“Quando algo tem que dar errado, dará”. Quem nunca escutou ou falou algo parecido? Naqueles dias em que a vida parece conspirar contra nossos planos e, como num passe de mágica, nada sai como desejamos. A sensação de que o mundo escolhe exatamente os piores momentos para contrariar nossos planos é quase universal. Em diferentes culturas, idades e modos de vida, encontramos relatos de pessoas que afirmam, com certa dramaticidade, que “tudo dá errado ao mesmo tempo”. Embora essa percepção pareça apenas uma forma exagerada de desabafo, ela revela um modo curioso de interpretar a realidade. Nesses momentos, costumamos, mesmo que não saibamos, reproduzir uma das Leis de Murphy.

Essas “leis”, desenvolvidas por Edward A. Murphy, tornaram-se populares devido ao seu caráter negativo, que, apesar de muitas vezes ter um cunho cômico, reflete uma postura muito comum entre as pessoas. Em 1949, durante um teste feito para testar a tolerância humana à aceleração dos fatos da vida, Edward Murphy conectou todos os acelerômetros de maneira errada e, logo, o teste foi um fracasso. A partir desse evento, começou a formular suas leis. Nesse sentido, ainda que não passe de uma formulação irônica, a Lei de Murphy tornou-se quase um símbolo cultural daquilo que chamamos de “azar”.
É como se ela explicasse, de maneira simples, episódios que nos deixam frustrados ou perplexos. Porém, quando analisamos com mais profundidade, percebemos que essa lei diz muito menos sobre o universo e muito mais sobre nós mesmos e nossas expectativas, desejo por controle e, sobretudo, a maneira como enxergamos os acontecimentos que escapam à nossa vontade.

Dentre várias, uma das Leis de Murphy mais famosas traz o seguinte enunciado: “A fila do lado sempre anda mais rápido.” Quem costuma frequentar o supermercado sabe bem o dilema de escolher a fila mais eficiente para passar suas compras. Observamos o tamanho da fila, a quantidade de itens que as pessoas estão carregando e a destreza do caixa em passar as compras. Depois que fazemos essa análise, escolhemos uma das filas pensando ser a mais rápida. Entretanto, para nossa surpresa, acabamos, por ironia do destino, numa fila que não é a mais ágil. “Que injusto, vou perder tempo agora!”, pensamos. É nesses momentos que abraçamos a Lei de Murphy e seu aspecto negativo. Por que fazemos isso? Vamos refletir um pouco.
O desconforto diante do imprevisível
Desde muito cedo, aprendemos a desejar estabilidade. Mesmo quando sabemos intelectualmente que a vida é incerta, emocionalmente buscamos padrões, coerência e previsibilidade. É por isso que eventos inesperados, ainda que pequenos, tendem a nos abalar mais do que seria razoável. Quando algo foge do nosso controle, temos a tendência a reclamar da situação e não compreender o que podemos aprender com a experiência. Queremos ter controle de todos os aspectos da vida, apesar de ser algo tão impossível de ocorrer quanto querer que dois corpos ocupem o mesmo espaço.

Imagine alguém caminhando tranquilamente pela rua e tropeçando sem motivo aparente. O tropeço em si não tem grande consequência, mas a sensação de vulnerabilidade é o que mais incomoda. Não gostamos de reconhecer que há partes da vida que simplesmente não controlamos. É justamente nesse espaço de incerteza que a ideia de “azar” se encaixa. O azar funciona como um tipo de explicação emocional que preenche o vazio daquilo que não conseguimos calcular ou prever. Assim, damos o nome de azar (ou sorte) a um aspecto da vida do qual estamos inconscientes e, por isso, não entendemos suas leis.
A lei de Murphy, nesse sentido, atua como uma narrativa conveniente para quem acredita que o mundo, por vezes, está atuando contra sua vontade. Quando dizemos que “tudo dá errado comigo”, estamos tentando criar coerência onde há apenas uma ignorância da nossa parte. Isso não nos torna ilógicos; pelo contrário, mostra o quanto nossa mente precisa de histórias para organizar o aparente caos que se forma ao nosso redor em certos momentos da vida.
No entanto, quando acreditamos demais nessas narrativas, acabamos enxergando padrões inexistentes. É como se a mente, temendo o descontrole, criasse uma espécie de “teoria pessoal” sobre como o mundo funciona, ainda que essa teoria não faça sentido lógico. É aí que a Lei de Murphy é acolhida como verdade, pois acaba se tornando uma maneira de enxergar um acontecimento, porém, deformando a realidade ao seu favor.

Como podemos perceber, há uma armadilha nessa forma de pensar uma vez que, quanto mais acreditamos que tudo dá errado por culpa do mundo, menos responsabilidade assumimos sobre nosso próprio comportamento. Assim, ao invés de refletir sobre a pontualidade ou antecipação, preferimos reclamar que pegamos muito trânsito, mesmo sabendo que essa é uma realidade do mundo moderno. Ou, ao deixarmos para entregar um trabalho no último dia do prazo, acreditamos que o “azar” está contra nós devido à queda da internet, do sistema ou ao aparecimento de qualquer outro infortúnio. No fundo, o fato é que não queremos assumir nossa parcela de culpa perante o mundo e, de maneira bem humorada, assumimos que há uma força da natureza que está contra nós.
Essa tendência de atribuir tudo a fatores externos é tão antiga quanto a humanidade. Quando algo não sai como queremos, é mais fácil encontrar culpados fora de nós, seja o universo, o azar, o destino, do que admitir nossas limitações ou falhas de previsão. Entretanto, é importante lembrar que esse padrão mental não é simplesmente preguiça emocional; é também uma defesa contra o desconforto de reconhecer nossa fragilidade. Ao culpar o mundo, evitamos o incômodo de admitir que não podemos tudo. Mas essa estratégia é ilusória. A longo prazo, ela nos impede de crescer, porque não enfrentamos a realidade de forma madura.
A filosofia como ferramenta para superar desafios
Aqui é possível compreender porque filosofias como o estoicismo ressurgem com tanta força no mundo contemporâneo. Os estoicos insistiam na ideia de que a liberdade não está em controlar os acontecimentos, mas em controlar a maneira como reagimos a eles. Essa ideia é desafiadora para o mundo em que vivemos, pois exige vigilância interior, algo que nem sempre estamos dispostos a praticar.
Seguindo nessa mesma perspectiva, outro ensinamento estoico que pouco aplicamos vem do filósofo Epicteto, que ensina que há coisas que dependem de nós e coisas que não dependem de nós. Devemos aceitar que não controlamos tudo, e isso é o maior sinal de consciência que podemos ter. Ficar enraivecido por causa do trânsito, das filas ou de um dia que fugiu do controle não nos fará sábios, apenas abre caminhos para que surja mais uma pessoa revoltada com o drama da existência humana. Ao invés de fazer o que cabe a nós, temos a tendência de reclamar do que foge da nossa alçada. Tal postura frente à vida nos fragiliza, uma vez que passamos a enxergá-la como injusta.

Somos infectados pela negatividade, pela aparente irracionalidade dos eventos cotidianos e deduzimos, por fim, que a vida não tem sentido. Por outro lado, se nos concentramos no que devemos fazer, em nossos deveres e deixamos de lado os fatores externos, iremos aproveitar as oportunidades diárias e, consequentemente, cresceremos. Logo, o mais produtivo é focar no que depende de nós. Se, por exemplo, a previsão do tempo é de chuva, cabe a mim sair de guarda-chuva e não reclamar pelo tempo chuvoso.
Outro conceito importante do estoicismo que podemos aplicar para superar os nossos desafios é a ataraxia, ou harmonia interior. A ideia central desse conceito é se manter em um estado de consciência elevada, sereno, em que podemos enxergar com clareza nossa finalidade e necessidade do mundo para assim atuar. Os estoicos tinham como meta o domínio dessa condição interna, pois assim nenhum evento externo poderia lhes tirar do “centro”. Manter-se consciente, principalmente se as condições não forem propícias, é o principal desafio daquele que segue esta filosofia.
Dentro dessa perspectiva, devemos entender que a vida é cheia de acontecimentos pequenos e grandes que simplesmente não escolhemos se vão ou não ocorrer. O que podemos fazer, entretanto, é garantir que nosso aspecto interno não seja ferido ou abalado. Uma antiga frase diz: um guerreiro pode ser atingido, mas jamais ferido. Fazendo uma analogia para o nosso tempo, seremos atingidos pelas más notícias, pelos dias ruins, pelos momentos em que nada funciona, mas isso não tem o poder de nos tirar do nosso verdadeiro centro quando estamos conscientes dele. Assim, o que chamamos de “azar” ou acaso não é um inimigo, apenas parte da estrutura natural do mundo.
A tentativa de eliminar a aleatoriedade da vida é tão ingênua quanto tentar impedir o vento de soprar. O universo não atende a nossos desejos e tampouco busca nos prejudicar. Ele carece de intenção. Ainda assim, nós o personalizamos, como se fosse um agente consciente que nos persegue. Essa personificação é fruto do nosso desejo de compreender suas leis e mecanismos, porém, ainda que possamos estabelecer regras e métodos de compreensão, isso não significa dominar.
Aceitar esse fato não é resignar-se, muito menos assumir uma postura passiva diante da vida, mas reconhecer que isso também faz parte da teia complexa de eventos que constituem nossa existência. A Lei de Murphy, nesse novo olhar, torna-se apenas um lembrete irônico de que a vida nunca prometeu correr de acordo com nossos cálculos.
Compreendendo o fluxo da vida
Um dos erros mais comuns do nosso tempo é pensar na existência como algo mecânico, que pode ser ajustado, programado e organizado como uma máquina. Essa visão mecanicista tem raízes profundas na modernidade e moldou a forma como trabalhamos, como planejamos e até como sonhamos. Queremos desenhar uma vida inteira e seguir o script que montamos, porém, nunca conseguimos seguir esse modelo ideal. Como diz um velho ditado, os planos que você tem pra vida não são os planos que a vida tem para você. Essa frase revela exatamente o problema que há em pensar o mundo e nossa existência a partir dessa perspectiva.
Ao adotarmos essa concepção, nos tornamos intolerantes ao imponderável, aos imprevistos e à natural mudança de rota que a vida nos obriga a ter. Queremos que tudo funcione como um relógio suíço, com precisão infinita, quando, no fundo, a vida é como um rio: flui, desvia dos obstáculos, passa por percalços, ora expande suas margens, ora diminui, mas nunca deixa de caminhar para o seu destino que é o mar.
A vida, portanto, é um eterno fluir, e nosso papel é saber navegar por suas águas que ora são turbulentas, ora são calmas, mas nunca estão paradas. Ela não se dobra aos nossos cronogramas ou desejos. A Lei de Murphy é uma brincadeira que só faz sentido porque nós insistimos em acreditar que a realidade deveria ser diferente do que é. Quando nos alinhamos com o fluxo, percebemos que muitos contratempos são apenas pequenos desvios naturais. Eles não representam injustiça nem perseguição, pois são parte da dinâmica inevitável do mundo.
Para entender esse fluxo da vida é preciso, naturalmente, buscar o autoconhecimento. É impossível lidar com o inesperado de maneira serena se não conhecemos a nós mesmos. As situações que nos irritam, que nos frustram ou que nos decepcionam tantas vezes revelam mais sobre nossas fragilidades internas do que sobre a realidade externa; logo, quando entendemos o que nos afeta e por quê, tornamo-nos mais capazes de interpretar corretamente os episódios cotidianos.

Um atraso no trânsito pode ser apenas isso, mas se estamos emocionalmente instáveis, interpretaremos o fato como algo maior e praguejar contra a falta de sorte, a falta de consideração dos outros, a injustiça do destino e como nós, que nascemos sob a égide do infortúnio, estamos a mercê da vida. O autoconhecimento permite que diferenciemos o incômodo real da interpretação imaginada. Ele nos liberta da prisão mental de acreditar que o mundo está sempre nos testando.
Entre o humor e sabedoria
Visto tudo isso, A Lei de Murphy nos leva a compreender que ela não é um diagnóstico do mundo, mas um diagnóstico de nós mesmos. Não existe uma força invisível organizando o azar e o direcionando. O que existe, de fato, é nossa tendência a superestimar o controle que acreditamos ter. A vida continuará sendo imprevisível, caótica, surpreendente e, às vezes, desconcertante em seus acontecimentos; mas isso não significa que devamos viver como vítimas desse caos. Precisamos somente ajustar nossas expectativas e fortalecer nossa capacidade interna de lidar com o aparente inesperado.
No fundo, a Lei de Murphy é um pequeno lembrete de que devemos desenvolver uma postura mais serena diante da vida. Um convite para enxergar o acaso não como um inimigo, mas como uma expressão da própria natureza da existência. E, se aprendermos a rir dos tropeços sem transformar cada deslize em tragédia, talvez descubramos que o azar não passa de uma interpretação exagerada de pequenos desvios cotidianos.
Por fim, mesmo as Leis de Murphy não sendo “Leis” de verdade, elas são uma forma de ironizar o estado psicológico em que entramos quando queremos ter controle sobre tudo. Sabendo dessa tendência, o que cabe a nós é buscar cada vez mais a paz interna, a ataraxia dos estoicos, para lidar com serenidade frente aos que não podemos controlar. Quando nos percebemos mais uma vez reclamando do “azar”, saberemos que não estamos praticando essa harmonia interna, muito menos participando da vida de maneira consciente. Que busquemos, então, mais a ataraxia, sem se lamentar da vida e das situações que somos colocados para viver.





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