne expressa, mesmo no momento de sua morte. Na verdade, este cisne pode ser cada um de nós, seguindo os ciclos de vida e morte, e buscando o sentido nisso tudo.

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