O filme “A Escavação” é um convite à reflexão sobre a importância da auto didática, que é a capacidade de instruir-se sem o auxílio das instituições formais de ensino. Ele conta a história real, de uma das maiores descobertas arqueológicas do Reino Unido, levada a cabo por um arqueólogo autodidata, Basil Brown. Além também de convocar uma reflexão transversal sobre a fugacidade da vida e ao mesmo tempo o que se eterniza a partir dessa passagem.
Tudo começa quando a Sra. Edith Pretty, dona de uma enorme propriedade rural, contrata Basil Brown para escavar alguns montes em suas terras a fim de investigar vestígios históricos. Após escavar um dos montes, ele descobre um navio anglo-saxão, supostamente utilizado num funeral de alguém importante, como um rei. Quando a notícia da descoberta se espalha, um arqueólogo renomado da Universidade de Cambridge chega e assume a pesquisa, sob alegação de se tratar de um assunto de importância nacional e Brown, desprezado por não ter a mesma titulação, apesar da enorme experiência, é relegado a assistente da pesquisa.
Nesse sentido, o filme sutilmente provoca uma reflexão sobre um paradoxo que é muito comum em nosso tempo: o conhecimento frente à vivência. Há quem domine as formalidades do conhecimento, ou seja, detenha um currículo recheado de títulos, com vínculos em universidades renomadas, e até seja conhecido por uma performance irretocável de erudição e intelectualidade, mas isso não garante o conhecimento genuíno da matéria. E há os que não tiveram condições de atender a todos os requisitos que as titulações exigem, porque em vez de cumprirem todos esses rituais, estavam de fato praticando a matéria.
Estudar não necessariamente é escrever centenas de artigos e fazer dezenas de cursos em instituições consagradas. Estudar de fato, é se conectar conscientemente à matéria, seja através de livros, seja pela experiência prática, vivencial. Esse era o caso de Basil Brown, que mais do que um personagem de uma dramatização, é alguém que realmente existiu e cuja sapiência e destreza no domínio da técnica de escavações arqueológicas contribuíram para que a humanidade tivesse acesso a grandes achados da história, no entanto seu reconhecimento foi muito tardio em razão da ausência de titulações e de fama no meio acadêmico.
Curiosamente, diversos pensadores da humanidade não detinham títulos nem formações acadêmicas. Sócrates, por exemplo, só sabemos alguma coisa dele, porque um de seus discípulos, Platão, resolveu transcrever o que aprendera com o seu mestre. Na contemporaneidade também vemos isso, Freud era criticado pelo meio acadêmico embora seja hoje reconhecido como o pai da psicanálise. Tal era também o repúdio das instituições formais ao psicólogo analítico Carl Jung, do mesmo modo Einstein também nunca foi bem contemplado pela academia. A história nos mostra que o pensamento humano não cabe dentro de currículos, nem de títulos, nem em normas técnicas de produção. A Alma Humana é livre, o pensamento avança à medida que nos lançamos em busca da Verdade com sentimentos profundos. É o que vemos em Brown neste filme. Ele mergulhou naquele trabalho com um nível de concentração tal que toda a realidade a sua volta passou a limitar-se apenas àquilo, não respondia às cartas da esposa, passou a morar literalmente dentro do sítio arqueológico e não tinha dia, nem noite, nem chuva, nem sol que o atrapalhasse, ele estava determinado, focado unicamente na descoberta. Essa entrega, esse nível de busca é mais importante que todos os títulos acadêmicos e que miríades de páginas de tratados. Descobrimos a Verdade das coisas quando nos lançamos com Amor no que estamos fazendo. Há uma força misteriosa que move um Ser Humano determinado em direção à Verdade.
Ao passo que a trama se desenvolve, aparece em paralelo o drama da Sra. Pretty lutando contra uma doença terminal, assim como a relação corroída pelo tempo de Brown com sua esposa. Esses aspectos transversais sugerem que a narrativa se incline para uma reflexão sobre o tempo, já que todos estão debruçados sobre um túmulo envelhecido por séculos e séculos, enquanto também envelhecem um a um em suas experiências pessoais. Aquelas ruínas de embarcações que começavam a despontar por baixo da terra escavada, aos olhos do arqueólogo Brown, estão cheias de vida, ele consegue ver o Rei que foi sepultado ali dentro vivo, cercado de serviçais, imponente, porque Brown, assim como nós, detém uma potência chamada Imaginação, que é a capacidade de migrar do mundo fático para o mundo das suposições, um mundo abstrato, com bases no pensamento. Imaginamos sempre, pois o mundo não é imaginado, o concreto é frio e duro demais para carregarmos. Morremos a cada segundo, tudo em nós é passageiro, nosso corpo físico, nossa pele, nossos cabelos, nossas energias, nossas emoções, nosso vigor mental, tudo está passando, tudo está sendo devorado pelo tempo.
Ao assistirmos esse filme, estamos diante de uma ideia manifesta naquele navio enterrado ritualisticamente no século VII, que foi descoberto em 1939 por Basil Brown, escrito no romance de John Preston em 2007 e adaptado para o cinema em 2021 por Simon Stone. Um momento que atravessa quase quatorze séculos e chega diante dos nossos olhos, é algo que quer dizer alguma coisa profunda. Convivemos o tempo todo com duas ordens de realidade, embora em geral não nos demos conta. Uma ordem de realidade transitória, experiencial, efêmera e outra ordem de realidade eterna que usa a transitória para chegar à nossa compreensão. Por trás de cada fato que envolve a nossa vida há uma ideia que é eterna. Por exemplo, os batimentos cardíacos nos passam uma mensagem ligada ao Ritmo, à Constância, à Vida, à Generosidade. Há um órgão tão generoso em nós quanto o nosso coração, que trabalha diuturna e ininterruptamente para nos manter vivos, irrigando o sangue por todas nossas veias e artérias? O coração é passageiro, morre com o tempo, mas a mensagem que ele representa é eterna, a mensagem de Amor, de Doação, de um trabalho voltado para o Todo.
Este mundo de fatos históricos, de experiências vividas é só um meio para que as ideias eternas se apresentem para nós. O filósofo Platão, em sua obra, torna essa dualidade bem evidente, ao falar de um mundo das coisas e de um mundo das ideias, os quais na verdade formam a mesma realidade, como faces de uma mesma moeda. Diante dessa percepção, devemos passar a olhar a Vida com mais atenção para o que se transmite através dela. A escavação nos convoca a pensar sobre isso. Assista ao filme com esta chave, de que nem tudo é passageiro, há uma mensagem eterna se retransmitindo nas paisagens que desfilam diante dos nossos olhos. Estejamos atentos.