As Cinco Casas Que Você Habita (E Talvez Não Perceba)

Minha mãe gosta de falar que “costume de casa vai à praça”. Passei a infância escutando esse jargão. Sempre que levantava e não arrumava a cama, ou não lavava meu prato após alguma refeição e minha mãe percebia a falha, lá vinha a sabedoria popular do “costume de casa ir à praça”. Quando criança eu não entendia muito bem o que ela queria dizer com essas palavras, até um dia em que fui almoçar na casa de um amigo do colégio e o dito popular se fez presente.

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Hoje entendo o que minha mãe tentou me ensinar: nossos hábitos não se encerram em nós. É bem provável que a maioria dos hábitos que temos em nossa casa, ou conosco mesmo, sejam repetidos em outros ambientes. Se tenho uma casa desorganizada, por exemplo, provavelmente no meu trabalho não deve existir muita ordem. É possível, ainda, que eu não tenha ideias claras, ou tenha uma mente pouco organizada, o que gera confusão e ansiedade. Por isso, deveríamos cultivar bons costumes dentro de nossos ambientes, nossos lares e casas. E escrevo no plural porque não habitamos somente dentro da nossa residência, da nossa casa física, que tem um CEP e um número. Nós possuímos também outros tipos de residências.

Há, dentro e fora de nós, muitas moradas, e todas estão interligadas por um mesmo fio: o da atenção, do cuidado e do amor. A primeira é o lar físico, onde descansamos o corpo. A segunda, o planeta, que nos acolhe com generosidade. A terceira, o corpo, que é nossa morada mais próxima. A quarta, a mente, que colore nossas percepções. E a quinta, a alma, o espaço mais íntimo e silencioso onde habitamos nós mesmos. Cuidar dessas cinco casas é uma arte, um exercício de presença e gratidão.  Vamos então percorrê-las, uma a uma, com olhos atentos e coração aberto.

A casa física: o lar que reflete quem somos

O lar é o primeiro espelho da nossa alma. Os móveis que escolhemos, a disposição dos objetos, o cheiro dos ambientes e até o modo como deixamos as janelas abertas ou fechadas dizem muito sobre o que se passa dentro de nós. Uma casa desorganizada raramente pertence a alguém em harmonia interior; uma casa silenciosa demais pode abrigar barulhos internos que são ensurdecedores, por vezes; uma casa viva, cheia de cor e luz, geralmente revela alguém que aprendeu a respirar com o mundo, a caminhar nesse fluxo de altos e baixos no qual a vida se apresenta.

Não é à toa que sentimos alívio ao chegar em casa depois de um dia cansativo. Ela nos acolhe, nos reconecta com a simplicidade do cotidiano e, dentre todos os locais, é onde nos sentimos realmente nós mesmos. Mas, ao mesmo tempo, ela exige de nós responsabilidade: cuidar do espaço que habitamos é também cuidar de quem somos. Desde as atividades mais básicas, como arrumar o quarto, que não é só mover objetos de lugar, mas às vezes também um ato que nos faz ajustar, inclusive, nossos pensamentos. O mesmo pode ocorrer ao lavar a louça, realizar uma faxina ou mesmo abrir as janelas e deixar a luz e o ar circular.

Quando tratamos o espaço doméstico com atenção, criamos uma atmosfera que favorece a calma necessária em momentos de tensão. O lar deixa de ser apenas um endereço, um local em que vamos para descansar e nos preparar para o próximo dia, e se torna um verdadeiro templo, um ambiente em que podemos nos reconectar com nós mesmos; e por isso é tão importante mantê-lo bem cuidado, pois, no fundo, representa uma parte de quem somos. Talvez por isso os antigos diziam que “a casa é o corpo visível da alma”. E se isso é verdade, então cada gesto de cuidado com ela é um gesto de reconciliação conosco mesmos.

Frente a isso, infelizmente hoje essas ideias desaparecem um pouco diante dos nossos olhos. Quando pensamos em uma casa, geralmente nos remetemos a uma ideia de conforto, e somente isso. Queremos casas grandes e luxuosas, com móveis caros e camas confortáveis, o que em si não é um problema, mas que por vezes não refletem nossa verdadeira essência. Como apontamos, a casa deveria ser um refúgio, um local em que nos sentimos acolhidos e, ao mesmo tempo, responsáveis. Por isso, cuidamos dela com afinco e carinho. Varremos, passamos o pano, trocamos o lixo e deixamos todos os ambientes agradáveis.

A casa planetária: o mundo que nos sustenta

Nossa segunda casa é muito maior do que as paredes que nos cercam: é o planeta Terra. É aqui que caminhamos, respiramos, nos alimentamos e sonhamos. Mas, diferente do lar físico, que reconhecemos facilmente, muitas vezes esquecemos que o planeta também é um lar no qual habitamos. Porém, esse é um lar coletivo, compartilhado por milhões de espécies que coexistem conosco. Vivemos tempos em que essa casa maior pede socorro e, em grande parte, devido à nossa própria ignorância ao explorar os ecossistemas que habitamos. Assim, florestas ardem, rios agonizam em meio a poluição, mares se cobrem de plástico e o ar já não é tão puro como deveria ser. 

Sistema interligado representando a unidade da vida

A pressa, o consumo desenfreado e a desconexão nos afastaram da natureza, como se pudéssemos existir sem ela. Se aprendêssemos a ver a Terra como nossa verdadeira casa, nossas atitudes mudariam radicalmente. Não jogaríamos lixo nas ruas como quem suja o próprio quarto; não desperdiçaríamos água como quem ignora a própria sede; não destruiríamos florestas como quem arranca o teto sobre a cabeça. Pode parecer óbvio, mas cuidar da Terra é um ato de amor e respeito, não apenas com a humanidade, mas também com todos os seres que habitam nessa bela casa cósmica em que vivemos. 

Urge, portanto, reconhecer que o solo que pisamos é o mesmo que alimenta nossos filhos, que o ar que respiramos é o mesmo que dá vida a todas as criaturas. Cada pequena atitude importa, desde separar o lixo, plantar uma árvore, economizar energia, valorizar o pequeno produtor, até consumir menos e melhor para que possamos viver de maneira sustentável em nosso planeta, sem agredi-lo e ajudando na sua manutenção natural. Esses são pequenos gestos cotidianos que, somados, transformam o planeta em um lugar mais habitável.

E se “costume de casa vai à praça”, talvez seja hora de levar os bons costumes do nosso lar para a praça do mundo. Se limpamos nossa casa diariamente, porque não podemos ter o mesmo cuidado com os espaços públicos? Só o ato de evitar poluir os ambientes sociais já se torna um grande passo; afinal, toda ação coletiva, quando mobilizada por milhares de pessoas, ajudam a impactar positivamente toda a sociedade. 

Dito isso, se fôssemos mais conscientes da nossa relação com a Terra, por este ponto de vista, não nos permitiríamos atitudes tão grosseiras com o nosso planeta e com o meio ambiente. Não seria aceitável o desmatamento descontrolado de florestas, e nosso esforço para despoluir os rios, mares e até mesmo o ar seria intensificado. Se tratássemos a Terra como um verdadeiro lar, não nos conformaríamos com nada menos do que um ambiente limpo e harmônico com o qual conseguíssemos nos integrar.

A casa do corpo 

Pode não parecer, mas o nosso corpo é um templo. Essa é uma frase usada em várias religiões, pois entendem o corpo físico como a morada da alma. Ainda assim, mesmo para aqueles que não são religiosos, podemos ver nosso aspecto físico como um lar; afinal, é nele que estaremos até o fim dos nossos dias. É através dele que sentimos, aprendemos, amamos e existimos no mundo objetivo. Por mais que a sociedade moderna o reduza a aparência, performance ou instrumento, o corpo é, acima de tudo, nossa morada sagrada. E, como toda casa, ele precisa de cuidado e atenção.

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Quantas vezes tratamos nosso corpo como um fardo, cobrando dele mais do que pode oferecer? Quantas vezes esquecemos de ouvi-lo, negligenciando sinais simples de cansaço, dor ou fome emocional? Cuidar do corpo não é apenas exercitá-lo ou alimentá-lo bem; é respeitar seus limites e necessidades. É dar-lhe descanso, sono, movimento, ar puro e carinho. Um corpo em harmonia é aquele que não vive na rigidez das dietas ou na escravidão das aparências, mas na leveza de quem reconhece que saúde também é silêncio, pausa e aceitação. 

Além disso, cuidar do corpo é, acima de tudo, entender qual é a sua finalidade de existir para poder exercê-la. De nada serve um corpo “saudável” que não atua em prol do benefício do Todo. Não podemos achar que ele precisa ser venerado como um Deus, mas também não devemos negligenciar suas demandas, como o sono, o cuidado médico e a boa alimentação. Fazendo uma analogia, pensemos nesse lar que habitamos como um jardim: é preciso regá-lo, mas também deixá-lo florescer ao seu tempo para que assim possa embelezar o mundo com seus frutos.
De um ponto de vista metafísico, nosso corpo é o meio pelo qual a alma se manifesta, ou seja, é nele que habitam nossas memórias, afetos e histórias. Quem aprende a cuidar bem do corpo, aprende também a honrar a vida que pulsa dentro dele. Se hoje vivemos um culto ao corpo quando buscamos a alta performance, é fundamental entender que esse processo mais atrapalha do que realmente nos torna conscientes. Acabamos escravos do corpo, achando que nossa vida está encerrada em nossos músculos e aparências e esquecemos que ele apenas serve como um veículo de expressão de quem realmente somos. Por isso, devemos cuidar bem do nosso corpo, mas nunca cultuá-lo como uma divindade.

 A casa da mente: o espaço dos pensamentos e emoções

Partindo desse ponto de vista, também podemos refletir sobre a nossa relação com o nosso corpo e a nossa mente. Será que cultivamos bons hábitos e tratamos com respeito nosso corpo físico e a nossa psique? Ou será que, assim como a poluição que vemos diariamente no nosso planeta, também estamos nos poluindo com hábitos ruins? 

Cérebro dividido: lado esquerdo caótico e lado direito calmo com elementos naturais

Como vimos, nosso corpo é onde habitaremos até o fim de nossas vidas; porém, esquecemos desse detalhe e não procuramos cuidar adequadamente dele. O mesmo, por vezes, ocorre com a nossa mente, local onde habitam nossos pensamentos, ideias e, objetivamente, onde interpretamos o mundo ao nosso redor. É nela que mais deveríamos cuidar, visto que é nela que grande parte de nossas decisões passam e nos fazem enxergar a vida por diferentes ângulos, a depender de como estamos.

Por isso, higienizar nossos pensamentos e sentimentos deveria ser tão importante quanto escovar os dentes e tomar banho, pois se nosso corpo físico precisa de limpeza, nossa mente também deve ser pura e harmoniosa, sem espaço para pensamentos mórbidos, emoções negativas e outra série de aspectos ruins que alimentamos diariamente em nossa psique, dando assim espaço para morbidez, pessimismo, rancores e poucos momentos de reflexão.

Ao pararmos para refletir sobre esse assunto, notamos que a mente é uma casa curiosa. Ela abriga tempestades e calmarias, memórias e desejos, medos e esperanças, nos dando assim uma visão dual sobre o mundo. É nela que construímos nossas percepções acerca do mundo e, muitas vezes, é nela também que o mundo se desorganiza diante dos nossos olhos. Isso ocorre porque acabamos enxergando o mundo não como ele é de fato, mas a partir da nossa interpretação da realidade. Assim, para realmente observarmos a Vida como ela é se faz fundamental uma mente límpida, pura e descontaminada.

Esse aspecto da higiene mental é fundamental se quisermos manter esse lar saudável. Assim como limpamos nossa casa física, devemos também limpar nossa mente. Isso significa aprender a silenciar, a meditar, a pausar as exigências externas e escutar o que mora dentro de nós. Pensamentos negativos e ressentimentos são como a poeira que se acumula; se não forem varridos, turvam a visão e pesam o coração.

Uma boa forma de lidar com a nossa mente é mantê-la ativa para somente aquilo que vale a pena ser vivido. Assim, praticar gratidão, escrever, conversar, buscar terapia ou simplesmente caminhar em silêncio são formas de arejar essa casa interior para não deixar maus pensamentos e sentimentos fazerem morada nela. Uma mente limpa é um lar habitável e, como em toda casa viva, é natural que entre alguma desordem, mas o segredo é não permitir que ela se torne permanente. Acabamos assim, debilitando nossa psique e abrindo espaço para, em algum grau, enfermidades no campo psicológico.

A casa da alma: a essência humana

Por fim, há a casa mais profunda e silenciosa de todas: a alma. Essa morada invisível, que muitos ignoram, sustenta todas as outras. Cuidar da alma é cuidar daquilo que nos conecta ao mistério da existência, ao sentido de estar vivo. Vale lembrar que “alma” significa “anima”, ou seja, aquilo que nos anima, que nos faz movimentar. O movimento deve ser, objetivamente, sempre em direção a nossa própria natureza humana, que, no fundo, busca se integrar ao cosmos.

Infelizmente essa é uma das casas que menos compreendemos e, consequentemente, menos cuidamos. Vivemos tempos em que a espiritualidade é muitas vezes esquecida, trocada por distrações, produtividade e pressa. Mas, sem alimento espiritual, o ser humano se esvazia, perde o eixo, sente-se perdido mesmo entre conquistas, e muitas vezes chega ao fim da vida sem realmente ter caminhado em busca de si mesmo.

Nesse sentido, cuidar da alma não exige rituais complexos, mas realmente compreender quem somos e caminhar em direção a nossa verdadeira natureza humana. É buscar silêncio em meio ao ruído, é encontrar tempo para sentir, é aprender a contemplar a beleza nas coisas simples que a vida nos oferece e que, grande parte das vezes, não reconhecemos. A alma se fortalece quando vivemos com propósito, quando escolhemos o bem, quando perdoamos, quando reconhecemos nossa fragilidade e, ainda assim, seguimos amando.

Essa casa não se vê, mas se sente. E, quando ela está em harmonia, todas as outras se alinham naturalmente — o corpo se acalma, a mente se clareia, o lar se torna acolhedor, e o planeta parece mais generoso. Uma forma de aprendermos a cuidar da nossa alma está em cultivar uma vida interior, buscando integrar e conhecer a nós mesmos, nossa essência, e perceber o que nos move, o que nos anima. 

Frente a isso, é fundamental reconhecer e viver de forma consciente, na prática de virtudes. Discernir o que nos faz bem e o que nos faz mal nos ajuda a cuidar dessa casa tão íntima e importante para nós, que muitas vezes fica esquecida sob nossos desejos, angústias e anseios. Acabamos por enterrá-la ao viver imersos em problemas e no materialismo, sem conseguir viver conscientemente e sem compreender o sentido das experiências à nossa volta.

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Por fim, lembremos que habitamos cinco casas, mas muitas vezes cuidamos apenas de uma. Cuidar apenas do corpo e esquecer a mente é como pintar a fachada e deixar o interior às escuras. Cuidar apenas do lar e esquecer o planeta é como limpar um cômodo e sujar todo o resto da casa.

É necessário aprender a conectar esses diferentes espaços que, no fundo, estão todos juntos, mas que não percebemos. Saber harmonizar nossa forma interna com o mundo ao nosso redor e o nosso planeta é, em última instância, integrar-se ao mistério da vida e ao fluxo da natureza. Para isso, é necessário equilíbrio, e este só nasce quando reconhecemos que todas as casas são uma só. O cuidado que oferecemos a uma reverbera nas outras. Quem limpa a mente, organiza o corpo; quem cultiva a alma, transforma o lar; quem respeita a Terra, encontra paz interior.

Talvez o segredo seja começar pelo pequeno e mais fácil: arrumar a cama, respirar fundo, agradecer o dia, plantar uma árvore, caminhar descalço na grama, fazer silêncio por alguns minutos. Pequenos gestos que, somados, tornam nossas cinco casas mais habitáveis, mais luminosas, mais vivas. Se cultivarmos bons costumes dentro de cada uma dessas casas, talvez possamos transformar a praça do mundo em um lugar melhor para todos.

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