Imagine a seguinte situação: Um casal se apaixona perdidamente, mas não podem ficar juntos. Devido às suas obrigações familiares, eles estão condenados a não realizarem esse amor irrefreável. Em uma atitude desesperada, esses jovens tentam romper com a ordem estabelecida e passam a se encontrar em segredo; entretanto, em certo momento, acabam sendo descobertos. Para evitar a desonra, acabam morrendo, encerrando um ciclo trágico do amor. Já sabem de qual história estamos falando?
Provavelmente, você, meu caro leitor, pensou em “Romeu e Julieta”, uma das peças mais conhecidas de William Shakespeare e que é, de fato, um clássico da literatura universal. Apesar dos detalhes narrativos descritos acima serem, de fato, similares ao que acontece no drama Shakespeariano, a história em questão é bem mais antiga, datando das tradicionais cantigas de cavalaria oriundas da Idade Média. Essa obra, como podemos perceber, provavelmente serviu de inspiração para o dramaturgo inglês, que abordou a mesma temática (o amor impossível) e seu desfecho catastrófico. Estamos falando, portanto, de “Tristão e Isolda”, a verdadeira história por trás de Romeu e Julieta.
“Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e de morte? É de Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em grande aflição eles se amaram, depois morreram no mesmo dia, ele por ela, ela por ele.”
Foi assim que Luis Claudio de Castro e Costa traduziu as primeiras frases do livro de Joseph Bédier: O romance de Tristão e Isolda (Editora Martins Fontes, 2014). Assim, começa uma das mais belas histórias de cavaleiros que povoaram o imaginário da nobreza da Idade Média. A história de Tristão e Isolda foi contada e recontada em formato de trova (poesia medieval) várias vezes, por mais de mil anos. Coube ao linguista francês Bédier coletar o máximo de versões possíveis, reuni-las e escrevê-las em prosa no início do século XX.
Essa é uma história de Amor e morte da qual vamos adentrar nos detalhes para extrairmos os seus ensinamentos. Tudo começa com o nosso herói, Tristão: vítima de uma tragédia na infância, órfão de pai e mãe, o jovem Tristão é criado por Rohalt, um fiel amigo do seu pai, na região de Lonnois. Após ser sequestrado por mercadores, ele termina desembarcando no reino da Cornualha, governado por seu tio Marc, mas ambos não sabem que são parentes. Todos ficam admirados pela beleza e delicadeza de seus costumes. O rei o acolhe tão bem, que após recuperar sua terra natal das mãos do assassino do seu pai, Tristão volta para servi-lo. – Deixo minha terra a meu pai Rohalt e meu corpo para meu pai Marc, ele disse.
Nessa época, a Irlanda cobrava um pesado tributo a Cornualha: 300 jovens, de ambos os sexos, de 15 anos, que trabalhavam como servos. Para buscá-los, o rei da Irlanda enviou Moholt, um cavaleiro com a força de quatro homens. Ele deu um ultimato ao rei Marc: pagar, ou desafiá-lo em um combate até a morte! Todos os barões do reino tremeram. O corajoso Tristão, então, lançou-se em combate, derrotou o algoz e livrou o povo do triste destino.
Porém, mortalmente ferido, ele pede para ser colocado em um barco e jogado à deriva no mar, apenas com sua harpa como companheira. Coube ao destino, então, levar sua embarcação até o reino inimigo. Lá, após convencer a todos que era um mercador, é tratado pela bela Isolda, filha do rei irlandês. Sem saber, ela cura o homem que mais odiava, o assassino de seu tio Moholt.
Assim que pôde, Tristão fugiu do perigoso reino, e, mais distante, em sua casa, seu tio sofria pressões de seus barões. Eles exigiam que se casasse com a filha de um rei e gerasse um herdeiro ao trono. Mas o rei amava seu sobrinho e pretendia deixar-lhe o reino. Encurralado, ele tenta enganar seus nobres. Duas andorinhas entram pela janela e trazem em seus bicos um fio dourado. O rei promete se casar, desde que os nobres lhes tragam a dona daquele fio de cabelo, esperando que ninguém o possa fazer. Em nome da honra e disposto a salvar o tio de uma rebelião, Tristão se encarrega de trazer a donzela. Ele reconheceu que o cabelo pertencia à bela Isolda.
Mas a Irlanda não aceitaria que sua princesa casasse com o rei dos seus adversários. Nem a própria Isolda concordaria em se casar com aquele que foi o responsável pela morte do irmão de seu pai. Nesse momento, surgiu o tradicional personagem dos romances de cavalaria, um dragão que atormentava aquele país. O rei então prometeu dar Isolda em casamento para quem o derrotasse, mais uma aventura para o nosso protagonista. Ele matou o animal e anunciou que levaria Isolda para desposar seu tio Marc.
Isolda ficou revoltada: além de matar seu tio, esse cavaleiro a rejeitou como esposa! Não havia o que se fazer: ela teria que cumprir com um casamento que traria paz à região. Sua mãe, apiedada, preparou uma poção mágica para que ela e o futuro marido tomassem e se apaixonassem. Durante a viagem, Tristão e Isolda acidentalmente tomaram a bebida e, assim, teve início um Amor que iria escandalizar toda a Cornualha.
Até aqui podemos observar como a narrativa de Tristão e Isolda se constrói com base em mitos e símbolos. Tristão é o guerreiro ideal: forte, inteligente e com grande discernimento; Isolda é caracterizada pela sua candura e bondade. Entretanto, todas essas qualidades são postas à prova quando acabam se apaixonando. Vale ressaltar que o amor nascente dos dois não é fruto da naturalidade, da troca de olhares e interesse recíproco. Na narrativa – e aqui entra fortemente o aspecto mítico –, prepara-se uma porção do amor e, assim que o casal a ingere, acabam caindo de paixão um pelo outro. O detalhe que queremos destacar é que o que faz esse amor nascer é um objeto externo, ou seja, algo de fora que aflora os sentimentos latentes dos dois. À primeira vista, isso parece apenas uma forma poética de contar como a paixão ocorre, mas ela não passa, de fato, disto: uma paixão.
Para entendermos melhor essa perspectiva, lembre-se, meu caro leitor, da última vez que esteve terrivelmente apaixonado: você agia de forma racional? Já cogitou – ou fez – alguma “loucura” por amor? Essas perguntas nos levam a exatamente o nosso ponto de reflexão: a paixão (e não o amor) nos faz trair nossos valores em detrimento do objeto ou ser amado. Nesse sentido, o que acomete Tristão e Isolda não seria o amor tal qual pensamos atualmente, como um sentimento sublime e que nos leva ao nosso melhor aspecto. O amor de “Tristão e Isolda” é próprio da paixão, pois, mesmo sabendo que estavam errados e desobedecendo as ordens do rei Marco, eles decidem seguir juntos.
Frente a isso, a partir do momento em que se apaixonam, Tristão e Isolda passam por uma verdadeira saga para viver o amor. Por diversas vezes, por exemplo, arriscaram-se, lutaram contra diversos inimigos de seu Amor. O Amor ilegal, mas sem culpa, que eles carregavam, os colocava sempre entre dois mundos. De um lado, o desejo ardente de ficarem juntos; do outro, a voz persistente da nobreza dos seus caráteres. No momento em que essa voz venceu, separaram-se por Amor ao grande rei Marc. E desse desencontro, Tristão encontra outra Isolda, a de Mãos Brancas, e com ela se casa. Convencido do seu erro, segue fiel a Isolda, a Loura, nunca desposando sua companheira. No fim, após mais um ato de valentia, mortalmente ferido, pede a seu grande amigo e cunhado Kaherdin que lhe traga a razão por que ainda habita aquele corpo. Sua esposa, enraivecida e enciumada, o faz crer que a rainha da Cornualha não virá ao seu encontro. Abandonado por sua vida, morre. Isolda chega e recebe a notícia: Tristão jaz frio no leito. Por causa disso, ela também já não pode viver e, assim, morre de dor por seu amado.
Apesar de ter um final trágico, é preciso compreender que essa história não é “original”. Queremos dizer que Tristão e Isolda, assim como todos os romances de cavalaria, se juntam a várias grandes histórias ao longo da Vida Humana por contarem, à sua maneira, a saga de todos nós perante os desejos e nossas inclinações. A grande maioria (para não dizer todos) desses textos, considerados como “clássicos”, nos faz conectar rapidamente com a história que contam por falar diretamente com nossa parte simbólica. Assim, não acompanhamos somente mais um triste casal que não pode se juntar, mas também a separação do corpo e da alma, como diria Platão, que faz com que o ser humano não consiga progredir em sua evolução espiritual.
Dito isso, quando observamos, por exemplo, os anais da primavera e do outono na China, as histórias de semideuses e heróis da Grécia e de Roma, as grandes epopeias hindus, a tradição dos povos africanos e americanos, todas elas tinham dupla função: além de entreterem, forneciam o modelo de Ser Humano que as sociedades queriam formar. Tristão e Isolda parecem fugir desse modelo, eles vivem um Amor clandestino e condenável aos olhos da época. Mas, ao ler o livro, essa impressão muda, e nota-se que tudo o que acontece conspira para mantê-los sempre Nobres e Generosos.
Ao tomarem uma poção mágica, seu Amor não é fruto de uma cobiça desleal, mas antes, o resultado de um acontecimento fortuito. Portanto, ainda que flexibilizem a moral do seu tempo, Tristão e Isolda continuam sendo apresentados como modelos de cavalheiro e dama. Ela é altiva, mas Generosa, Bela, Corajosa e Piedosa. Ele é Audaz, Forte, Vigoroso, Leal e Afável. Juntos, eles conseguem não apenas a Felicidade, mas também a Força para enfrentar os maiores desafios. Por isso, pensar neles como sugestões para inspirar os homens e mulheres de hoje talvez soe descolado da realidade (nos deixa com um ar meio Quixotesco). Mas podemos pensar que todos temos um lado Valoroso e Generoso. Cada um com sua especificidade pode invocar o poder do cavaleiro para lutar contra as injustiças, cada um pode trazer à tona a Generosidade para lidar com os outros.
E não é de pessoas assim que o mundo precisa? Pessoas que conseguem unir essas duas dimensões em si mesmo? Essa é a grande aventura da Vida. Não deveríamos estar em busca de conforto, riquezas, proteção, reconhecimento, prazer. Deveríamos lutar contra todas as intempéries de um mundo que trata o Generoso como ingênuo e o Corajoso como burro. Tente encontrar na sua Vida um momento em que você agiu como um cavaleiro caridoso, ou como uma princesa nobre. Não foi Felicidade o que você experimentou nesse momento? Era o Tristão em você, que se esgueirava pelo pomar do castelo de Tintagel e beijava a bela Isolda. Era a Isolda em ti, que segurava o ferro em brasa para provar sua Pureza. Talvez seja necessária uma poção mágica para uni-los, ou talvez não. Talvez seja necessário apenas que acreditemos nessa ideia e a vivamos.
“Os amantes não podiam viver nem morrer um sem o outro. Separados, não era a vida, nem a morte, mas a vida e a morte ao mesmo tempo.”