Filme “Rainha do Deserto”: A Mulher que Desafiou o Oriente Médio

A história política da humanidade foi, em grande parte, definida por homens. Não é preciso muito para comprovar esse fato, basta pensarmos na história de cada civilização ou cultura humana para percebermos que os nomes que nos vêm à mente são masculinos. Grandes generais, líderes e personagens que mudaram o mundo atuaram a partir deste gênero, mas isso não significa nada, a não ser uma tendência das sociedades humanas, antigas ou modernas, de renegar o espaço público às mulheres. 

As conquistas femininas nos últimos séculos são, quando observadas a partir do prisma histórico, uma exceção e um avanço sem precedentes na nossa história. Graças a essas reivindicações, as mulheres têm ocupado fortemente o espaço público, se tornado protagonistas e influenciado diretamente no mundo, algo que em tempos idos era praticamente impensável para elas.

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Frente a essa constatação, podemos entender que a força masculina no espaço público e nos rumos da história não foi outra coisa senão uma condição social imposta, visto que em outros tempos, o papel da mulher estava limitado ao cotidiano e aos cuidados domésticos. Como reflexo desse fato, ainda hoje, infelizmente, há quem acredite que as mulheres não “podem” exercer algumas funções, o que demonstra a persistência de uma cultura que está fadada – ao longo do tempo – ao fracasso. 

Dito isso, é fundamental compreender que as capacidades humanas pouco têm a ver com o gênero, e que, homens e mulheres, são capazes de fazer a roda da história girar. Um bom exemplo desse fato é o filme “Queen of the Desert”, que conta a vida de Gertrude Bell, uma das mais importantes antropólogas do século XX. Lançado em 2015, sob a direção de Werner Herzog, o drama biográfico é uma boa oportunidade para conhecer não somente a vida dessa corajosa mulher, mas principalmente para percebermos como um trabalho esforçado, com grandes intenções, é capaz de mudar a realidade de um local e de centenas de pessoas.

Para aqueles que nunca ouviram falar de Gertrude Bell, ela foi uma antropóloga e escritora britânica que teve um papel importante na configuração geopolítica das fronteiras entre países como o Iraque e a Jordânia, no contexto da primeira guerra mundial. A atuação, o protagonismo e a articulação política dela entre os povos árabes foram muito importantes para a época, ressaltando a importância do papel político da mulher, num mundo ainda fechado para a participação feminina.

Sinopse do filme

O drama biográfico foi estreado no Brasil no início de 2018 com o título “Rainha do Deserto”. Em linhas gerais, o filme narra a forte influência e participação de Gertrude Bell, que é interpretada por Nicole Kidman, na criação dos Estados da Jordânia e do Iraque.

Apesar de ter nascido na Inglaterra, a antropóloga ficou conhecida no mundo inteiro pelos seus trabalhos no Oriente Médio. Possuidora de uma exímia habilidade diplomática e gozando de uma boa relação com os vários povos árabes, foi convidada a trabalhar como representante do governo britânico na região. É nesse contexto que ela conhece e logo faz amizade com Lawrence da Arábia, interpretado por Robert Pattinson, uma figura que também teve uma forte influência naquele local.

Para alguns críticos, o diretor Werner Herzog fez a opção de apresentar no filme uma versão muito romântica e libertária de Gertrude Bell, privilegiando o seu papel enquanto filha, mulher e amante, em detrimento de seu papel político e histórico. A forma como os fatos foram organizados e encadeados na trama, sugerem ao telespectador a personalidade de uma mulher que varia entre uma menina mimada, que sai da casa de seus pais para explorar o mundo, e uma mulher passional, que vive com intensidade suas relações amorosas.

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A aposta nessa versão romanceada, rendeu a Herzog algumas críticas não só de críticos de cinema, mas também de vários estudiosos que acreditam que a contribuição de Gertrude Bell para a comunidade internacional foi de suma importância no início do século XX. Minimizar o papel dela na história da humanidade não seria justo com quem dedicou a vida a um trabalho que foi fundamental para as várias culturas do mundo árabe. O conhecimento e a atuação desta grande mulher contribuíram muito para a desconstrução de certos preconceitos que a Europa insistia em ter em relação àqueles povos.

Mesmo levando em consideração todas as críticas feitas ao filme, ainda assim podemos aproveitar esta grande obra do diretor Werner Herzog, pois ela nos coloca em contato com esta brilhante personagem histórica que foi Gertrude Bell.

Ainda hoje, pouco se sabe sobre as culturas que coexistem no Oriente Médio, e sobre as suas complexas relações geopolíticas. Conhecer Gertrude Bell, e o seu papel nessas culturas, pode nos ajudar a compreender um pouco melhor a realidade desses povos e os conflitos políticos que perduram até hoje.

Quem foi Gertrude Bell?

Segundo alguns biógrafos, desde cedo Gertrude decidiu questionar os limites que se impunham às mulheres do seu tempo. Nascida na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1868, Bell nasceu em um mundo extremamente dominado pelo masculino, mas que aos poucos vislumbrava o avanço das mulheres, tanto no campo intelectual quanto no social. Nunca lhe bastou fazer sempre a mesma coisa, nem ficar muito tempo no mesmo lugar. Nesse sentido, ela foi pioneira em diversos campos, abrindo espaço para uma geração inteira de mulheres. 

Para darmos um exemplo de sua importância, em sua biografia consta que ela foi uma das primeiras mulheres a se formar em História pela Universidade de Oxford, e provavelmente foi lá onde os seus interesses pelo Oriente Médio surgiram. O professor de arqueologia da Universidade de Newcastle, Mark Jackson, que é responsável pelo arquivo fotográfico de Gertrude, em uma de suas entrevistas ao jornal Evening Gazette, afirma que “ela era uma mulher forte e determinada que nasceu para influenciar o mundo”.

Esse fato não pode ser ignorado. Por mais que não pensemos muito sobre isso, é fundamental ter alguém que avance por caminhos até então não percorridos pela humanidade. Eis o papel dos pioneiros, aqueles que desbravam possibilidades, físicas ou intelectuais, para que outros possam construir um caminho sólido de conquistas e descobertas ao longo do tempo. A história da humanidade só existe graças a essas pessoas, que, ao verem o mundo e as limitações do seu tempo, decidiram se lançar no novo e construir uma nova história, seja na sociedade, na ciência, na política, na religião ou em qualquer outra área em que os humanos podem atuar.

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Gertrude Bell viajou o mundo inteiro, e para isso teve que enfrentar diversos preconceitos da sociedade de sua época. No Oriente Médio, dedicou-se ao estudo de línguas nativas, conheceu a Síria, Palestina, Jerusalém, Bagdá e Damasco. Em 1915, devido ao seu conhecimento da região, foi convidada pelo governo britânico para trabalhar no departamento de assuntos árabes e se tornou a primeira mulher com funções políticas entre os militares ingleses. Aqui, mais uma vez, o seu pioneirismo abriu portas para outras mulheres que, ao seu exemplo, puderam trilhar o mesmo caminho.

O poder de mudar o mundo

Possuidora de um carisma e simpatia invejáveis, Gertrude foi capaz de conquistar os sheiks mais violentos da região e apaziguar os beduínos mais sanguinários do deserto. A convite de Churchill, o então secretário das colônias inglesas, em 1921, ela fez parte do grupo que decidiu, naquele momento, o futuro do Oriente Médio, região onde hoje fica o Iraque, parte da Síria e parte do Irã. A sua influência foi decisiva na definição das fronteiras do Iraque e na escolha do seu governante.

Graças aos seus conhecimentos, Gertrude Bell foi capaz de mudar o mundo. E isso é, acima de tudo, uma lição fundamental sobre como o ser humano, quando canaliza suas habilidades e conhecimento, pode ser uma ponte para o futuro. O mundo pode demorar a mudar, mas isso não é culpa da natureza, mas sim de quem se acomoda em não seguir transformando a realidade em que está inserido. O exemplo de Bell é justamente mostrar que, apesar de um contexto histórico desfavorável, sempre é possível vencer nossas batalhas e construir, ao longo da vida, um caminho pavimentado para a mudança que queremos enxergar no mundo.

Christopher Hitchens, na revista norte-americana The Atlantic, na edição de junho de 2007, escreve um artigo sobre a antropóloga, que tem como título: “Gertrude Bell: Queen of the Desert, Shaper of Nations”. Neste artigo, ele comenta: “Bell fez de Bagdá a sua casa, contribuiu para organizar eleições e ajudou a escrever uma constituição para o país, desenhou umas fronteiras um tanto quanto vacilantes com a Arábia Saudita e o Kuwait, fundou o Museu Nacional do Iraque e […] também acompanhou e persuadiu o rei Faisal, que fundou uma monarquia constitucional que durou de 1921 a 1958, algo impressionante para os padrões da região”.

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Acredita-se ainda que todo o seu trabalho e dedicação na região se deu porque ela estava determinada a combater todos os políticos ingleses que se referiam aos árabes como “animais” e que buscavam influenciar os líderes desses povos para dominar a região. Como mulher, provavelmente ela também sofreu preconceito parecido. Talvez isso deva ter inspirado nela uma necessidade de enfrentar todo tipo de discriminação injusta. 

Como conhecedora da estratégia diplomática britânica e estudiosa da cultura local, sabia que, ao menos em parte, poderia lutar pelos povos e intervir em nome dos árabes, povos que escolheu como sua família e aos quais se dedicou durante anos de sua vida.

Assim, mesmo que, por vezes, o filme foque apenas em aspectos superficiais da vida desta grande mulher, vale a pena conhecer a sua história e se inspirar na força desta mulher, cujo protagonismo político foi decisivo para a História, e que sempre foi guiada por um espírito de investigação, por um amor pela cultura árabe e por um forte senso de Justiça.

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