Há livros que parecem resistir ao tempo como se fossem feitos não de papel, mas de um tecido invisível, entrelaçado com a própria essência da imaginação humana. Alice no País das Maravilhas, publicado em 1865 por Lewis Carroll, é um desses raros exemplos de obras que não apenas encantam crianças, mas que também atravessam gerações, conquistam adultos e permanecem vivas em cada novo olhar que sobre elas repousa. A história de Alice é, para muitos, como um sopro de liberdade, um convite para mergulhar na fantasia e desafiar a lógica do mundo adulto.

Carroll, cujo nome verdadeiro era Charles Lutwidge Dodgson, foi um matemático e professor em Oxford, mas também um contador de histórias que compreendia, como poucos, o poder da imaginação. Foi numa tarde de verão, em um passeio de barco com as irmãs Liddell, que nasceu a narrativa. Para entreter Alice Liddell, o autor improvisou uma história sobre uma menina curiosa que, ao seguir um coelho apressado, encontra-se em um mundo governado pelo absurdo. Essa história oral foi tão encantadora que a pequena Alice pediu que fosse escrita, e assim começou a germinar um dos maiores clássicos da literatura mundial.

Desde a sua primeira publicação, Alice no País das Maravilhas vem sendo lido não apenas como uma história infantil, mas como um verdadeiro espelho da condição humana. Cada cena aparentemente absurda reflete, na verdade, uma metáfora da vida: nossas buscas, nossas confusões de identidade, nossos encontros com figuras autoritárias, o medo do tempo e, sobretudo, a necessidade de manter acesa a chama da curiosidade.
O encontro com o Maravilhoso
Tudo começa de modo simples: uma tarde quente, uma menina entediada, um livro sem gravuras, e então, de repente, um coelho com pressa aparece diante dos seus olhos. Carroll sabia que a genialidade não precisa de grandes efeitos. Na verdade, basta um detalhe inesperado para romper a normalidade. O Coelho Branco, com seu colete e relógio de bolso, surge como uma brecha entre dois mundos, entre o visível e o invisível, o cotidiano conhecido e o universo maravilhoso.
Ao segui-lo, Alice não apenas inicia sua aventura, mas simbolicamente abre mão das certezas do mundo adulto para se lançar em um espaço onde a lógica já não dita as regras. É o começo de uma grande aventura em busca de si mesmo e de sentido.
A queda pela toca do coelho é um dos momentos mais emblemáticos da literatura universal. Longa, vertiginosa e repleta de estranhos objetos que passam diante de seus olhos, essa descida é mais do que um deslocamento físico: é um mergulho interior, uma travessia para dentro de si mesma. Um ponto interessante a se notar quanto a isto é que, enquanto a maioria das histórias infantis da época buscava transmitir lições morais claras, Carroll escolheu o caminho oposto: o da subjetividade.

O País das Maravilhas não oferece segurança, mas sim instabilidade. E é exatamente nesse terreno instável que Alice precisa aprender a caminhar. Essa escolha de narrativa transformou Alice no País das Maravilhas em um marco, pois ofereceu às crianças e aos adultos não um sermão – algo dogmático e sem brechas para novas visões –, mas a experiência da imaginação em estado puro.
Essa é uma das primeiras mágicas que este livro consegue fazer conosco. Ao acompanhar a queda de Alice, o leitor também se vê transportado para o País das Maravilhas, que, no fundo, é este mesmo mundo interno que habita em cada um de nós. A cada nova página, somos convidados a relembrar o espanto da infância, quando qualquer coisa parecia possível, quando o tempo se dobrava e o mundo se reinventava diante de nossos olhos.
Se a queda inaugura a viagem, os personagens que a povoam dão corpo ao absurdo e ao encanto do País das Maravilhas. Cada figura que Alice encontra tem uma função simbólica e, muitas vezes, serve como espelho distorcido de aspectos da condição humana em geral. Sobre esse assunto em específico, temos um texto aqui no portal que o aborda com mais profundidade. Caso queira saber mais, basta clicar aqui.

Ainda assim, falaremos um pouco sobre cada personagem e seu simbolismo. Começando pelo Coelho Branco, que é o motor da história. Sempre atrasado, sempre nervoso, ele representa a obsessão pelo tempo, a angústia moderna de que estamos constantemente perdendo algo. Quem de nós nunca se viu nessa situação? Existem dias, por exemplo, que vivemos de modo tão apressado que não reparamos em nada ao nosso redor, apenas o relógio que insiste em marcar as horas. É curioso perceber como esse personagem, que mal interage diretamente com Alice, se torna um dos mais icônicos da obra; porém, ele é um reflexo dos tempos em que vivemos.
Outro personagem marcante na obra é o Gato de Cheshire, com seu sorriso enigmático que permanece mesmo depois que o corpo desaparece. É possível que esse seja o mais filosófico dos personagens. Suas conversas com Alice revelam sempre chaves para reflexão e nos levam a perguntas existenciais profundas. Quando Alice pergunta para onde deve ir, por exemplo, o gato responde que depende de onde ela quer chegar. E, se não sabe aonde quer ir, então qualquer caminho serve. Essa aparente brincadeira contém uma reflexão séria: como orientar-se na vida sem ter clareza de propósito? É possível traçar um caminho quando não se tem um destino?

Já a Rainha de Copas encarna o autoritarismo. Seus mandos e desmandos, quase sempre seguidos da frase “Cortem-lhe a cabeça!”, expõem a arbitrariedade do poder. Ela não governa pela razão, mas pelo medo. Ao mesmo tempo, Carroll a retrata de modo caricatural, lembrando-nos que todo poder absoluto, quando observado de perto, se revela ridículo.
Entre todos, porém, é o Chapeleiro Maluco e sua festa do chá que talvez sejam os mais inesquecíveis. O encontro com o tempo parado, com diálogos que giram em círculos e com enigmas sem respostas, expõe de maneira lúdica uma profunda reflexão sobre o tempo e a linguagem. O chá eterno, sem início nem fim, é um retrato da infantilidade humana de tentar controlar aquilo que é, por natureza, incontrolável.
O tempo não pode parar, mas dentro de nós há um mundo em que podemos ser plásticos, criativos e construir grandes percepções sobre a existência. É um mundo de ideias e potenciais que precisam de vontade para que venham ao mundo físico e objetivo. É nesse mundo atemporal e interno que vive o chapeleiro.
É importante ressaltar que esses personagens não são meras figuras excêntricas, mas encarnações de dilemas universais. É por meio deles que Alice e nós, leitores, somos confrontados com perguntas sobre identidade, lógica, poder, tempo e propósito. O País das Maravilhas é um palco, e cada personagem, com sua peculiaridade, é um ator que ajuda Alice a refletir sobre quem ela é e sobre o mundo que deixou para trás.
Ideias e temas principais em Alice no País das Maravilhas
Por trás da superfície aparentemente leve e divertida de Alice no País das Maravilhas, escondem-se alguns dos temas mais profundos da condição humana. Carroll não escreveu um tratado filosófico, mas criou um universo tão rico que nele cabem interpretações variadas, capazes de dialogar com diferentes campos do saber.
O tempo é um desses temas centrais. Como já vimos, o Coelho Branco, sempre apressado, simboliza a obsessão moderna pelo relógio. Já a festa do chá, em que o tempo está suspenso e as horas não avançam, representa o oposto: um mundo em que o tempo perde sua linearidade e se transforma em repetição eterna. Para o leitor, essas cenas evocam a pergunta: somos senhores do tempo ou prisioneiros dele?
O tempo é uma questão filosófica desde tempos imemoriais, pois nos leva a uma reflexão sobre a morte. Quando nosso tempo de vida acaba, morremos, e o que vem depois? O que nos resta? Quando jovens, achamos que o tempo é abundante e, por isso, o desperdiçamos; porém, ao envelhecer, queremos controlar cada segundo e evitar que ele passe. Ficamos preocupados com o futuro incerto, e o temor da morte se torna cada vez mais real. Talvez seja daí que nasça a nossa obsessão em controlar o tempo, algo que é impossível de ser realizado.
Outro tema recorrente é o poder. A Rainha de Copas, com sua fúria desmedida e suas ordens de decapitação, é a caricatura perfeita do autoritarismo. Seu poder é absoluto apenas porque ninguém ousa contestá-la até que Alice, em um ato de coragem, percebe que ela não passa de uma figura ridícula. Aqui, Carroll nos lembra que todo poder despótico se sustenta no medo, e que a liberdade começa quando ousamos rir do tirano.
O autor nos apresenta uma ideia antiga, mas que poucas vezes colocamos em prática: a de entender que os poderosos só o são porque a sociedade os colocou nessa posição, e é a mesma sociedade que tem a obrigação de lutar contra suas opressões e abusos de poder.

A linguagem também ocupa papel central. Os jogos de palavras, os enigmas, os trocadilhos revelam o caráter ambíguo e criativo da linguagem. Carroll mostra que as palavras não são apenas instrumentos de comunicação, mas também de confusão. O diálogo com a Lagarta, que insiste em respostas enigmáticas, ou com o Gato de Cheshire, que desafia Alice a repensar o sentido das coisas, são exemplos de como a linguagem pode ser, ao mesmo tempo, ponte e abismo.
Esses temas fazem de Alice no País das Maravilhas não apenas uma fábula, mas também um espelho das contradições humanas. Ler a obra é, portanto, mais do que acompanhar uma aventura: é participar de um diálogo com as questões fundamentais da existência. Não somos os mesmos após finalizar suas páginas.
A recepção da obra
Para além da obra, é fundamental entendermos que o sucesso de Alice no País das Maravilhas está atrelado ao seu contexto histórico. Logo, é importante conhecer um pouco de como o mundo estava no momento em que o livro começou a ser divulgado. Voltemos então a Era Vitoriana, na segunda metade do século XIX (O livro é publicado em 1865), um período marcado por transformações sociais profundas, avanços tecnológicos e uma rígida moralidade na sociedade inglesa. A literatura infantil da época, em grande parte, ainda seguia um modelo didático, voltado para a instrução e o disciplinamento das crianças. Nesse contexto, a obra de Lewis Carroll surgiu como uma anomalia encantadora.

Longe de oferecer lições morais explícitas, Carroll entregava às crianças uma aventura em que a lógica era subvertida, os adultos ridicularizados e a imaginação elevada à sua forma mais pura. A recepção foi, em sua maioria, entusiástica. O livro rapidamente se tornou um sucesso editorial, conquistando não apenas o público infantil, mas também adultos que se viam fascinados pelo engenho linguístico e pela originalidade da narrativa.
Críticos contemporâneos perceberam a ousadia da obra. Alguns a consideraram pouco apropriada, por fugir às convenções educativas, mas a maioria reconheceu em Carroll um talento raro, capaz de reinventar o gênero literário destinado às crianças. Em pouco tempo, a história de Alice atravessou fronteiras, sendo traduzida para diversos idiomas e ganhando o mundo.
Além disso, a longevidade da obra, se tornando um clássico moderno, mostra que esse sucesso não foi efêmero. Com o passar das décadas, Alice no País das Maravilhas consolidou-se como uma das principais obras da humanidade. Sua capacidade de dialogar com diferentes idades garantiu-lhe uma longevidade incomum. As crianças encontravam nela aventura e fantasia; os adultos, ironia e filosofia. Essa dupla camada de leitura é, talvez, um dos segredos de sua imortalidade.
Hoje, mais de um século e meio depois, a obra continua a ser lida, estudada e reinterpretada. Nas universidades, é analisada sob a ótica da filosofia, da linguística e da psicanálise. Nas escolas, ainda encanta jovens leitores que descobrem o prazer da imaginação. Carroll conseguiu o que poucos autores alcançam: criar uma história que nunca envelhece, porque fala não apenas do mundo de sua época, mas também da própria condição humana.
Frente a esse sucesso, foi natural que a obra ganhasse novos ares com o advento do cinema. Poucos livros tiveram tantas versões cinematográficas quanto Alice no País das Maravilhas. A riqueza de seu universo, povoado por personagens excêntricos e cenas memoráveis, fez dele um material irresistível para cineastas ao longo das décadas.

A adaptação mais célebre é, sem dúvida, a animação da Disney de 1951. Embora não siga fielmente o enredo do livro, o filme conseguiu captar o espírito lúdico e colorido do País das Maravilhas. A estética vibrante, os diálogos musicais e a caracterização marcante dos personagens contribuíram para fixar na memória coletiva uma imagem definitiva de Alice. Para muitas gerações, a Alice loira de vestido azul, o Coelho Branco nervoso e o Chapeleiro Maluco com sua cartola verde tornaram-se sinônimos da obra de Carroll, de modo que a grande parte do público atual deve, provavelmente, ter conhecido primeiro o filme de 1951 e apenas depois se debruçaram sobre o livro.
Décadas mais tarde, em 2010, Tim Burton trouxe uma nova leitura cinematográfica, desta vez em live action, com Mia Wasikowska como Alice e Johnny Depp no papel do Chapeleiro. Diferente da versão da Disney, Burton optou por uma abordagem mais sombria, com tons góticos e um enredo que mistura elementos dos dois livros de Carroll: “Alice no País das Maravilhas” e “Através do Espelho”. Nessa adaptação, Alice não é mais uma menina curiosa, mas uma jovem em busca de seu lugar no mundo, conferindo à narrativa um tom de amadurecimento.

O curioso é que, em todas essas adaptações, mesmo com suas características distintas, a essência permanece: o convite ao espectador para se perder em um universo onde as regras são outras, onde o impossível se torna cotidiano e a imaginação é a única bússola confiável.
Porém, não foi apenas o cinema que adaptou a história de Alice. O teatro, talvez mais do que o cinema, soube explorar a plasticidade do texto de Carroll. Desde o final do século XIX, Alice no País das Maravilhas foi adaptado para palcos de diferentes países, sempre com interpretações diversas. Algumas encenações buscaram ser fiéis ao livro, recriando suas cenas icônicas com cenários grandiosos; outras preferiram explorar o caráter simbólico da obra, transformando-a em uma alegoria sobre identidade, poder e absurdo.
Já nas artes visuais, o impacto foi igualmente profundo. As ilustrações originais de John Tenniel, publicadas na primeira edição do livro, tornaram-se imagens canônicas. O Gato de Cheshire sorridente, a Rainha de Copas com olhar furioso, a própria Alice de vestido simples se tornaram figuras que ultrapassaram as páginas e se tornaram ícones visuais, reproduzidos e reinventados ao longo de gerações. Alice, portanto, não pertence apenas às páginas do livro, mas a um universo cultural muito mais amplo. É uma obra viva, que se desdobra em linguagens distintas, encontrando sempre novos modos de encantar e provocar reflexões.
O legado de Alice no País das Maravilhas
Visto todas essas questões, podemos afirmar que poucas obras alcançaram um impacto tão duradouro na história da literatura quanto Alice no País das Maravilhas. Lewis Carroll não apenas criou uma narrativa fascinante, mas também abriu um caminho para uma nova forma de escrever para crianças e adultos. Ao romper com o modelo moralista vigente, Carroll estabeleceu que a literatura infantil podia ser um espaço legítimo de liberdade criativa, onde o humor, o absurdo e a fantasia não precisavam estar a serviço de uma lição de conduta, mas podiam existir por si mesmos, como expressão da imaginação.

Essa ruptura abriu as portas para autores posteriores explorarem com mais ousadia o universo da fantasia. Escritores como J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, dois grandes escritores da literatura fantástica do século XX, ainda que em registros diferentes, encontraram em Carroll uma inspiração para construir mundos inteiros, repletos de regras próprias, mas permeados de simbolismos. A noção de que uma história podia criar um universo autônomo, em que as leis da realidade eram suspensas, deve sua existência em grande parte à ousadia de Carroll.
O legado literário da obra é também o de seu personagem principal. Alice tornou-se arquétipo: a criança curiosa que se lança ao desconhecido, que questiona o mundo à sua volta e que descobre, em meio ao absurdo, a força da imaginação. Esse arquétipo atravessou fronteiras, aparecendo em obras diversas, das mais infantis às mais experimentais, sempre como símbolo da curiosidade que desafia limites.
Assim, Alice no País das Maravilhas deixou de ser apenas um livro e transformou-se em ponto de referência. Nos dias atuais, ler a obra de Lewis Carroll é compreender não apenas a literatura do século XIX, mas também as transformações que permitiram a literatura fantástica florescer no século XX e continuar relevante até hoje.
Esse legado cultural mostra que Alice no País das Maravilhas não é apenas um livro lido, mas um imaginário compartilhado dentro da nossa sociedade devido à sua influência em tantas gerações. É como se Carroll tivesse criado não apenas uma história, mas uma linguagem simbólica que continua a inspirar e provocar em múltiplos contextos. Ao fechar o livro, o leitor não encontra respostas definitivas, mas um impulso. Um desejo de olhar o mundo com mais leveza, de questionar as verdades estabelecidas, de se permitir brincar com as próprias incertezas. Carroll não escreveu para encerrar dúvidas, mas para multiplicá-las. E é nesse gesto que reside sua grandeza.
Por isso, mais de 150 anos depois, Alice no País das Maravilhas continua tão vivo. Porque cada um de nós, em algum momento, precisa seguir um coelho branco, precisa cair em uma toca escura, precisa se perder para se reencontrar. O País das Maravilhas não é apenas um lugar imaginário: é a metáfora da própria existência, com seus enigmas, seus paradoxos e suas belezas inesperadas.
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