[ALERTA DE SPOILER – O texto abaixo contém comentários que podem estragar a surpresa de assistir a série. Leia por sua conta e risco]

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Imagine que você morreu e foi para o paraíso. Boa notícia? Seria se você não tivesse sido uma péssima pessoa na Terra. É o acontece com Eleanor Shellstrop (Kristen Bell), uma americana egoísta e passional do Arizona, na ótima série The Good Place, criada por Michael Schur. Ela acorda no pós-vida e é informada pelo arquiteto do lugar, Michael (Ted Danson), que mereceu o “Lugar Bom” por suas ações humanitárias na Terra, tais como salvar presos do corredor da morte. Nesse momento, Eleanor se dá conta de que sua estadia ali só pode ser um erro, pois ela nunca havia feito nada daquilo. Consumida pelo medo de ir para o “Lugar Ruim”, ela tenta desesperadamente fingir ser uma boa pessoa e pertencer àquele lugar. Mas a sua verdadeira identidade acaba sempre arrumando um jeito de vir à tona e todo o bairro onde vive quase é destruído, por causa disso. Como última alternativa, só sobra a ela tentar ser uma boa pessoa de verdade. É nesse momento que ela pede ajuda a sua alma gêmea, Chidi Anagonye, um nigeriano que foi criado no Senegal. Quando vivo, Chidi foi professor de filosofia moral e passou a vida inteira tentando encontrar as respostas para as grandes perguntas da humanidade. O problema é que, os seus questionamentos sobre o certo e o errado são tão extremos que isso o torna incapaz de fazer simples escolhas na vida, como “qual chapéu usar?”. E transforma a vida de todos que o rodeiam numa tortura infernal. No começo, o filósofo fica relutante, mas obrigado pelas implicações morais de ajudar alguém naquela situação, ele finalmente começa a dar aulas de Ética a Eleanor. É quando eles são apresentados a Tahani Al-Jamil e Jason Mendoza. Ela é uma britânica de ascendência indiana, que viveu a vida toda atormentada pelo sucesso de sua irmã Kamila. Ele é um americano de família latina, que vive a vida de forma inconsequente, entre um cigarro de marijuana, alguns assaltos, seu grupo de dança de rua e coquetéis molotov (ok, o que o autor conseguiu evitar de estereótipos no primeiro casal, gastou nesse).

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Talvez você esteja pensando “Como esse Jason conseguiu entrar no Lugar Bom?”. Ele também é um erro do sistema e é confundido com um monge que faz um voto de silêncio inquebrável. Ele se aproveita disso para ficar sempre calado e ninguém perceber nada. Os quatro vivem essa aventura em um bairro projetado para fazê-los plenamente felizes, o que parece funcionar com todos os outros moradores menos com eles, que vivem a tortura de seus medos. Eleanor tem que vencer seu egoísmo, Chidi precisa tomar decisões frequentemente, Jason tem que controlar seus impulsos e Tahani precisa superar sua necessidade por atenção, status e reconhecimento. Para eles, o céu parece um pote de frozen yogurt com sabor de inferno (e talvez o seja)… Você vai ter que assistir a série para entender essa referência.

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Apesar de ser uma comédia no formato sitcom, a história passeia entre compreender o sentido da vida e, portanto, da morte. Ela apresenta a natureza humana como um misto de pequenas e infantis formas de buscar algum lucro e da grandiosidade dos atos de sacrifício pelos outros, ou pelo que julga ser o certo. Além disso, a série mostra-nos o quão forte pode ser a força do amor em suas diversas formas de expressão. Através de um dos personagens mais interessantes, Michael, nós refletimos sobre o que define a nossa condição humana, já que ele, mesmo sendo um tipo de demônio, portanto um ser imortal, passa a admirar o respeito que nasce entre aquelas almas humanas, mesmo sendo tão diferentes umas das outras, e a fortaleza que nasce da fragilidade e da própria mortalidade. Isso faz com que ele se torne cada vez mais parecido com aquelas almas que ele decide ajudar. Outro ponto interessante que a série nos apresenta é sobre as nossas idealizações e fantasias acerca do destino da alma humana após a morte. Será que o “céu” que imaginamos realmente é um bom lugar para se passar a eternidade? Tudo isso é apresentado com um humor leve, porém adulto, já conhecido de outros trabalhos de Michael Scur. O que é um oásis nos dias de hoje, já que estamos no meio de uma cena humorística que apoia-se em piadas sexistas, homofóbicas, intolerantes e estereotipadas por carecer de conteúdo inteligente. É claro que um seriado com quatro temporadas não conseguiria fugir de um ou outro clichê, tal como quando as festa de Tahani parecem ser a solução para todos os problemas que surgem. Ou a estupidez de Jason, que perde um pouco a graça já na segunda temporada. Ainda assim, a estonteante representação de Ted Danson (Michael), Kristen Bell (Eleanor) e D’Arcy Carden (no papel de Janet, um supercomputador ambulante que detém todo o conhecimento do universo e vai ganhando consciência à medida que convive com os humanos), além de William Jackson Harper (Chidi) fazem valer a pena cada minuto da sua maratona. E como não falar das atuações hilárias de Marc Evan Jackson (o demônio-chefe entediado), Tiya Sircar (uma demônia vingativa com desejo de ser atriz), Maya Rudolph (a juíza hidrogênio, imparcial, mas viciada em séries de gosto duvidoso) e tantos outros atores que entregam um trabalho espetacular.

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A quantidade de conexões possíveis com nossas próprias vidas e anseios são inúmeras. Há muito tempo que o homem conta histórias, e as grandes, aquelas que atravessam o tempo e o espaço e continuam a inspirar a humanidade até hoje, geralmente possuem uma chave de interpretação psicológica. Trocando em miúdos, os personagens dessas histórias são partes de nossa própria psique, e através deles podemos entender um pouco mais sobre nós mesmos e sobre a vida. No caso de The Good Place isso também acontece. Afinal, quem nunca teve dificuldades para controlar seu Jasons, digo, seus instintos de sobrevivência? Ou quem nunca investiu seus recursos para conseguir um pouco de atenção, como Tahani? Ou ainda, quem nunca se viu preso a traumas do passado, vivendo a guerra interior com aquela vozinha que diz que lucrar com a humilhação de um amigo é errado, como uma boa Eleanor Shellstrop? E por fim, me arrisco a dizer que você também já viveu um dilema moral paralisante na vida, tal como Chidi Anagonye. Assim como no show, nossa jornada por essa existência é uma recorrente luta para vencer nossos próprios medos. Nessa batalha somos nosso próprio inimigo e nosso maior aliado. Melhor do que o homem que vence mil vezes mil homens em batalha, é aquele que conquista a si mesmo, já nos ensinou o Buda Gautama. E não importa quantas tentativas a gente tenha que fazer, quantos Jeramy Bearimy sejam necessários (só entende quem chegou no quarto episódio da terceira temporada), no final há um mar de tranquilidade de espírito para onde voltar. Vida e morte estão assim unidas, são tão somente duas faces de uma mesma moeda. E se a gente não fosse tão ignorante nesses temas, talvez pudéssemos dar boas risadas de tanto tempo que desperdiçamos com aquilo que não é realmente importante.

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Dessa forma, podemos nos dividir em três posturas diante da vida. Ou tentamos ignorar aquela voz irritante e politicamente correta; ou tentamos escutá-la e seguir seus passos pela força, ainda que não estejamos convencidos e não sintamos no coração a motivação para tal; ou nos tornamos essa voz! Unidos com a causa sem causa, como uma gota que chegou à foz e reconheceu que sempre fora o oceano. No fim das contas a série e a vida não parecem ser sobre chegar a algum lugar melhor do que este, mas sobre uma jornada de volta pra casa. Vale a pena assistir, se inspirar e refletir.

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