Imagine que hoje é o dia em que você vai se casar, você está ensaiando a cerimônia na Igreja quando é surpreendido por policiais que lhe dão voz de prisão. Você não sabe o que está acontecendo, tem consciência de que não fez nada de errado, mas mesmo sob seus intensos protestos, eles estão lhe conduzindo à autoridade policial. Depois de ser ouvido, o chefe de polícia informa que você está sendo acusado de conspiração e terá que passar pelo menos aquela noite na prisão, até que tudo seja esclarecido no dia seguinte. Não adianta protestar, espernear, gritar, nada importa, você é conduzido para uma cela e trancado lá. Passa a noite em claro, na maior angústia, no desespero de que amanheça logo e tudo seja esclarecido, mas no dia seguinte nada acontece e no terceiro dia também nada acontece, e nada acontecerá nos dez anos seguintes.
Esse é o começo da história de Edmond Dantès, personagem de um dos romances mais intrigantes do mundo, “O Conde de Monte Cristo”, escrito entre 1844 e 1846 por Alexandre Dumas. Com diversas adaptações para o cinema e para o teatro, a trama se passa no seio da alta sociedade francesa e envolve reflexões que vão desde a filosofia até o direito e a ética, além de agregar muitas informações históricas relativas ao período pós-napoleônico.
Cheia de conspirações, de encontros e desencontros, a narrativa é cativante e envolvente, você não consegue largar o livro! Tudo gira em torno da vida do jovem francês que, no auge de sua realização pessoal, tinha acabado de se tornar capitão de um navio e estava prestes a se casar com uma das mulheres mais lindas e mais ricas da sociedade. Entretanto, sua liberdade é interrompida por uma armação levada a cabo por desafetos que competiam contra ele: um tenente que tinha interesses na sua futura esposa; um imediato que tinha a ambição de ser o capitão em seu lugar; e um jovem que Dantés outrora havia feito prisioneiro em seu navio. Eles se reúnem em uma taverna e organizam uma armadilha a fim de que o jovem capitão seja suspeito de uma conspiração napoleônica contra o Rei. Isso o leva a uma prisão de segurança máxima, onde ficará sem contato com ninguém por muitos anos.
No décimo ano de prisão, ele escuta batidas por trás da parede, era outro prisioneiro político, o abade Faria, que cavava um túnel para fugir. Ele consegue abrir uma fenda em sua cela e encontrar o túnel do abade, com quem cria uma amizade muito rica, pois o religioso era um homem sábio e lhe ensina filosofia, matemática e línguas antigas, ao passo que cavam o túnel juntos para a fuga. Infelizmente, o túnel nunca chegou a ser concluído, pois o abade morre durante o trabalho. Em seus últimos momentos de vida, o sacerdote entrega ao parceiro um mapa que tem um tesouro escondido. Então, Dantès consegue se passar pelo cadáver do abade, envolto em sua túnica de morte, e é lançado no rio, conseguindo se libertar logo em seguida.
Apesar da narrativa ter muitas partes importantes, com diálogos que são verdadeiras pérolas de sabedoria, os momentos na prisão em que o abade conversa com Dantès é especial. Dumas coloca verdadeiros ensinamentos atemporais na boca do sacerdote que revela para Dantès o principal tesouro que a vida humana pode oferecer: o conhecimento.
Chamamos atenção acerca dessa ideia pois, de fato, jamais poderão nos tomar aquilo que aprendemos verdadeiramente. O conhecimento não é somente libertador, mas também atemporal, uma vez que enraiza em nossa alma centelhas de verdade que pode nos aproximar da realidade suprema, as ideias ou, para os religiosos, Deus. Sabemos que essa ideia é um tanto quanto banalizada no mundo atual, envolto em diversos meios de adquirir informação; porém, tal qual uma ilusão de ótica, por vezes achamos que estamos observando algo simples que, na verdade, nos revela apenas uma parte ilusória de sua forma. Assim, antes de prosseguirmos explicando o filme, cabe refletir sobre o que chamamos de conhecimento.
Vamos começar pelo que ouvimos quase cotidianamente. O conhecimento, em geral, tem uma ligação direta e intrínseca com a informação, afinal, é preciso, em algum grau, de dados, perspectivas e um saber concreto para chegar ao conhecimento. Os livros, jornais, blogs e até mesmo este texto pode trazer diversas informações, porém, isso não significa dizer que estamos adquirindo conhecimento apenas pelo fato de entrar em contato com essas palavras. Conhecimento é um movimento mais profundo, interno e que passa necessariamente pelo filtro da nossa razão. O verdadeiro conhecimento é uma síntese que ocorre quando vivemos nossas experiências e conseguimos traduzi-las de modo que o resultado nos transforme, ou seja, jamais somos os mesmos após adquirirmos um conhecimento. Desde o mais banal até a ideia metafísica, um dos principais atributos do conhecimento é este: a mudança.
Não por acaso, fala-se constantemente que “conhecimento é poder”. De fato, pela sua capacidade de mudar o ser humano e transformá-lo internamente é inegável que talvez esse seja um dos mais belos e úteis poderes que possuímos. Frente a isso, o conselho do abade para Dantès se faz extremamente valioso, pois a liberdade (física) pode ser tirada, como no caso do próprio Dantès, mas o conhecimento e a busca pela sabedoria jamais.
A história contém personagens reais que comprovam essa ideia: Epíteto, um filósofo estoico que acabou se tornando um escravo de Roma, viveu quase duas décadas sob essa terrível condição, preso a um senhor que o maltratava, mas que conseguiu libertar-se graças ao conhecimento e às amizades que possuía. Ainda assim, não rejeitava a experiência que a vida lhe impôs, mas aprendeu com dedicação suas lições, criando resiliência, força e tantas outras virtudes. Graças a sua sabedoria, soube reconquistar sua liberdade.
Giordano Bruno é um outro exemplo marcante que comprova a veracidade do conselho do abade Faria. Preso por suas ideias revolucionárias no século XVI, este pensador continuou a desenvolver seu conhecimento e raciocínio, refletindo dentro de uma masmorra sem perder o ânimo do seu espírito. O cárcere, tal qual o que ocorre com Dantès, lhe tirou apenas a liberdade física, mas seu espírito continuou livre para conhecer e buscar refletir ideias tão belas sobre o Universo que até hoje seus escritos são estudados.
Um último exemplo é o do russo Alexander Soljenítsin, preso no final da Segunda Guerra Mundial por uma aparente ofensa ao ditador Stalin. Soljenítsin foi para um campo de concentração na Sibéria, um dos famosos gulags, e por uma década seu corpo pertenceu aos guardas e ao sistema carcerário soviético. Sua liberdade física foi tomada, porém, dentro da prisão o escritor decidiu que jamais roubariam seu espírito e assim continuou a refletir e concentrar-se em encontrar sentido em todas as dolorosas experiências que viveu. Graças a isso foi capaz não somente de suportar as adversidades vividas ao longo dos anos, mas principalmente superar seus limites internos e conhecer a si mesmo, encontrar sentido na vida e em tudo o que viveu.
Todos esses exemplos demonstram que ao buscarmos viver os conhecimentos que adquirimos, seja a partir do autoconhecimento ou mesmo de forma empírica, colocando à prova tudo que recebemos como informação, podemos galgar altos patamares na escada da sabedoria.
Levando essa importante lição para a vida, Dantès finalmente se vê livre da prisão, localiza o tesouro, se torna um dos homens mais ricos da França e passa a ser conhecido como o Conde de Monte Cristo. Agora, com uma nova identidade e com muito poder nas mãos, ele persegue e destrói cada um dos que armaram contra ele. O imediato do navio que ambicionava seu cargo de comandante havia se tornado um barão, dono de um banco. Dantès trama contra ele até levá-lo à falência e ao suicídio. Contra o chefe de polícia, Dantès consegue envolvê-lo em uma trama tão engenhosa que o leva à loucura. O tenente havia se tornado general e conseguira finalmente casar-se com a ex-noiva de Dantès, mas termina preso, louco e sem esposa. Enfim, Dantés consegue sentir o prazer da vingança que tanto desejava há mais de 10 anos, no entanto, não consegue recuperar o Amor de sua esposa, pois ele já não era mais o mesmo rapaz de antigamente. O ódio o havia transmutado em um vingador. Tornara-se alguém destrutivo, esvaziado de Amor e de compaixão. Quanto mais acumulava conquistas contra seus inimigos, mas esvaziava sua Alma.
Nas entrelinhas dessa história, a pergunta que está sendo provocada é: o que é fazer Justiça, de fato? Nós temos uma tendência em confundir Justiça com vingança. Se alguém nos faz um mal muito grande, imperdoável, tendemos a achar que a única forma de fazer Justiça é devolvê-lo na mesma intensidade. Mas isso é um erro. Justiça tem mais a ver com equilíbrio, ponderação e com aprendizado do que com ódio, vingança e destruição. Houve uma época em que o comum era “fazer justiça” através de penas cruéis, como empalamento, enforcamento, golpes de machado etc. Inclusive, o surgimento da guilhotina se deu anos antes deste romance ser escrito, na mesma região da França, e surgiu como um método de diminuição da dor, já que as execuções eram muito lentas e cruéis. Com o tempo, a civilização ocidental foi revendo esse jeito de aplicar penalidades, pois o resultado era muito pior. Em vez de fazermos Justiça, estávamos transformando o mundo em um mar de sangue e crueldade.
Dito isso, analisemos mais detalhadamente esses pontos traçando um paralelo com o filme. A vingança esvazia a Alma Humana à medida que nos ilude com uma sensação errada de “dar o troco”. O vingador vai se tornando alguém igual, ou até mesmo pior, àquele que lhe causou o mal. Esse movimento vai se tornando bem visível na obra “O Conde de Monte Cristo”, chegando a um ponto em que Edmond Montés vai se tornando alguém pior e mais cruel do que aqueles que inicialmente tramaram contra ele. E quando ele tenta recuperar o Amor da sua vida, ela não o quer mais, pois ele já não é mais aquele jovem puro do começo da história. Na interpretação simbólica dos mitos, geralmente a mulher amada é símbolo da Alma, ou seja, perdê-la é o mesmo que perder a própria Alma, e recuperá-la é recuperar a própria Alma. Nessa história, infelizmente o personagem perde a sua Alma.
A partir dessas reflexões, é notável que vivemos uma conjuntura hoje de muito ódio em nossa civilização: ódio político, religioso, étnico etc. Isso é muito perigoso, porque o ódio esvazia o que há de melhor dentro de nós mesmos, ele nos leva a perder a nossa Alma na ilusão de que aquilo que está sendo feito irá nos trazer alguma paz interna. Nunca a mensagem “ama ao próximo como a ti mesmo” se tornou tão necessária. Sendo assim, precisamos refletir, com urgência, sobre o quanto estamos nos tornando hostis e odiosos uns com os outros, e tentar encontrar o caminho de volta para o Amor, para a Compreensão, para o Perdão e para a Paz Interior.