Você já ouviu a frase “o Egito é uma dádiva do Nilo?” Ela foi escrita há mais de 2.400 anos por um historiador Grego chamado Heródoto, também conhecido como o pai da História. Heródoto, tão maravilhado com a Civilização Egípcia, dedicou um dos seus nove livros apenas para descrever e contar sobre a grandiosidade dessa civilização. Seus principais comentários acerca dos Egípcios refletia sobre a antiguidade e sabedoria desse povo, que, segundo ele, estavam milênios à frente dos Gregos.
Dentro da perspectiva de Heródoto, o Egito conseguiu preservar, por muitos séculos, sua essência, mantendo-se fiel aos seus princípios e uma correta busca pela verdade. Porém, nada disso seria possível se não fosse um fator geográfico determinante para o crescimento dessa civilização: o rio Nilo. Como bem sabemos, o Nilo é o principal rio do continente africano e o maior do mundo. Ele tem sua nascente na atual região de Uganda, que na antiguidade foi o antigo Reino da Núbia. Ainda assim, o Nilo percorria toda a extensão do território Egípcio, formando suas cidades à margem do rio. As grandes enchentes, conhecidas como a cheia do Nilo, tornavam a terra fértil e excelente para a agricultura, o que possibilitou a vida florescer em meio ao deserto.
Somente por esse aspecto físico, já poderíamos compreender a notória frase de Heródoto, porém, para os próprios Egípcios, o rio era muito mais do que apenas uma correnteza de água que desaguaria no Mediterrâneo. Para esses antigos homens e mulheres que viviam na terra vermelha, o Nilo era uma verdadeira força da natureza, uma Divindade encarnada e, naturalmente, tinha seus ritos e Deuses. Tratando sobre isso, hoje conheceremos a Divindade que representa essa força viva que foi capaz de dar a vida a essa civilização. Falaremos de Anuket, a Deusa Egípcia do Nilo.
Anuket foi uma Deusa cultuada, principalmente, na região do Alto Egito, local no qual o deserto era mais presente e onde o rio Nilo adentrava ao território Egípcio. Como sabemos, ao longo da história do Egito, diversas cidades e regiões ganharam protagonismo, assim como, em outros momentos, quase desapareceram. No caso do Alto Egito, a cidade de Elefantina, durante o chamado Novo Império (1580 – 525 a.C.), ganhou certa notoriedade e Anuket foi ainda mais celebrada. A Deusa é representada como uma mulher segurando a chave ankh – a chave da vida, e seu toucado tem formato de plumas ou vegetais, o que representaria essa abundância de vida, a qual o Nilo carrega.
Como podemos notar, os símbolos desta Deusa estão diretamente ligados com o desenvolvimento daquela vida material e, não por acaso, Anuket também adquiriu o papel de ser a Deusa da sexualidade. Neste sentido, o que os Egípcios buscavam representar em Anuket era a vida nas mais distintas formas: desde a física, através dos vegetais no toucado da Deusa, até a espiritual, representada pela chave Ankh. Quanto a isso, é importante refletirmos sobre o valor de cada símbolo para a representação de um Deus. Quando analisamos as mitologias de modo superficial, nos contentamos apenas em criar pontos de relação e não aprofundar em suas ideias. Desse modo, nos limitamos a dizer, por exemplo, que Osíris era o Deus do submundo, assim como Maat era a Deusa da justiça. Entretanto, é fundamental entendermos que cada Divindade é, em síntese, uma força da natureza e um aspecto da própria existência. Assim, para os Egípcios – e também Gregos, Hindus e outras civilizações – Anuket e as outras Divindades estão para além de um aspecto objetivo, que também reside neles. Eles são uma ideia.
Neste sentido, um elemento profundo que Anuket carrega em si é ser também a Deusa da água. A água, para as mais diferentes civilizações, representa também esse aspecto da vida, em seu sentido material. Não precisamos ir a fundo para compreender essa ideia, afinal, basta percebermos o quão importante é a água para a manutenção de nossa vida física. Todos os seres vivos do nosso planeta necessitam dela, além de, simbolicamente, as águas representarem o sangue da terra, uma vez que leva e faz circular grande parte da energia do nosso planeta. De um ponto de vista mais transcendental, a água está ligada a essa matéria primordial que foi fecundada para criação do Universo. Nessa perspectiva, diferentes povos falam sobre essa relação direta da água com a vida na matéria, em oposição ao fogo, que seria a vida espiritual.
Apesar disso, Anuket também representa a vida interior, que também pode ser chamada de espiritual, uma vez que carrega a chave Ankh. Nesse aspecto, a Deusa é geradora não apenas de uma vida objetiva e material, mas também está relacionada com a nossa vida interior e o nosso desenvolvimento espiritual. No Egito, muitas Divindades têm essa representação, uma vez que, para esse antigo povo banhado pelo Nilo, o acesso ao Divino poderia ser conseguido por diferentes ideias. Todas, porém, convergem para uma mesma vivência: o desenvolvimento de uma vida interior, reflexiva e com resultados práticos. O Egito, em seu auge, tinha como grande missão ver a ordem cósmica em seu império, ou seja, toda a civilização buscava plasmar na vida as ideias da justiça, da ordem e da verdade. Desse modo, os Deuses não eram cultuados somente para pedir por boas colheitas ou outros desejos, mas eram vistos como uma forma de acessar essa realidade Divina.
Desse modo, a vida representada por Anuket é uma ideia que está expressa nas mais diferentes formas do cotidiano Egípcio, sendo a principal delas, naturalmente, a do rio Nilo e suas dádivas. Frente a isso, em seu aspecto mais popular, a Deusa foi cultuada por diversas pessoas que desejavam suas bênçãos, seja no pedido de boas chuvas ou mesmo para a conseguir gerar filhos. Tratando do seu culto, ele ocorria principalmente na cidade de Elefantina, porém, todo o Egito entrava em festa com as cheias do rio e nesse período Anuket era adorada em todo o império. Em uma parte do seu culto, fazia-se com que uma pequena barca com a Deusa fosse conduzida pelo Nilo e, ao longo de sua jornada, as pessoas, das mais distintas classes, desde o mais pobre dos camponeses até a nobreza, jogavam oferendas no rio. Os mais abastados arremessavam jóias, já os mais pobres ofertavam objetos de madeira ou alimentos.
Quando o Egito foi dominado pelo Império Macedônico e misturou sua cultura com a Helênica, Anuket foi reconhecida como a Deusa Héstia, a Deusa do fogo para os Gregos. Um aspecto curioso, digamos assim, uma vez que as duas Deusas compartilham de elementos distintos, porém, como vimos, ao aprofundarmos em suas ideias, podemos perceber que as duas velam pela vida interior, essa chama que arde dentro de cada um de nós e pode ser repassada sem se apagar. Assim, a vida interior é compartilhada e se reproduz, quando bem canalizada, de maneira muito mais rápida do que a vida física, sendo essa a vitória do espírito sobre a matéria. Afinal, quanto tempo leva uma gestação física? Nove longos meses de espera, cuidado e dedicação. A vida espiritual, quando latente, pode ser despertada em uma conversa, um texto, um comentário.
É claro que, como sabemos, essa não é uma tarefa simples de se fazer, mas que pode ocorrer em diferentes níveis. Basta lembrarmos da sensação que sentimos ao despertar para uma ideia, uma verdade, ou mesmo algo banal. De repente, sentimos que um novo mundo se abriu à nossa frente, não é mesmo? A vida passa a ter outras possibilidades e isso nos permite caminhar. Isso, como já devemos ter notado, não ocorre todos os dias, mas quando acontece é arrebatador. Por isso que, mesmo muito mais raro do que o nascimento físico, o nascimento espiritual pode ser mais rápido e propagar-se tal qual uma chama.
Por esta razão, a Deusa Héstia e a Deusa Anuket foram celebradas no período Helenístico, em que o Egito ficou sob o domínio da Macedônia. Mais importante do que isso, porém, é perceber que diferentes representações dessa ideia estão presentes nas mais distintas culturas, mostrando que há, de fato, algo que está para além das formas de cada civilização. A isso chamamos de ideias atemporais.
Visto tudo isso, parece-nos razoável buscarmos compreender as antigas mitologias para enxergar a mais preciosa das dádivas, que está para além das cheias do Nilo: as ideias. Com elas, poderemos semear a vida e torná-las presentes em nosso cotidiano. Assim, Anuket não será somente uma Deusa cultuada em um tempo antigo que já não existe mais, mas sim será uma ideia viva e presente em todos os nossos dias. Portanto, lembremos disso e busquemos semear a vida e suas graças ao longo da nossa existência.