Já aconteceu com você de resgatar uma memória e se lembrar de vários detalhes, como o cheiro das coisas, a cor do céu, as pessoas que estavam ao redor, mas depois de algum tempo você perceber que a sua memória não é 100% fiel à realidade dos fatos? Por exemplo, talvez nesta memória você se lembre de um dia chuvoso, mas depois você descubra que nem choveu naquele dia. Ou, então, em suas memórias, você se lembre de uma pessoa muito alta, mas depois se dê conta que era uma pessoa de estatura normal.
Isso acontece porque nossa mente não registra os acontecimentos como uma câmera de vigilância, de forma objetiva. Muitos podem pensar que isto é uma falha da psique humana; porém, estamos enganados ao achar que esse “erro” é ao acaso. Basta pensarmos que a complexidade do corpo humano, seja suas funções fisiológicas ou psíquicas, é imensamente superior ao que conhecemos hoje como tecnologia. Portanto, se uma câmera consegue registrar com fidelidade tudo que ocorreu em algum momento, será que nossa mente não seria capaz do mesmo? É evidente que isso seria possível, logo, precisamos conhecer os motivos reais pelos quais nossas memórias são tão ambíguas e, por vezes, até inventadas.
De forma geral, o principal motivo é que nossas memórias registram muito mais sentimentos e emoções do que os fatos objetivos. Somos excelentes em gravar as sensações que os eventos externos nos causam, e essa função ocupa tanto de nossa capacidade que pouco importa o fato objetivo. Basta fazermos um pequeno exercício de memória e poderemos constatar isso. Pense, meu caro leitor, na memória mais feliz de sua infância: um aniversário, um passeio, uma brincadeira com seus amigos, pais ou irmãos. Volte nessa memória e relembre aquele momento. É muito provável que você tenha imagens nítidas de algumas pessoas, algumas conversas, mas provavelmente não lembrará de tudo. Porém, o sentimento gerado naquele dia jamais sairá de sua mente, tornando-se eterno. Assim, é perceptível que a verdadeira intenção da nossa memória é gravar muito mais percepções do que os fatos.
Para os amantes do passado isso pode parecer um aspecto negativo, entretanto, veremos como não fixar todo e qualquer evento que nos ocorreu é fundamental para manter uma psique equilibrada e saudável.
O curta abaixo, dirigido por Amanda Sparso, nos traz inúmeras reflexões sobre este assunto.
Yuanfen é um termo da cultura chinesa que tem a ver com o destino que une duas pessoas, e neste curta, vemos que o Panda guia a bebê através da China até encontrar aqueles que seriam os seus pais. E a mensagem no final deixa evidente qual é o tema principal da obra:
“Adotar uma criança não vai mudar o mundo, mas para aquela criança, o mundo vai mudar.”
Neste curta, podemos perceber que Amanda colocou muito de sua própria história, pois ela mesma nasceu na China, mas foi adotada por uma família americana. Numa entrevista ela disse:
“Depois de ser adotada, optei por nomear meu filme Yuanfen (pronuncia-se ‘Yen-Fen’), pois é baseado na crença chinesa de que a afinidade de uma pessoa com outra pessoa já foi determinada pelo destino, independentemente de tempo, lugar ou circunstância. Depois de viajar 7.000 milhas para estar onde estou hoje, eu queria usar minha própria história como uma forma de aumentar a conscientização para adoção e me conectar com outras crianças e famílias que passaram pelo processo. Yuanfen é uma história de adoção vista através dos olhos de uma criança, e espero que sirva como uma história de amor, esperança e garantia para milhões de crianças em orfanatos e instituições de acolhimento em todo o mundo”.
Pela fala de Amanda Sparso podemos perceber que esse singelo curta não é apenas um filme bem executado, mas também que tem uma profunda mensagem a deixar para o espectador. Um dos aspectos mais impactante em Yuanfen é que, de início, não entendemos que o Panda, na verdade, é um símbolo criado pela mente da criança, para poder compreender todo o processo por que passou, desde a separação de sua mãe biológica até o vôo para outro país e o encontro com seus pais adotivos. O panda, de fato, era simplesmente um bichinho de pelúcia. Isso nos remete ao que foi comentado no início do texto: como muitas vezes a nossa memória não acompanha a exatidão dos fatos… E isso é muito bom.
O que poderia ter sido uma experiência traumática e triste para uma mente tão jovem, ficou registrado como a memória de uma experiência fantástica. Isso nos lembra muito o filme “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni, em que um pai faz de tudo para que seu filho não perceba os males de se viver dentro de um campo de concentração nazista. A plasticidade da psique humana – principalmente em sua fase infantil, período no qual há pouco discernimento entre a fantasia e a realidade – é capaz de esconder acontecimentos e se readaptar em momentos de tensão. Assim, um evento que aos olhos de um adulto é uma verdadeira tragédia, e objetivamente o é de fato, pode ser visto por uma criança como uma brincadeira, um grande jogo em que todos estão se divertindo. No caso do curta, o Panda foi a conexão necessária para mudar o ponto de vista acerca da situação pela qual se passava.
Como já falamos, nossa memória não registra com perfeição os fatos tal qual aconteceram, e por isso devemos cuidar das emoções e sentimentos que geramos em nossa psique, principalmente nos primeiros anos de vida. Outro exemplo que pode ilustrar perfeitamente o nosso caso é o trauma de agulhas que muitas pessoas carregam até a fase adulta. Todos nós passamos por diversas vacinações em nossa infância, e a “picadinha” da seringa sempre era visto como um momento de tensão. Entretanto, há médicos que utilizam técnicas que ajudam a criança a lidar melhor com esse momento. Fazer brincadeiras com a seringa sem a agulha, distrair a criança, contar uma história e, acima de tudo, fazê-la se sentir confortável torna o momento da aplicação mais tranquilo. Assim, a criança, muitas vezes, não cria um trauma desse momento, pois associa o momento da injeção a risadas, brincadeiras e alegria.
Com isso em mente, sabemos que nossas memórias são formadas predominantemente por elementos do campo emotivo. Sendo assim, ao recorrer às nossas antigas lembranças, deveríamos tentar compreender quais são os sentimentos e as emoções que predominam nelas. Partindo dessa investigação no campo emocional, poderemos entender as causas dessas emoções, que muitas vezes carregamos como verdadeiras chagas em nossa psique. Não podemos voltar ao passado e evitar que essa emoção nos afete, isso é impossível, mas, se compreendermos sua raiz, poderemos resignificá-la, observá-la de um ponto de vista mais alto, mais consciente e, assim, lidar de maneira autêntica com nossas travas. Essa atitude é essencial no processo de evolução e autoconhecimento, pois permite mergulhar em nossas dores mais profundas, as que muitas vezes se manisfestam de forma indireta e que nos conduzem por toda existência.
Ainda mais importante do que lidar com os traumas é saber valorizar os aprendizados e cultivar os sentimentos positivos que possuímos. Deveríamos tentar gravar todas as nossas experiências com amor, esperança, beleza e bondade, pois no futuro, quando abrirmos nosso baú de lembranças, será isso o que encontraremos. No fim, é a pureza em nosso coração que determinará a paz de espírito e equilíbrio que tanto buscamos, e isso só é possível quando estamos preenchidos por estes sentimentos. Que possamos, portanto, limpar as partículas de emoções negativas que estão impregnadas em nossa alma para que ela possa se alimentar cada vez mais da verdadeira essência da vida: o amor.