A mitologia nos transporta ao passado. Sempre que nos referimos a mitos quase automaticamente nos lembramos das lendárias histórias de heróis, Semi Deuses e Divindades das centenas de culturas humanas que floresceram ao longo da História. Para além desse aspecto fantástico, próprio das narrativas mitológicas, devemos sempre nos lembrar dos símbolos e ideias que permeiam essas narrativas. Como bem sabemos, os mitos são muito mais do que uma série de histórias contadas pelos homens e mulheres do passado, eles são, em última análise, uma das maneiras de transmitir a Sabedoria e as ideias que regiam a civilização ao qual pertenciam.
Sendo assim, podemos afirmar que toda civilização, antiga ou moderna, tem seus mitos, ou seja, possuem ideias que dão a “tônica” daquele momento histórico. Apesar do senso comum colocar o mito – e a mitologia como um todo – como um sinônimo para “mentira”, “algo falso” ou um relato puramente fantasioso, são justamente neles que se guardam os tesouros mais importantes que cada sociedade humana deixou como legado. Por isso estudar mitologia e seus símbolos está além de uma mera curiosidade intelectual, mas é uma maneira interessante de (re)descobrir como as mais diversas civilizações pensavam sobre o Universo, a Natureza, o próprio Ser Humano e o seu papel no mundo.
Pensando nisso, hoje falaremos de uma Divindade fundamental para o Antigo Egito, que por muitos séculos foi considerada o “Deus dos Deuses” para o povo do Nilo: Amon-Rá.
Para entendermos a história de Amon-Rá é fundamental compreendermos sobre a própria Civilização Egípcia. Como sabemos, o Antigo Egito foi uma civilização milenar e que até hoje influencia o mundo. Apesar de existir ainda hoje enquanto território, o Egito que estamos abordando nasceu, segundo os egiptólogos, em torno do ano 3.100 a.C. quando duas regiões, chamadas de Alto e Baixo Egito, se unificaram. Certamente a cultura egípcia já estava estabelecida bem antes dessa datação, mas não se sabe ao certo a quanto tempo ela já imperava.
O fato é que com a unificação dessas duas regiões o centro de poder – e também de culto de algumas Divindades – ficou estabelecido na região que chamamos de Baixo Egito, próximo ao Delta do rio Nilo. Como uma civilização politeísta, cada região do Egito tinha cultos a Deuses específicos e a depender da localidade tinham-se Divindades mais ou menos influentes. Dentro desse contexto, inicialmente o Deus Amon era visto como uma deidade “inferior”, com pouca relevância e templos. Sua cidade, Tebas, ficava longe da capital Mênfis e seus sacerdotes não tinham tanto prestígio dentro da lógica religiosa egípcia.
Apesar disso, Amon era tido como o Deus do oculto, do invisível. Sua representação era a de um homem segurando um cajado com uma coroa de plumas na cabeça. Há também outras representações que colocam Amon com cabeça de carneiro, animal que o representava. Ele também estava associado ao vento, uma vez que não podemos vê-lo, mas senti-lo a todo momento. Além disso, Amon era tido como onipresente, ou seja, estaria em todos os lugares.
Quando Tebas passou a ser a capital do Egito, em torno do ano 2040 a.C., a Divindade que quase ninguém conhecia ganhou o “status” de principal Divindade do Império Egípcio. Juntou-se assim os atributos de Amon com os de uma outra Divindade bastante celebrada no panteão egípcio, Rá, fazendo surgir o Deus que seria considerado “o pai dos Deuses”: Amon-Rá.
Rá era o Deus do Sol e da Vida, aquele que com sua barca garantia que o astro-rei nascesse todas as manhãs. Entretanto, quando os dois Deuses se associaram trouxe consigo um importante simbolismo para a cultura egípcia. Amon-Rá passou a ser o Sol externo, visível, como também o Sol interno e invisível, mas que está sempre presente. Se refletirmos sobre a ideia do Sol sendo aquele que carrega a Vida – e que garante a nossa existência – Amon-Rá seria a Divindade responsável por garantir não apenas a vida física, objetiva, mas também a vida interna, advinda da reflexão e da Sabedoria dos indivíduos frente suas experiências.
Pensando sobre isso, podemos refletir sobre a importância de termos esses dois “sóis” em nossa vida. Muitas vezes, por exemplo, estamos plenos de vida “fora”, externa, mas internamente nos sentimos vazios. Talvez tenhamos um bom emprego, uma série de conquistas materiais e tudo aquilo que dizem ser o “sucesso” material, porém, o que ocorre se nenhuma dessas vitórias reflete em uma vida interior e feliz? Hoje, infelizmente, é muito comum vermos pessoas que alcançaram vitórias sociais, seja no campo profissional ou pessoal, mas que ainda assim não se sentem realizadas. Essa é a falta que faz uma vida interna, que é invisível para o resto do mundo, mas que todos nós podemos sentir vibrar em nossos corações.
Assim, Amon-Rá seria o responsável por garantir essas duas vidas, esse nascimento dos dois sóis e a plenitude de uma vida realizada. Não por acaso ele tornou-se o Deus dos Deuses e protetor do Faraó, que era o seu representante na terra. O faraó, como governante do Egito, tinha como responsabilidade “fazer o sol nascer” todos os dias, ou seja, era seu papel garantir a sobrevivência dos seus cidadãos. Visto isso, ele não era apenas a representação da Divindade em seus aspectos físicos, mas um exemplo a ser seguido por todos. O cargo de faraó, diferentemente do que prega o senso comum, era pautado nos deveres e compromissos e não apenas nas regalias e privilégios que se tinha por ser o governante do Império.
Outro aspecto interessante quando falamos de Amon-Rá é que sua expressão se dá exatamente na ordem que escreve-se o seu nome. Em linhas gerais, segundo o simbolismo do Deus, primeiro existe o Sol invisível, interno, para depois existir o Sol físico, que todos nós conhecemos. Por trás desse jogo do invisível – e oculto – e o visível guarda-se uma ideia fundamental que permeia a própria filosofia: a de que tudo que existe objetivamente no mundo precisa existir antes, em um outro mundo, mais subjetivo e “invisível”.
Conhecemos essa relação a partir da “Teoria das ideias” de Platão, porém, mais de 2 mil anos antes do filósofo grego existir os egípcios já tinham noção dessa relação por meio de Amon-Rá. Colocando em exemplos práticos, pensemos no seguinte: Digamos que queremos sair de nossa casa e ir até o museu que há em nossa cidade. Antes de objetivar essa ida, ou seja, sair de casa e percorrer o caminho até o destino, iremos, naturalmente, pensar no trajeto que faremos e nos seus detalhes. Assim, antes de fazermos o caminho, ele precisou existir em nossa mente, no formato de uma ideia. Logo, ele partiu do “invisível” – pois não enxergamos o pensamento – para o “visível”.
E assim é com todas as coisas. Antes de existir uma cadeira, ou mesa ou celular, existiu a ideia desses objetos. Essa é a famosa Teoria das Ideias de Platão que no Antigo Egito se traduziu como a percepção do Deus Amon-Rá. Dito isso, é interessante refletirmos sobre como nossas ideias se tornam realidades em nossa vida cotidiana. Se, por exemplo, cultivamos diversas ideias pessimistas e não acreditamos que o Ser Humano possa ser bom e que a vida, afinal, tem sentido, como será que estamos vivendo? Provavelmente a vida que temos fora será um espelho do que acreditamos fielmente em nosso íntimo. Não se trata, deixemos claro, de nos “alienarmos” frente aos problemas do mundo, sabemos que eles existem e ocorrem cotidianamente, mas sim de enxergarmos a vida como um campo de oportunidades e de crescimento, e percebermos que não precisamos somente sofrer os impactos da vida, mas aprender frente os desafios que nos são impostos.
Amon-Rá, portanto, rege o mundo a partir desse brilho invisível, interno e ideal. Assim como desse Sol invisível nasce a vida externa, também em nós a vida interna fará brotar a vida externa, própria do Ser Humano. O mito, enfim, torna-se uma realidade a partir do momento em que conhecemos suas ideias e simbolismos, sendo eles a verdadeira fonte de Sabedoria que a Humanidade vem legando às novas gerações. Sejamos, portanto, os que colherão os frutos dessa árvore do saber e façamos de nós suas sementes para que, um dia, quem sabe, o Sol interno de Amon-Rá brilhe fortemente no mundo.