Pernambucano, de família tradicional, com sua própria história enraizada nas narrativas da construção do nosso país, Gilberto de Mello Freyre viveu entre os anos de 1900 e 1987. Foi considerado um dos mais importantes sociólogos brasileiros do século XX. Além de sociólogo, o pernambucano foi também antropólogo, artista plástico e jornalista, sendo considerado um dos maiores intelectuais e intérpretes do nosso país. É fruto de uma geração de importantes pensadores brasileiros, ao lado de pensadores como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Jorge Amado e tantos outros que revolucionaram o pensamento social sobre o país.
Construindo um material vastíssimo sobre a história de nossa nação, escreveu vários livros e artigos, mas, sem dúvida, uma de suas obras mais importantes foi o lançamento do livro Casa-Grande & Senzala, em 1933. Gilberto Freyre foi um divisor de águas para a história social de nosso país, revolucionou a historiografia brasileira e marcou-a profundamente com um novo olhar para o fazer científico. Aluno do antropólogo americano Franz Boas (1858-1942), aprendeu várias metodologias de coleta de dados e estudou várias categorias sociais como “raça” e “cultura”, as quais iriam ser a base de suas análises da cultura brasileira e o papel do “mestiço” inserido nela. Diferente das análises sociais
focadas em registros cronológicos de guerras e reinados, optou pela coleta dos relatos do cotidiano por meio da história oral, documentos pessoais, arquivos públicos, de jornais e fontes até então ignoradas. Utilizando sempre os conhecimentos da sociologia e antropologia para interpretar fatos de uma maneira mais profunda.
Os temas escolhidos por Freyre estavam sempre ligados ao cotidiano da população, como a intimidade da vida privada, por exemplo, a vida sexual, os tipos de culinária, a composição dos hábitos alimentares e seus comportamentos sociais coletivos, modos de vestuários, modos de pensamentos, crenças e valores, etc. Esse tipo de abordagem era até então inédito, e enriqueceram sobremaneira o quadro interpretativo sobre o povo brasileiro, cunhando ao autor uma visão ao mesmo tempo ampla e profunda da identidade de um povo. O nome do livro “Casa-Grande & Senzala” traz em seu título a oposição entre a casa-grande, como era chamada a moradia dos brancos, e a senzala, local onde os negros viviam, tudo isso dentro do espaço no engenho produtor de açúcar. Toda a obra é escrita em linguagem livre, usada com a intenção de demonstrar que, diferente de outros países da época, viver no trópico e numa população mestiça não era uma desvantagem civilizatória, mas uma vantagem. Ou seja, a mistura de todas as raças e culturas (o negro, o índio e o português) era o símbolo de nossa fortaleza, a vivência de maneira harmônica, essa união, nos potencializava e nos tornava mais humanos, mesmo diante de tantas adversidades.
É preciso lembrar que, na época da divulgação das ideias de Freyre, o mundo estava despedaçado entre as guerras mundiais e civis explodidas em vários lugares do globo.
O mundo estava sacudido por ideias separatistas e racistas, medos, terrores, egoísmos que não só matavam fisicamente, mas também feriam o nosso senso de humanidade. Quem não lembra da luta racial nos Estados Unidos ou na África do Sul? A desesperança no indivíduo e o medo de um futuro, que talvez nem chegasse, levou a população mundial a um estado de angústia e exaustão.
Assim, enquanto a população mundial mergulhava no mundo dicotômico da Guerra Fria, dividido em dois blocos que se ameaçavam constantemente, o Brasil, através da obra de Gilberto Freyre, se apresentava como um modelo com possibilidade de convivência harmônica entre três culturas, formando uma sociedade híbrida e de peculiar alegria, apesar das complexas variáveis de constituição dessa nação. O fato é que o mundo parou para olhar para o Brasil, parou para querer entender como esse povo conseguia viver numa relativa pacificação social dentro de tantas adversidades e pontos complexos.
O Brasil que Gilberto Freyre mostrou ao mundo foi um país que tem como valores na sua estrutura social: a fraternidade e a harmonia entre os povos. O autor foi responsável por dar um significado positivo àquilo que ele cunhou como o caráter essencialmente brasileiro: a miscigenação. Aquilo que todos viam como problema, ele viu como solução. Através da antropologia, trouxe com força o conceito de cultura, para pensar como cada povo possui seu próprio modo de ser e de estar. Assim, o autor negou a noção hierárquica entre “raças” dos intelectuais da época, acreditava e defendia que todos os povos formadores do Brasil – os portugueses, os indígenas e os africanos – tinham um papel importante na formação da identidade nacional. Portanto, a miscigenação não era negativa e nem degenerativa da nossa identidade nacional, mas era o próprio centro definidor do Brasil. O impacto do ressoar dessas ideias foi imediato e estrondoso no mundo e, num momento histórico mundial tão perigoso, trouxe à luz velhos e esquecidos ensinamentos da Humanidade: a diferença não pode ser elemento de divisão, mas sim de complemento e união.
Se há uma coisa que o antropólogo mostrou ao mundo, consciente ou não desse papel, foi que o que nos torna “civilizados” não é só o domínio das técnicas modernas que possuímos, mas é o grau de valores humanos que carregamos enquanto indivíduos. É somente assim que podemos construir verdadeiras nações. Que isso nos sirva de lição e não saia de nossa memória jamais.