A Beleza e a Ternura da Mitologia Maori

Qual o valor da tradição no mundo atual? Será que ainda guardamos alguns ritos e posturas advindas dos nossos antepassados? Em um mundo cada vez mais tecnológico, moderno e dinâmico, parece que as tradições vão se perdendo em tempo recorde. O que até poucos anos atrás era uma postura consolidada, hoje já vemos como obsoleto. Eis o mundo que vivemos, não é mesmo? Mas a tradição, mesmo fora de moda, ainda resiste em alguns aspectos culturais. 

Para deixar isso mais claro, vejamos um exemplo. Toda vez que a temida seleção de rugby da Nova Zelândia entra em campo, antes de começar a jogar, eles fazem uma dança chamada “Haka”: colocam as mãos contra as coxas, estufam o peito, dobram os joelhos, batem os pés o mais forte que podem e o líder grita “é a morte, é a morte! ”; e em seguida, o time grita: “é a vida”, e terminam dizendo “o Sol brilha!”. Essa cerimônia tem origem na mitologia maori, proveniente da cultura nativa da Nova Zelândia. Você já a viu? Se ainda não a conhece, recomendamos os vídeos abaixo. É importante que os veja para que possamos dar prosseguimento ao texto.

O que vocês acabaram de ver é o famoso “Haka”. Se para um leigo esse tipo de dança é uma forma de intimidação (quem de nós não ficaria assustado frente a esses homens fazendo tais gestos?), para os antigos Maori essa é uma forma especial de celebração da vida. Como podemos ver na tradução de suas palavras, fala-se não apenas da morte, mas também da vida, uma dualidade que está presente em toda a existência. De acordo com Tīmoti Kāretu, acadêmico especialista na cultura maori, o Haka foi “erroneamente definido por gerações de desinformados como ‘danças de guerra'”; na verdade, o Haka é uma forma de celebrar a vida. Conseguimos entender isso a partir das expressões e força dessa dança, mas julgá-la como grito de guerra é apenas conhecer a superfície de seus símbolos e não mergulhar no mar de significados que esse rito possui.

E como surgiu essa confusão de entendimento acerca do Haka? Precisamos voltar no tempo e relembrar a conquista da Oceania, o último dos continentes a ser “descoberto” pelos europeus. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez às belíssimas ilhas neozelandesas, se depararam com o povo maori. Uma cultura muito rica em símbolos, mitos, cerimônias e formas religiosas. O jeito como essa tradição explica a origem do mundo envolve muita ternura e muito amor. Vamos conhecer um pouco dos seus mitos?

Iniciando pelo mito de criação maori, ele nos fala que no começo do mundo existiam dois deuses: o deus Rangi, ou pai, também entendido como o Céu e a deusa Papa, a mãe Terra. Ambos se amavam muito e viviam eternamente abraçados. Dentro dessa forma especial de junção, havia seus filhos que viviam entre os dois mundos, ou seja, eles viviam dentro do seu abraço, aquecidos e protegidos, tal como é o papel dos pais ao cuidarem dos seus filhos. Porém, nem tudo era harmonia nessa bela família divina. Certa vez, um dos filhos de Rangi e Papa, chamando Tane, o deus da floresta, resolveu afastá-los para que entrasse luz, pois assim poderia colocar mais elementos dentro desse eterno enlace. Tane convenceu seus irmãos do seu plano e, com os pés no ventre de Papa, os filhos empurraram com muita força o peito de Rangi, para que o abraço fosse menos apertado e gerasse a brecha para a luz penetrar.

Desse modo,o Céu foi se afastando da Terra, e todos os filhos do casal, as pedras, as plantas e os animais começaram a ser iluminados pela luz do Sol e se libertaram. Triste com a separação, Rangi chorou copiosamente e suas lágrimas caíram sobre Papa dando origem aos oceanos. Aos poucos o mundo como o conhecemos foi sendo formado a partir da combinação dos elementos celestes, como a chuva, com os elementos terrestres, como o solo, e, além disso, com um terceiro elemento, a luz, que pode ser entendida como o aspecto mais divino da natureza. Graças ao plano de Tane, toda a criação surge e, mesmo com o afastamento do divino casal, as outras formas de vida puderam se expressar plenamente na Terra.

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Esse mito conta a história da criação do mundo de uma forma muito humana. Abraçar, acolher, afastar e chorar são aspectos profundamente humanos. Falar da origem de tudo usando essas figuras é um jeito inteligente de conectar aspectos sutis da nossa alma à causa inicial de Tudo. Para a Mitologia Maori, tudo está integrado, desde a vastidão dos oceanos até as lágrimas que correm em nossos olhos, as florestas, as nossas afetividades, a história do mundo e nossa história pessoal. Cada pequeno aspecto da nossa existência contém todo o Mistério do mundo. Este é justamente o sentido profundo da ideia de religião, ver todas as coisas a partir da ideia de Unidade.

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Outro mito maori fundamental é o do herói Maui. Maui foi responsável por tirar as ilhas da Nova Zelândia para fora do Oceano, um feito digno de Hércules. Vale lembrar que a Oceania é formada por centenas de ilhas e arquipélagos, o que denota uma importância desses pequenos territórios para sua formação. Maui, de acordo com seu mito, teria sido abandonado ainda criança e jogado ao mar, mas foi resgatado e criado por Tangaroa, o deus do oceano. Assim, o jovem cresceu com uma divindade, aprendendo sobre os mistérios do mar e sonhando em retornar a sua terra para ajudar seu povo.

Em sua saga, Maui conseguiu, com a ajuda de um anzol mágico, pescar uma ilha e, assim, tirá-la do fundo do Oceano. Conta-se ainda hoje que essa ilha é a parte norte da Nova Zelândia, uma terra abençoada por ter sido trazida à vida por esse herói. Maui também tentou segurar o Sol e fazê-lo andar mais devagar, para que assim os dias fossem mais longos, porém, ele não obteve sucesso em sua empreitada. Na tentativa de capturar o Sol, Maui apenas conseguiu atrasá-lo, o que explica para o povo maori o solstício de verão, que nada mais é que o dia mais longo do ano.

Todas as aventuras de Maui, assim como o mito de criação maori, nos mostra como esse povo estava conectado com a natureza, apresentando uma visão singela da Unidade. Nela, os deuses e elementos estão próximos dos seres humanos, convivem e se apresentam como forças indeléveis desse Mistério. Assim, tudo que nos rodeia está repleto de magia, uma força divina que enlaça todos os seres vivos. Tendo essa percepção, podemos entender como o Haka não é uma dança para assustar, mas para vivificar os seres, para torná-los mais vivos e fortes, prontos para executar suas tarefas. Esse ritual, portanto, não faz parte somente de uma tradição que, para muitos, já foi esquecida. Muito além disso, o Haka é uma forma de evocar as forças da natureza e convocá-las para aquele momento. É a celebração da união dessas forças, convergindo para aquele que pratica o rito.

Por fim, como já mencionamos de alguma forma, para a tradição Maori, nada está separado, tudo se unifica de algum modo, toda a multiplicidade do mundo se une por um fio misterioso. Não se chega a esta percepção por vias meramente intelectuais, é preciso despertar a consciência para uma realidade mais profunda, que só pode ser acessada através de um tipo de intuição. E isso se faz a partir de símbolos e cerimônias. Esse saber é mais do que apenas mental: é um saber profundo que sentimos dentro de nós. Só uma cultura muito comprometida com essa natureza transcendente consegue construir uma narrativa para a criação do mundo semelhante a esta do povo maori. 

Somos hoje uma civilização muito intelectual, muito comprometida com a informação e com a técnica. Assim, falta-nos a ternura, a mística e, por conseguinte, a profundidade diante do Mistério que a cultura maori nos apresenta. Então, que aprendamos com eles.

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