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Como uma onda no mar: o movimento de acordo com a filosofia grega

“Um homem nunca entra em um rio duas vezes, pois na segunda vez nem o homem nem o rio são os mesmos”. Você já ouviu essa frase? Ela é uma das mais célebres sentenças de Heráclito, o “obscuro”, um dos grandes filósofos gregos do século V a.C. A filosofia de Heráclito se baseia na ideia de movimento, pois para esse pensador a grande característica da natureza é a mudança. Assim, a todo momento, todo o cosmos está se movimentando, gerando novas circunstâncias e modificando os corpos que o constituem. Dessa maneira, o movimento seria a única constante dentro do Universo que é, por observação, puramente variável e instável.

A ideia de Heráclito nos leva a refletir sobre o valor do movimento dentro do nosso próprio tempo. Talvez não seja algo que estejamos pensando normalmente, mas devemos dedicar um tempo para entender o que, de fato, os gregos antigos pensavam acerca disso. Primeiramente, devemos entender o que estamos chamando de “movimento”. Não se trata apenas do ato de se deslocar de um local a outro,  mas do que está por trás dessa ação. Nesse sentido, o que os antigos gregos chamam de movimento é a mudança que ocorre com os corpos, seja ela no tempo e ou no espaço. 

Pense em uma semente. Num primeiro momento ela pode parecer imóvel, afinal, não se mexe do ponto de vista visível. Porém, com o passar do tempo suas mudanças são inexoráveis. Ela cria raízes, brota e, pouco a pouco, vai se transformando em uma árvore frondosa. Seu movimento não ocorreu somente externamente, mas uma série de mudanças internas a fez passar por diferentes etapas até se tornar árvore. Ainda assim, haverá um momento em que seu tronco já não estará forte e, eventualmente, a árvore que outrora deu tantos frutos sucumbirá ao tempo e cairá. Seus restos orgânicos alimentarão a terra e servirá de nutriente para novas sementes que provavelmente estarão no solo, fazendo com que o ciclo da vida continue.

Percebe que a todo momento o movimento continuou a existir, gerando diferentes fases no espaço-tempo da vida da semente? É sobre essa perspectiva de que “tudo muda, tudo está em movimento” que diversos filósofos gregos vão se debruçar. O senso comum atribui essa indagação apenas a Heráclito, mas o fato é que, desde Tales de Mileto – um dos primeiros filósofos gregos – até a filosofia estoica de Zenão, os habitantes da Hélade se perguntaram como é possível existir o movimento, sua natureza e como isso se relaciona com o aspecto divino que permeia todo o cosmos.

Diante de tudo que foi apresentado até aqui, hoje vamos conhecer a perspectiva sobre o movimento a partir de alguns filósofos gregos. É evidente que nosso propósito não é encerrar o tema, mas apresentá-lo de modo a entendermos a base desses pensadores e refletir como essas ideias também podem ser percebidas e vividas em nosso próprio tempo atual. Visto isso, vamos começar discutindo algo que é tão complexo como o movimento e que para os filósofos gregos era um tema central na filosofia: a criação do cosmos e o seu criador.

Muitos se debruçaram sobre essa temática e, em geral, ainda hoje buscam entender a criação do Universo como uma obra divina. Para Platão, por exemplo, o Universo foi criado sob a visão de divindades que tiveram como base as ideias e formas primordiais. Essas formas iriam ser a matriz na qual todo o Universo seria espelhado e foram representadas por Platão como a geometria. O que se percebe é que, de fato, toda natureza é composta por formas geométricas – círculo, elipse, triângulo, quadrados, etc – e há uma proporção áurea, um número divino, que também está presente em todas as coisas. Nesse aspecto, Platão nos diz que a criação do Universo jamais poderia ter sido obra do acaso, visto a perfeição e a harmonia que podemos encontrar na natureza. É aqui que nasce o problema: se o Universo tem proporções perfeitas e harmônicas e está baseado nos arquétipos primordiais, logo, ele é reflexo de algo perfeito. Se a divindade – que criou os arquétipos – também é perfeita, ela não precisa mudar, afinal, ela já o é. Se ela já contém a perfeição, é imóvel, então o movimento só ocorre naquilo que precisa evoluir e se desenvolver, e um ser divino não precisaria disso. Sendo assim, se no Universo tudo se move, talvez ele não seja de fato perfeito, pois ainda está se desenvolvendo. Logo, um ser divino, perfeito, fez algo que não é perfeito?

Parece um pouco complexo, eu sei, mas essa é a linha de raciocínio para entender como pode existir a ideia de movimento no cosmos se este foi criado com base na perfeição. Assim, vários filósofos tentaram resolver esse dilema. Um dos primeiros foi Parmênides, um filósofo pré-socrático que entendia que toda a natureza estava composta pelo Ente. O Ente seria esse aspecto divino que preenche todo o cosmos, que está na natureza de todas as coisas e que por estar em tudo é imóvel; pois, apesar de assumir diferentes formas, continua sendo o que é. Nesse sentido, seu movimento é apenas aparente, a ilusão de que se move, mas que no fundo continua sendo ele mesmo.

Se voltarmos ao exemplo da semente, poderemos entender que apesar de suas diferentes formas e aspectos, seus átomos continuam sendo iguais, não são alterados e somente se combinam com outros, formando novas estruturas, mas essencialmente seguem sendo os mesmos átomos. Essa explicação moderna se assemelha, em partes, à ideia do Ente poder estar em tudo e, ao mesmo tempo, ser ele mesmo. 

Já para Heráclito, como vimos no começo do texto, a mudança era a única constante que poderia existir. Logo, se a única coisa que não muda é o fato de que tudo muda, então o movimento não pode ser fruto da ilusão, mas sim do que é atemporal, perene, ou seja, daquilo que é. Assim, opõe-se duas percepções; porém, a discussão não chegaria ao fim tão rápido. 

No século IV. a.C., Platão e Aristóteles também pensaram sobre o movimento. Para Platão, por exemplo, a solução desse dilema estava em entender que há dois mundos: o mundo das ideias, na qual há o atemporal, o perfeito e na qual nada se move, ou seja, é o mundo onde os arquétipos são fixos. Porém, no outro mundo, o mundo material em que vivemos, tudo muda por este mundo ser apenas uma sombra imperfeita do mundo das ideias. Assim, como vivemos sob a égide da imperfeição, o movimento é a busca por se encontrar mais próximo desse ideal. No mundo material, próprio das formas, tudo muda em busca de se espelhar ao que é; porém, o movimento nunca cessará nesse mundo, pois jamais alcançaremos a perfeição do mundo das ideias tal qual ele é. É por isso que usualmente vemos a filosofia platônica como “utôpica”, pois parte desse paradigma.

Já para Aristóteles, o movimento tem seu valor real e não é uma ilusão, mas deve ser estudado tal qual as propriedades que lhe são atribuídas. Nessa perspectiva, o movimento sai um pouco do campo da filosofia especulativa e passa a ser objeto de estudo mais sistemático. Assim, nasce a física, também chamado pelos gregos de “filosofia segunda”, por tratar de causas que não são metafísicas (que transcendem esse aspecto formal e material do mundo). Assim, para Aristóteles o movimento no mundo material precisava ser estudado para ser compreendido, e não se tratava apenas de ser uma ilusão ou não. Como podemos ver, para o pai da ciência, título dado posteriormente a Aristóteles, as questões metafísicas estavam, de certo modo, em segundo plano porque sua real preocupação era entender o mundo prático, que estava ao seu redor. 

Cada filósofo, por fim, terá seu próprio ponto de vista sobre essa questão. O fato, porém, segue: o movimento, em seu sentido filosófico, é real e todos nós estamos sujeitos a ele. Todos nós vamos mudar, assim como a semente que um dia vai virar árvore. Porém, o movimento humano não deve se limitar aos seus aspectos biológicos, que ora está saudável, ora está enfermo. Mais do que esse movimento “horizontal”, chamemos assim, devemos buscar um verdadeiro movimento “vertical”, que tem como princípio buscar ideias cada vez mais elevadas, que nos mostrem racionalmente o mundo como ele é, que nos permitam conhecer um pouco mais dos mistérios que nos rodeiam.

Esse é o verdadeiro movimento humano, que busca encontrar o atemporal dentro de uma dimensão que é, em linhas gerais, fadada a desaparecer. Que nossa melhor parte, a que conjuga esse movimento vertical em direção às ideias, não possa ser vencida pelo tempo e que sejamos, nesse aspecto, imortais.

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