A xilogravura é uma técnica de pintura muito antiga. É provável que ela tenha se originado na China, sendo conhecida por eles desde o século VI. Para fazer uma xilogravura, o artista entalha o desenho na madeira, cobre com as cores que deseja e imprime a pintura na tela.
Talvez a xilogravura mais conhecida seja “A Grande Onda de Kanagawa” do mestre japonês Hokusai. Nela vemos uma relação equilibrada do Ser Humano com a grandiosidade da Natureza. Os navegantes se curvam em sinal de temor e respeito à grande força dos mares, enquanto o monte Fujimori, ao fundo, mantém-se erguido, por compartilhar da mesma grandeza natural da grande onda.
Durante a Idade Média, quando a abertura de rotas comerciais permitiu o comércio de papel durante o século XIV, essa técnica chegou à Europa e se popularizou como uma forma de ilustrar os livros. Já no século XV, após a invenção da imprensa por Guttenberg, a impressão e a gravura de imagens em madeira chegou a Portugal. Aos poucos, a madeira foi sendo substituída pelo metal, mas antes disso a xilogravura chegou ao Brasil com a coroa portuguesa. Se você lembrar das aulas de história, vai recordar que a porta de entrada do país era o litoral e que começamos a aventura da conquista portuguesa pelo Nordeste.
A xilogravura tornou-se então parte de uma importante expressão cultural da região, a Literatura de Cordel. Esta se caracteriza pela impressão de folhetos com histórias do cotidiano do povo nordestino, ilustradas com xilogravuras. Assim, Carlos Drummond de Andrade definiu a Literatura de Cordel:
“A poesia de cordel é uma das manifestações mais puras do espírito inventivo, do senso de humor e da capacidade crítica do povo brasileiro, em suas camadas modestas do interior. O poeta cordelista exprime com felicidade aquilo que seus companheiros de vida e de classe econômica sentem realmente. A espontaneidade e graça dessas criações fazem com que o leitor urbano, mais sofisticado, lhes dedique interesse, despertando ainda a pesquisa e análise de eruditos universitários. É esta, pois, uma poesia de confraternização social que alcança uma grande área de sensibilidade”
Durante séculos o cordel foi a principal fonte de produção e consumo literário do povo das cidades no interior do nordeste. Isso levou a criação de uma tradição de xilogravuristas. Dentre eles, J. Borges, José da Costa Leite, Mestre Dila, Amaro Francisco, Abraão Batista, José Lourenço e muitos outros.
J. Borges, por exemplo, é reconhecido como um dos maiores xilogravuristas vivos do mundo. Autodidata, aos vinte e um anos ele começou a produzir cordéis. Como o dinheiro era curto, ele mesmo teve que entalhar na madeira suas ilustrações. Começava aí uma história de produção de cultura das mais ricas deste país.
Na década de setenta o pesquisador, literário e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Ariano Suassuna, iniciou um movimento que buscava uma arte erudita de raízes populares. Esse movimento ficou conhecido como Movimento Armorial e levou a intelectualidade Pernambucana para o contato direto com as expressões culturais do povo. Nessa procura por uma arte brasileira, Ariano encontrou J. Borges e passou a acompanhá-lo como padrinho artístico. O cordelista brasileiro começou então a ser descoberto por outros círculos. Ele chegou a ilustrar o livro “As palavras andantes” de Eduardo Galeano. Em 1975, na primeira versão da novela Roque Santeiro, suas gravuras foram usadas no tema de abertura. Seus trabalhos foram expostos em Zurique, Novo México, Estados Unidos e em países da Europa. Ele recebeu a Comenda da Ordem do Mérito do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi premiado pela UNESCO, foi tema de reportagem do NY Times e ilustrou o calendário da ONU para o ano de 2002. Hoje é considerado um dos patrimônios vivos de Pernambuco.
É o Movimento Armorial que vai gerar outro grande xilogravurista do Brasil, Gilvan Samico. Ao contrário de J. Borges, que tem uma formação popular e trata do cotidiano e das questões do mundo a sua volta, Samico é filho da capital do Estado, Recife. Embora também seja autodidata, ele estudou na escola de artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo e na Escola Nacional de Belas Artes, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda permaneceu dois anos vivendo na Europa. Ele chegou lá em 1968, após receber a viagem como prêmio no 17º Salão Nacional de Arte Moderna do MAM-RJ. Morou em Olinda, Pernambuco, e foi professor de xilogravura na Universidade Federal da Paraíba.
Durante um momento de reflexão sobre quais os caminhos artísticos deveria tomar, Samico aconselhou-se com o mesmo Suassuna que acolheu J. Borges. Ariano tinha a resposta na ponta da língua: se o amigo quisesse uma obra realmente original, deveria aproveitar suas raízes nordestinas.
A obra de Samico é cheia de ricos simbolismos, ao mesmo tempo em que é abençoada pela tradição religiosa de seu povo. Em “Urubu de Pedro” (1963), por exemplo, a vida dos retirantes que fogem da seca é facilmente percebida. O homem foge da seca, mas não de sua terra: ele foge da miséria, do sofrimento e da morte. Ampliando essa ideia, talvez possamos refletir que, em algum grau, nos sentimos tal qual os retirantes da obra. Quem de nós não gostaria de evitar esses males? Ninguém gosta de sofrer e todos tememos a morte, mas isso ocorra, talvez, por não conseguirmos enxergar nada além da dor que elas nos causam. Quando sentimos dor e compreendemos a razão dela existir a aceitamos com mais naturalidade. Em verdade, se achamos sua causa e razão de existir, até passamos a aceitá-la, como um processo natural da vida. Portanto, a xilogravura de Samico dialoga diretamente com uma dor humana, que não é necessariamente a seca, a fome e a miséria, mas que todos nós a compreendemos.
Outra obra chamada “A Luta dos Anjos?” (1968) marca a arte da xilogravura. Inspirado em uma temática religiosa, podemos ver na obra as forças do bem e do mal que lutam pela Alma Humana. O Homem, deitado entre dois animais, apenas observa a luta desses dois aspectos do mundo. Essa luta entre bem e mal é uma temática tão antiga quanto o próprio homem. Diversas civilizações criaram mitos que nos contam sobre essa ideia e, nós mesmos, entendemos bem essa disputa. Todos os dias decidimos a nossa maneira de agir que, em linhas gerais, pode ser definida por boas ou más ações. Logo, há uma eterna luta interna para decidirmos nosso modo de agir frente às circunstâncias, mas como decidimos? Se estamos conscientes e buscando evoluir, sempre queremos tomar as melhores decisões, apesar de nem sempre fazê-lo.
Em 2001 Samico criou a obra “Rumores de guerra em tempos de paz”. No centro da imagem há uma quimera, ou seja, um monstro com diferentes partes animais, cuspindo fogo. Abaixo dela há uma figura humana segurando um animal em cada braço. Podemos interpretar essa obra como, mais uma vez, o homem crucificado frente às suas escolhas. Somente uma tomada de decisão assertiva do Ser Humano é capaz de controlar o monstro que pretende levar destruição às casas na imagem. Essa é a guerra que cada um de nós travamos todos os dias: não uma guerra externa contra outras pessoas, mas uma batalha interna, puramente nossa.
(Urubu de Pedro)
(A Luta dos Anjos)
(Rumores de Guerra em Tempos de Paz)
Por fim, Samico participou duas vezes da Bienal de Veneza, sendo premiado em uma delas. Suas obras estão expostas nos principais museus do mundo, como o MOMA de Nova Iorque. Em 2012, o artista pernambucano recebeu o prêmio Jabuti de Melhor Livro de Arte do Ano. Mesmo após sua morte, suas obras continuam a percorrer o país em exposições e mostras de Arte. A xilogravura segue viva no país, quer seja nos círculos populares, quer seja nos círculos acadêmicos. O mais importante, em síntese, é que essa forma tão antiga de arte continua falando aos nossos corações e gravando ideias atemporais em nossa mente. Que essa técnica seja, portanto, valorizada cada vez mais em nossa cultura e que possamos admirar os artistas que produzem tamanha beleza.