“Stranger Things”: Reflexões Profundas Além do Sobrenatural

Atualmente as séries ganharam um grande espaço em nossa rotina. Todos nós temos uma série favorita, ou uma em que estamos ansiosos para que seja lançada e até mesmo uma em que esperamos há vários anos uma conclusão. Esse novo formato de produção audiovisual, inspirado nas famosas novelas da TV, ganhou o coração e mente de milhões de pessoas ao redor do mundo, sendo praticamente uma concorrente dos filmes. 

Visto o grande espaço que as séries têm garantido em nosso tempo, é importante escolhermos com qualidade aquilo em que vamos investir grande parte do nosso tempo. Apesar de, muitas vezes, possuírem episódios curtos, entre 40 a 50 minutos, o que é fácil de se encaixar em nossa rotina tão acelerada, as séries possuem muitas temporadas e, por vezes, muitos episódios em cada uma delas, o que, no final, torna-se um grande investimento de tempo. Sendo assim, hoje falaremos de uma série que pode valer a pena tal investimento, desde que possamos enxergá-la adequadamente.

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Dito isso, há séries que entretêm o público, outras que viciam os espectadores e, mais raramente, há histórias que permanecem conosco muito depois de o último episódio terminar. Stranger Things, criada pelos irmãos Duffer e lançada pela Netflix em 2016, pertence a essa terceira categoria não apenas por construir um público fiel às aventuras ocorridas em Hawkins, mas principalmente por nos fazer assistir e refletir acerca de uma série de ideias que podemos carregar conosco ao longo da vida.

Mais do que uma narrativa envolvente sobre mistério, amizade e acontecimentos sobrenaturais, a série se tornou um fenômeno cultural capaz de dialogar com diferentes gerações e provocar reflexões profundas sobre medos, traumas, amadurecimento e pertencimento. É interessante perceber como os produtores e o roteiro conseguem enlaçar diferentes públicos usando não somente do brilhantismo narrativo, mas também da nostalgia e de referências que fazem o público adulto compreender sua mensagem e, ao mesmo tempo, ligar os jovens espectadores com suas ideias. Para quem ainda não conhece esse universo, compreender Stranger Things vai muito além de entender sua trama: é perceber o que ela revela sobre nós mesmos.

O que é a história de Stranger Things?

Ambientada na fictícia cidade de Hawkins, nos Estados Unidos dos anos 1980, a série tem como ponto de partida o desaparecimento de Will, um dos protagonistas da série. O que inicialmente pode parecer mais um caso policial, é o começo de uma aventura que nos faz refletir sobre questões profundas. Enquanto amigos, familiares e autoridades tentam encontrá-lo, surgem pistas que apontam para a existência de forças sobrenaturais ligadas a um laboratório secreto do governo e também a uma dimensão paralela conhecida como “mundo invertido”. Nesse contexto, o grupo de amigos de Will acaba conhecendo Eleven, uma menina com habilidades especiais que se torna peça fundamental na tentativa de compreender e enfrentar o que ameaça Hawkins.

Ao longo de suas temporadas, passamos a acompanhar essa jornada para compreender o que é, de fato, o mundo invertido, o que são as criaturas que habitam esse mundo e como os protagonistas, tanto no núcleo jovem como no adulto, podem escapar de serem levados para esse local desconhecido. Junto a isso, Stranger Things consegue um raro equilíbrio entre aventura, emoção e reflexão, o que não a torna uma série previsível ou mesmo mais um clichê de suspense. Além disso, essa capacidade de aprofundar os personagens, seus traumas, medos e angústias fez com que a série conquistasse públicos diversos.

Ainda nessa perspectiva, para os mais jovens, a série apresenta protagonistas da mesma faixa etária, enfrentando desafios que refletem inseguranças típicas da infância e da adolescência: o medo de não pertencer a um grupo, a dificuldade de se expressar, a descoberta da própria identidade e o confronto com um mundo adulto que está, muitas vezes, indiferente a essas necessidades. Esses espectadores veem em Mike, Dustin, Lucas, Eleven e Will não apenas personagens, mas principalmente referências em que se enxergam, mesmo vivendo em épocas diferentes.

Para os adultos, por outro lado, a série oferece uma poderosa camada de nostalgia. As referências aos anos 1980 não estão ali apenas como estética, mas sim como uma ponte emocional com um tempo em que a amizade era construída nas ruas, nas bicicletas, nas conversas sem celulares. Filmes, músicas, jogos e livros daquela época são revisitados com carinho, despertando memórias afetivas e reforçando a sensação de intimidade com a narrativa. Desse modo, para os adultos, assistir Stranger Things é lembrar de um tempo em que tudo aquilo que está sendo vivido, em algum grau, já fez parte de sua jornada.

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No entanto, nada disso explica por si só o grande sucesso da série. Na realidade, o que realmente impacta em Stranger Things é a sua capacidade narrativa de conseguir apresentar sua história e, ao mesmo tempo, abordar temas universais, os quais todo ser humano, em algum aspecto, já vivenciou. 

Para dar alguns exemplos: o medo do desconhecido, a dor da perda, o desejo de proteger quem se ama e a necessidade de enfrentar aquilo que nos ameaça são experiências humanas atemporais, todas vividas ao longo da nossa experiência de vida. Independentemente da idade, todos já se sentiram, em algum momento, deslocados, assustados ou impotentes diante de algo maior que, dentro da nossa perspectiva, se mostrava inexplicável. A série, nesse sentido, tem sido capaz de traduzir essas emoções em uma linguagem acessível, quase didática e visualmente impactante.

A amizade é a grande força de Stranger Things

Como lidar com tantos desafios? O que fazer quando nossos medos e receios são maiores do que nós e nos paralisam? Para muitos, essa não é uma resposta simples, e decidir lutar contra tais aspectos não é fácil. Por isso, precisamos de amigos, pessoas que estejam do nosso lado e prontos para nos apoiar e, em muitos casos, nos salvar, seja de perigos externos ou de nós mesmos. Não é por acaso que a grande virtude que há em Stranger Things é a amizade, essa maneira especial de amor. 

Desde o primeiro episódio, o vínculo entre os protagonistas é apresentado como algo genuíno, construído com base no respeito, na lealdade e na aceitação das diferenças. Eles não são heróis tradicionais, muito menos possuem superpoderes. Ao contrário disso, são crianças comuns, com medos, falhas, inseguranças e uma completa falta de noção da realidade em muitos casos. Apesar de todas as limitações, há algo que nunca perdem de vista: a vontade de salvar uns aos outros e não abrir mão da amizade. Assim, essa virtude se converte na espada e no escudo dos jovens para não desistirem de encontrar Will, mesmo quando o mundo já havia encerrado o seu caso.

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Além disso, vale ressaltar que a série realmente compreende o que é amizade, pois não se trata de ser imprudente a qualquer preço, muito menos agir sem sentir medo. No fundo, a amizade se revela justamente na capacidade de enfrentar seus temores em prol dos seus amigos; logo, não se trata de eliminar o medo, mas de ser capaz de enfrentá-lo graças a esse nobre sentimento. Quando os personagens estão juntos, o que até então se mostra como impossível perde força diante da inquebrantável vontade dos jovens.

É dentro dessa perspectiva que devemos enxergar a beleza da série: nas suas ideias e valores a serem transmitidos, muito mais relevante do que a qualidade técnica. Essa mensagem de valorizar a amizade e a cooperação é particularmente relevante para o mundo atual, cada vez mais marcado pelo individualismo e pelo distanciamento entre as pessoas. Infelizmente, a amizade tem sido uma planta rara no mundo em que vivemos. Achamos que possuímos muitos amigos, mas será que realmente somos devotos dessas amizades? 

Além disso, a amizade na série não é construída apenas com aspectos positivos, pois os personagens são seres humanos e, portanto, vivem conflitos também entre si. Há ciúmes, desentendimentos e afastamentos que ocorrem naturalmente pois fazem parte da convivência humana. Isso não significa que eles não deixam de ser amigos, mas tais desventuras também os ajudam a construir ainda mais o valor da amizade em si. Esses momentos fazem parte do processo de amadurecimento dos personagens e são essenciais em relações verdadeiras, pois exigem esforço, empatia e disposição para perdoar. Não há de fato amizade em uma relação que não permite erros, discussões e momentos de tensão. A amizade surge de uma construção contínua.

Frente a isso, é preciso fazermos um destaque especial à personagem Eleven que, junto com Will, é o fio que enlaça toda a trama. Criada em isolamento e submetida a experimentos, ela carrega traumas profundos que se manifestam tanto em seus poderes quanto em suas dificuldades em se relacionar com os demais, visto a falta de confiança na humanidade. Sua trajetória é marcada pela tentativa de entender quem ela é, de onde veio e a que lugar pertence.

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Dentro da série, Eleven é um personagem que nos coloca a refletir sobre como é possível traumatizar uma criança em fase de desenvolvimento. Por trás dos experimentos e da vida reclusa está uma jovem que foi machucada, tanto física como emocionalmente, e isso impacta diretamente em sua forma de reconhecer o mundo. O mesmo ocorre com as crianças no mundo real, pois seus traumas não desaparecem com a maturidade, mas se enraízam e podem se mascarar por trás de vícios de comportamento, de fobias sociais e até mesmo de um isolamento do mundo por não confiar nos demais.

A série, porém, mostra um caminho para enxergarmos uma vida longe do trauma. Ao longo da narrativa, sua aproximação com o grupo de amigos representa um processo de cura gradual, mostrando como vínculos afetivos podem ajudar a reconstruir identidades fragmentadas. A amizade, mais uma vez, se torna uma fonte de cura e ressignificação de falhas em nosso desenvolvimento. Quando pensamos sobre isso, podemos refletir sobre como uma saudável convivência com outros seres humanos, a busca real por viver os seus valores, é, no fundo, um caminho de humanização e autoconhecimento fundamental para todo e qualquer ser humano.

Além disso, a série sugere que o verdadeiro poder de Eleven não está apenas em suas habilidades sobrenaturais, mas também na capacidade de se conectar com os outros e de transformar dor em força. Ao passar a se importar com os outros e a cultivar a amizade e confiança nos demais, Eleven ganha mais do que amigos: adquire a real importância de combater e desenvolver seus poderes.

O mundo invertido como um reflexo de nossos traumas e medos

Falaremos agora de outra ideia importante em Stranger Things: o mundo invertido. Esse é um dos conceitos mais emblemáticos da série, visto que é o local para o qual Will é levado e onde os monstros habitam. Visualmente sombrio, ele funciona como um espelho distorcido da realidade, no qual a cidade de Hawkings existe, mas ao avesso. Sua função na série, entretanto, vai além do suspense, ou seja, o mundo invertido é um local não apenas tenebroso por excelência, mas onde há um forte simbolismo em sua existência.

Pode-se compreendê-lo como o mundo interior que há em nós, especialmente o local onde habitam nossos traumas, medos e angústias. Esse espaço sombrio é, na verdade, o aspecto negativo de nossa psique e que muitas vezes nos paralisa. Não por acaso, é nesse espaço em que as crianças ficam presas e, ao longo da série, nota-se claramente essa relação pelo fato dos monstros aprisionarem suas vítimas lá. Em uma análise psicológica, o mesmo ocorre quando vivemos um trauma, ele nos prende a emoções e pensamentos que são tão difíceis de escapar quanto uma prisão real.

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Assim como esse mundo paralelo, nossos traumas muitas vezes existem à margem da consciência e continuam influenciando nossas ações e relações. Eles não desaparecem simplesmente porque escolhemos ignorá-los. Pelo contrário, tendem a se manifestar de forma mais intensa quando não são enfrentados. Essa metáfora se torna especialmente evidente na trajetória de personagens como Will, cuja conexão com o mundo invertido deixa marcas profundas mesmo após ser resgatado. Seu sofrimento não termina quando ele retorna ao mundo “real”, pois as marcas desse trauma seguem em sua vida. 

Junto a isso, o mundo invertido naturalmente é um local que causa temor. O medo que vivenciam os personagens em Stranger Things não é apenas um recurso narrativo, próprio de uma trama de suspense, mas funciona principalmente como um elemento que forja os protagonistas. Cada personagem é confrontado com algo que o assusta profundamente – seja uma criatura monstruosa, a perda de alguém querido ou a sensação de inadequação ao mundo –, e isso funciona como um catalisador, ou seja, um aceleramento do processo de amadurecimento. Ao enfrentar seus medos, cada um cresce e pode se tornar mais confiante e se libertar das amarras psicológicas que tanto o prendem.

Frente a isso, uma importante lição da série é mostrar que o medo não deve ser negado ou ridicularizado. Ao contrário, reconhecê-lo é o primeiro passo para superá-lo. Os personagens que tentam fingir que nada está errado geralmente são os que mais sofrem e não avançam ao longo das temporadas. Já aqueles que encaram seus medos, mesmo com hesitação, encontram caminhos para crescer emocionalmente. Como espectadores, a lição fica muito clara: o crescimento pessoal quase sempre envolve atravessar zonas desconfortáveis, ou seja, precisamos encarar nossos medos para poder sair desse mundo invertido ao qual todos nós estamos inseridos.

O que aprender assistindo Stranger Things?

Como podemos notar, há diversas lições ao longo da série. Esse fato a coloca em um patamar distinto do lugar comum do universo do entretenimento, que, via de regra, produz conteúdo com o intuito apenas de entreter o espectador. Stranger Things, por outro lado, dá um passo além quando nos coloca a mergulhar na narrativa e faz refletir sobre algumas questões acerca do nosso mundo interno.

Um exemplo disso é a forma como a série trata o trauma não como um evento isolado, que tem um início e fim bem definido, mas como algo que deixa marcas duradouras, como no caso de Will, do qual já falamos. Outros personagens, porém, vivem dilemas similares, seja com a perda de um filho ou com a sensação de que jamais poderão ser os mesmos depois de encarar os eventos da série. Todos eles carregam consigo lembranças, medos e mudanças profundas em sua forma de se relacionar com o mundo.

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À medida que as temporadas avançam e os protagonistas crescem, com eles cresce também o tom da narrativa. A infância vivida pelos jovens na 1° temporada, por exemplo, é marcada por brincadeiras, imaginação e laços simples, e acaba dando lugar a dilemas mais complexos, como os da 5° temporada. Relacionamentos amorosos surgem, conflitos internos se intensificam e a percepção do mundo se torna mais madura e, também, mais complexa. Nesse sentido, o fato da série crescer junto com os personagens ensina que a “inocência” – que em resumo podemos apontar como uma das fases da infância – não pode ser preservada indefinidamente, e o conhecimento do mundo traz consigo decepções e frustrações.

No entanto, Stranger Things não apresenta essa transição de forma pessimista, como o clichê de “crescer dói” ou “a vida adulta é ruim quando comparada à infância”. Não se trata em absoluto sobre isso; pelo contrário, a série sugere que amadurecer também significa ganhar muito mais capacidade de resolução e autonomia diante dos problemas a serem enfrentados. Isso fica visível na própria dinâmica dos protagonistas. 

Se inicialmente alguns personagens começam a série jogando uma divertida campanha de RPG, ao longo do processo começam a deixar um pouco de lado essa referência (mas nunca a abandonam totalmente) e passam a encarar problemas do mundo adulto. Ainda assim, a série reforça que os aspectos desenvolvidos na infância deixam marcas profundas, tanto as boas como as ruins, e continuam influenciando quem nos tornamos.

Por que Stranger Things continua relevante?

Visto tudo isso, é possível entender que o sucesso duradouro de Stranger Things não se explica apenas por sua estética nostálgica ou por seus elementos de suspense, que, apesar de executados com excelência, não o diferenciam de outras obras do gênero. A bem da verdade, o fato é que a série permanece relevante porque fala, de forma simbólica e acessível, sobre questões profundamente humanas, e isso acaba por conectar os espectadores de tal maneira aos personagens que se torna impossível não se reconhecer em seus dilemas.

Além disso, a série não é previsível. Não há soluções fáceis nem finais completamente fechados em sua narrativa. Portanto, para quem ainda não conhece Stranger Things, assistir à série é mais do que acompanhar uma história envolvente: é um convite à reflexão sobre nossos próprios mundos invertidos, as amizades que nos sustentam e a coragem necessária para crescer. Que possamos aprender ainda mais sobre nós mesmos e nos entretermos com essa brilhante história.

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