“Você não é igual aos outros cães”, berrou o garoto insatisfeito a respeito do presente que a mãe lhe trouxe naquele fim de tarde: um cãozinho sem uma das patas. Mesmo com uma pata a menos, brincar com a bolinha colorida parecia tão divertido quanto deveria ser. O filhotinho caía aqui e acolá enquanto saltitava e tentava correr, isso é verdade, mas, se não déssemos atenção ao detalhe da patinha, era difícil ver outra coisa que lhe faltasse. Tinha ali bastante alegria, disposição, energia, e um baita rabo que não parava de balançar de um lado para o outro. Faltava, talvez, um companheiro para dividir tudo aquilo com ele, mas o menino permanecia atirado no sofá, jogando videogame e resmungando debaixo de sua respiração, desejando ter um cãozinho sem defeitos.
A realidade com frequência nos desaponta, e na maioria das vezes nem chega perto de ser como queremos. Sonhamos, desejamos, idealizamos. Somos todos idealistas por natureza, seja a respeito de nossa pequena vida, ou mesmo da grandiosidade do Universo e da Humanidade. Procuramos beleza nas coisas, mas sentimos receio, ou até repulsa onde não a encontramos. Queremos ganhar tudo, sem oferecer nada. Criamos problemas que não existiam, para justificar nossas escolhas egoístas. A verdade é que nós, seres humanos, agimos como crianças mimadas que não estão prontas para lidar com a ideia de que para a vida, pouco importam nossos planos e desejos. A realidade é crua. Estamos em todos os cantos, falamos todas as línguas, e temos todos os tipos de costumes diferentes uns dos outros. Aprendemos cada dia mais sobre a vida, o universo, e tudo mais, no entanto, cada dia vemos menos sentido nas coisas, e nos sentimos hoje ainda mais deprimidos do que ontem. Tudo é possível, mas nada é como gostaríamos.
Criamos muitos problemas, entre tantas outras coisas. Criamos aviões quando sonhávamos voar. Criamos máquinas quando sonhávamos ter a força de mil homens. Criamos computadores quando sonhávamos ter o conhecimento de toda a humanidade ao nosso alcance. Por bem, ou por mal, transformamos o mundo. Ícaro voou. Assim também o fez S. Dumont. Um tentou dobrar a realidade, ser seu dono, seu mestre. Alçou próximo demais ao Sol, e caiu. O outro curvou-se diante dela, abraçando suas condições e seus caprichos, tornando-se seu devoto, ganhando assim seu respeito e seu aval para conquistar seus sonhos.
A realidade é crua, sim, mas também está nua. Diante disso, podemos vestí-la como quisermos. Com quantos mais panos a cobrirmos, porém, menos beleza de seu corpo verdadeiro veremos, menos a conheceremos, e menos saberemos a respeito de nós mesmos, pois ela nos reflete. Completamente coberta de panos e véus, ela será a mais linda que pode ser, mas não será real. Nós somos reais. Há quem sonhe conhecer a outra margem do rio, e sofra por não saber nadar, e há quem construa pontes. Como teria pensado Boécio, provável filósofo romano do século cinco: “Concedei-nos Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos, e sabedoria para reconhecer as diferenças.”.
A história conta que o brasileiro Santos Dumont, decidido a produzir o que hoje conhecemos como o avião, tentou mais do que uma dezena de vezes e falhou em todas elas. Sem poder contar com a fé de seus companheiros por muito mais tempo, ele os prometeu que insistiria somente até a décima quarta tentativa. Se mesmo assim falhasse, ele desistiria. E falhou mais uma vez. Quando seus companheiros se preparavam para deixar tudo para trás e voltar para suas famílias, o inventor os chamou de volta dizendo que havia trabalho a ser feito. Naturalmente lhe relembraram que prometera não haver a décima quinta tentativa. Santos Dumont garantiu que não quebraria sua promessa, já que não estariam fazendo a décima quinta investida, mas, refazendo a décima quarta. Dessa vez funcionou, e em homenagem a isso, eles decidiram nomear a máquina voadora como 14-bis.
O cãozinho não é a patinha que lhe falta. Tampouco é a longa cauda que abana de forma desconcertante. Não somos nosso corpo, nem nossos defeitos ou qualidades materiais. Somos parte da Natureza e não à parte dela, somos todos juntos e não cada indivíduo sozinho. Não somos príncipes mimados, insatisfeitos mesmo cercados de riqueza, beleza e poder. Somos reis legítimos, com o sagrado dever de fazer Justiça ao seu povo, e torná-lo próspero com suas decisões benevolentes e sábias. Somos tudo isso, mesmo que ainda não saibamos. Somos o que há de Bom, Belo e Justo, mesmo que não nos comportemos a essa altura, ainda.
Nossas particularidades não nos tornam meramente deficientes, nos tornam especiais, assim como o cãozinho: indiscutivelmente especial. O garoto que rejeita seu presente por não ser “perfeito”, na realidade está rejeitando a si mesmo, pois ele vê a si mesmo no próprio cachorrinho. O garoto também não tem uma das pernas, e assim, sente-se proibido de ser feliz, pois não consegue fazer tudo como gostaria. Mas seu cãozinho não entende que também deveria obedecer essa regra, então, simplesmente a viola. O filhote tampouco consegue fazer tudo da forma que deseja, por isso cai várias vezes ao tentar pegar a bolinha, mas a sua persistência canina nos ensina que o melhor caminho é ignorar aquilo que não podemos mudar, e oferecer à Vida o que temos de melhor. Sem dizer uma só palavra, o cãozinho inspira o garoto a levantar-se do sofá, agarrar suas muletas, e ir lá fora brincar o máximo que puder, enquanto redescobre quem verdadeiramente é.