“Kurukshetra”: O Épico do Mahabharata que revela as batalhas internas da alma humana

Desde tempos imemoriais, certas histórias se recusam a desaparecer. Elas sobrevivem ao passar das eras, aos choques de culturas, às rupturas políticas e às transformações a que a humanidade atravessa. Essas narrativas persistem porque tocam algo profundo, essencial e universal dentro de nós. “Kurukshetra: a grande guerra de Mahabharata”, série disponível na Netflix, é uma dessas manifestações modernas de um mito que atravessou milênios e continua a inspirar as novas gerações.

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Ao transformar um épico indiano milenar em uma experiência audiovisual acessível ao público contemporâneo, a série se coloca como um exemplo inspirador de como tradição e inovação podem caminhar juntas para manter vivo aquilo que é sagrado para a memória coletiva da humanidade. Nesse sentido, Kurukshetra representa um portal para um universo simbólico riquíssimo, que continua a ecoar porque consegue, de maneira quase mágica, falar diretamente ao coração humano. 

Além disso, a série chega em um momento em que as narrativas épicas ganham novo fôlego em um cenário global sedento por histórias que ofereçam significado. Em meio a uma realidade marcada por pressões sociais, polarizações políticas e crises existenciais, uma obra como Kurukshetra oferece uma oportunidade para refletirmos. Não se trata apenas de revisitar uma guerra lendária, mas de enxergar a nós mesmos nesse campo de batalha.

O fascínio do Mahabharata

Para entender a história de Kurukshetra é fundamental conhecer o cenário em que todo enredo se desenvolve: O Mahabharata. Esse é um dos principais épicos da cultura hindu, sendo considerado sagrado em alguns locais da Índia. Portanto, não podemos considerá-lo apenas uma narrativa literária, mas um livro permeado de sabedoria. A sua força reside na capacidade de apresentar personagens com profundidades psicológicas intensas, dilemas morais atemporais e descobertas espirituais que continuam a ressoar em um mundo cada vez mais materialista.

Falemos então do que se trata a história do Mahabharata. Esse épico narra a longa e complexa rivalidade entre duas famílias que descendem da mesma linhagem real: os Pandavas e os Kuravas. O enredo se constrói a partir de disputas por poder, injustiças, exílios, traições e escolhas que se acumulam ao longo de gerações, até culminarem em um dos maiores conflitos míticos da humanidade.

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No centro da narrativa estão questões existenciais profundas, como o dever, a honra, o destino e o livre-arbítrio de cada personagem. Estes, por sua vez, carregam tanto virtudes extraordinárias quanto falhas profundamente humanas. O épico mostra que a guerra não nasce repentinamente, mas é fruto de tensões, feridas que não cicatrizam e de decisões que moldam o curso de todo um povo.

É exatamente desse enredo ancestral que emerge a história de Kurukshetra, o campo onde a guerra decisiva é travada. A série concentra-se nesse momento final, trazendo para o centro da tela o clímax do épico. Desse modo, Kurukshetra não é apenas o cenário físico do combate, mas também um símbolo de tudo o que o Mahabharata construiu ao longo de sua narrativa: um espaço onde o destino de gerações se resolve, dilemas morais alcançam seu ápice e a espiritualidade se revela.

Essa riqueza de ensinamentos desperta o fascínio e explica por que tantas gerações continuam retornando a seus versos. A série honra esse legado ao apresentar uma narrativa que, apesar de adotar uma estética moderna, nunca perde de vista o espírito original das escrituras. Assim, a guerra de Kurukshetra não é uma guerra qualquer entre duas famílias, mas um símbolo que espelha a luta interna de cada ser humano.

Dentro de nós existe, muitas vezes, um campo de batalha onde escolhas difíceis são travadas. Entre o certo e o confortável, entre o dever e o desejo, entre o medo e a coragem, entre o silêncio e a ação. A grande história por trás dessa batalha é, na verdade, a luta do ser humano contra si mesmo.

Kurukshetra não é um espaço distante no tempo, mas sim um lugar que carregamos dentro de nós. É a arena onde nossas decisões moldam nosso caráter, onde nossos valores são testados, onde descobrimos quem realmente somos. Cada personagem é, portanto, um reflexo de nós mesmos em algum momento da vida: Arjuna, com sua dúvida paralisante; Yudhisthira, com sua busca incessante pela justiça; Bhima, com sua força e impulsividade; Krishna, com sua serenidade e sabedoria que ultrapassam qualquer compreensão racional.

A série, ao retratar esses personagens com profundidade, permite que o espectador reconheça nessa antiga guerra as batalhas contemporâneas que enfrentamos diariamente. Esse reconhecimento faz de Kurukshetra não apenas um evento histórico-mitológico, mas principalmente um espelho eterno do ser humano. 

Não por acaso, há um outro livro de sabedoria tão profundo quanto o próprio Mahabharata, o famoso “Bhagavad Gita”. Nele está contida uma pequena cena dessa grande guerra em que Arjuna, um dos príncipes Pandavas, tem dúvidas quanto ao sentido daquele embate, e Krishna ensina a ele os motivos pelos quais deve combater. Não nos alongaremos nessa história aqui; porém, para aqueles que desejam se aprofundar nessa temática, indicamos um texto no nosso portal que fala sobre essa outra narrativa. Você pode acessá-lo clicando aqui.

A Jornada dos Pandavas e Kuravas: recontando um velho mito

Agora que entendemos um pouco do enredo, precisamos compreender quem são os Pandavas e Kuravas. No imaginário moderno, a série ressignifica os heróis e antagonistas do Mahabharata. Os Pandavas são apresentados com virtudes claras, mas também com imperfeições que os tornam humanos. Os Kuravas, por sua vez, não aparecem apenas como vilões estáticos, mas como indivíduos moldados por dores profundas, por expectativas esmagadoras e por carências afetivas que moldaram suas escolhas.

Essa abordagem mais psicológica permite ao público compreender que não existe guerra sem contexto, nem antagonista sem história. Além disso, nos faz compreender que nenhum dos símbolos é absoluto, mostrando cada personagem como uma face da psique humana. O seriado nos leva a refletir que, na realidade, todos os personagens são vítimas, de alguma forma, de suas circunstâncias. 

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Junto a isso, ao recontar a jornada dessas famílias, a série atualiza o Mahabharata para um mundo que demanda narrativas mais complexas, mais sensíveis e mais humanas, dando assim chaves de interpretação e vivência adaptadas ao nosso momento histórico. Dentro desse contexto, a série é um exemplo emblemático de como antigas narrativas devem ganhar uma nova forma para serem conhecidas pelo mundo. Ao mesmo tempo em que preserva o espírito épico original, ela se reinventa para dialogar com o espectador do século XXI, que está habituado a narrativas visuais complexas, cenários grandiosos e construção psicológica refinada.

Recontar mitos, portanto, não é uma tarefa simples como transportar algo do passado para o presente de maneira literal. Na verdade há diversas maneiras de fazê-lo, por isso podemos entender como um processo dinâmico com diversas nuances e que tem como grande mérito permitir que narrativas que nasceram em tempos muito distantes encontrem, hoje, um novo público para poder contagiar e ensinar.

Se os mitos permanecessem estáticos, sem adaptações a novos momentos, eles perderiam sua força e provavelmente desapareceriam do mundo. Tornar-se-iam peças de museu, observadas com respeito, mas sem vida. O que mantém um mito vivo é a sua capacidade de ser recriado, reinterpretado e adaptado, seja usando roupagem completamente nova ou usando novas mídias, como no caso de Kurukshetra, para recriar sua narrativa.

A verdadeira tradição está em preservar a essência, não a forma. Esta deve ser moldada aos tempos, que, por força da própria natureza, estão sempre mudando. E isso fica nítido em Kurukshetra, pois a série consegue honrar o texto original e permite que a estética moderna e a dramaturgia atual se entrelacem à narrativa antiga. E é justamente isso que garante que o Mahabharata alcance ainda mais pessoas para além da cultura indiana.

Dimensões filosóficas de Kurukshetra

Como podemos perceber, o Mahabharata não é apenas um épico narrativo; é um tratado filosófico. Suas páginas apresentam reflexões profundas sobre o sentido da vida, sobre a relação entre ação e moralidade, sobre a inevitabilidade do destino e sobre o papel do ser humano na construção da justiça. A série honra essa dimensão filosófica ao incorporar diálogos e cenas que remetem diretamente aos ensinamentos originais. Em muitos momentos, a narrativa desacelera para que o espectador possa meditar sobre questões fundamentais. Essa escolha narrativa é fundamental para preservar a essência da história que sempre foi um texto que nos convida à reflexão.

Assim, a filosofia que emerge na série oferece ao espectador oportunidades de tentar enxergar a si mesmo em alguns dos personagens. É como se cada diálogo ecoasse dentro de nós, convidando-nos a observar nossa própria vida com mais lucidez. A guerra de Kurukshetra, então, deixa de ser apenas um conflito externo e passa a ser a metáfora perfeita para a batalha interior que todos travamos em algum momento da existência.

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Arjuna certamente é o exemplo dessa tensão interna que está em todo ser humano. No auge da guerra ele se vê paralisado pelo medo de agir contra aqueles que ama. Seu dilema é humano, demasiadamente humano. Ele não quer lutar, mas ao mesmo sabe que é seu dever combater. Essa dúvida é, de modo objetivo, o reflexo de uma crise existencial que muitos de nós enfrentamos ao longo da vida.

A intervenção de Krishna perante o dilema de Arjuna é mais do que uma visão divina: ela lhe mostra um caminho filosófico das razões pela qual deve lutar. Ele não ordena Arjuna a se jogar na batalha, mas o oferece reflexões e desse modo o conduz em direção à compreensão profunda do próprio destino. A busca interior torna-se, assim, a verdadeira jornada heroica da história. A guerra externa é apenas a superfície. Esse destino os hindus chamam de Dharma, a grande lei universal em que cada ser vivo caminha em busca de sua realização. 

O Dharma de cada personagem se revela nas escolhas que fazem, mesmo quando tudo parece perdido. E a série traduz essa busca com cenas contemplativas e diálogos que respiram filosofia. Assim, além de uma estética bela e chamativa, a série tem grandes momentos de reflexão e que fazem os espectadores pensarem sobre suas próprias escolhas e caminhos.

Visto isso, um dos pontos mais marcantes da narrativa é a universalidade de seus dilemas. Embora o Mahabharata pertença à tradição indiana, suas questões morais podem ser reconhecidas em qualquer parte do mundo. A série reforça essa percepção ao destacar que nenhum personagem é puramente bom ou puramente mau, como já explicamos. Todos carregam ambivalências, medos e contradições que são, de fato, faces da humanidade.

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Yudhisthira, por exemplo, é o rei justo, mas frequentemente hesita diante das demandas políticas e emocionais que o cercam. Bhima, apesar de forte e corajoso, luta contra impulsos que o afastam do equilíbrio interior. Duryodhana, considerado o antagonista e o mais “vilão” de todos os personagens, não é apresentado como um ser monstruoso, mas como alguém moldado por ressentimentos profundos e por um desejo desesperado de reconhecimento. Arjuna não é apenas um guerreiro inabalável, mas alguém que sente profundamente a dor de suas responsabilidades. Bhishma, o grande sábio e guerreiro, carrega consigo um voto que molda toda a narrativa e, ao mesmo tempo, o aprisiona em uma promessa cujo peso se estende por gerações.

Essas nuances humanizam a narrativa e convidam o espectador a refletir sobre as próprias falhas, as suas próprias contradições e o modo como cada escolha molda o destino de cada um de nós. Além disso, a humanização desses personagens torna a narrativa mais rica e mais verdadeira, pois permite que o espectador perceba que os mitos, apesar de grandiosos, foram criados para falar sobre a realidade humana, sobre nossas dores, nossos limites e nossa capacidade de transformação.

A relevância dos ensinamentos de Krishna

Dito tudo isso, não podemos falar sobre Kurukshetra e não destacarmos os grandes ensinamentos de Krishna. Estes atravessam o tempo porque falam sobre dilemas humanos universais. Embora tenham sido proferidos há milhares de anos, continuam a ecoar com uma clareza surpreendente e fazem com que qualquer um que realmente esteja aberto à reflexão pense sobre a sua profundidade.

Um desses ensinamentos nos lembra que agir com consciência é mais importante do que agir com perfeição. O resultado objetivo do que fazemos é diferente das intenções pelas quais fazemos. Vencer a guerra não é, portanto, derrotar um inimigo, mas agir conforme seus valores e deveres, sem se desviar de quem realmente é. É por isso que o caminho do Dharma não é simples, mas o único que conduz à verdadeira paz interior.

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Ao fazermos um paralelo com o mundo atual, totalmente focado em objetivos e resultados, muitas vezes achamos que para alcançar o sucesso vale tudo, inclusive trair a si mesmo. Não raramente vemos casos de trapaças em competições, em negociações e mesmo na vida cotidiana. Será que essa “vitória” está nos conduzindo ao nosso destino? 

Outro ponto que aproxima a narrativa de Kurukshetra ao mundo em que vivemos é a disputa entre os dois lados. Em um mundo marcado por conflitos ideológicos, muitas vezes enxergamos o lado adversário como um inimigo a ser destruído e não enxergamos suas virtudes. Pandavas e Kuravas, apesar de lados opostos, são frutos de uma mesma árvore genealógica. 

Desse modo, apesar da necessidade do combate, jamais devemos fazê-lo por raiva, vingança ou qualquer desejo nefasto. Isso se mostra na bela relação de Bhishma, o comandante do exército dos Kuravas, e todos os Pandavas. Bhishma foi o mestre de todos nas artes marciais e, apesar de lados opostos, o seu único desejo é que seus discípulos lutem com tudo que aprenderam para honrar assim seus ensinamentos. Essa perspectiva mostra como os lados combatem por uma questão do destino, não por desejarem a destruição mútua.

Dito isso, é notável que todos nós estamos no campo de Kurukshetra. São momentos decisivos em que devemos escolher entre o medo e a coragem, entre a inércia e a ação, entre a justiça e a conveniência, ou seja, estamos em eterno combate dentro de nós. Quando entendemos isso, percebemos que a série é extremamente simbólica e devemos assisti-la com olhos atentos para absorver seus ensinamentos.

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Kurukshetra, portanto, é mais do que uma série de entretenimento: é um encontro entre eras, um diálogo entre o ancestral e o contemporâneo. Ela nos ajuda a lembrar como narrativas tradicionais estão permeadas de ensinamentos atemporais, que não apenas vencem o tempo, mas também conseguem se reinventar naturalmente e continuam a transmitir sua sabedoria. Ao revisitarmos esse épico, ele prova que os mitos não pertencem apenas ao passado, muito menos a um único povo, mas sim a toda humanidade.

No fim, o que permanece não é apenas a memória das batalhas, dos conflitos ou dos grandes guerreiros. O que permanece é a compreensão de que todos nós estamos, de alguma forma, atravessando nossos próprios campos de Kurukshetra. Se lembrarmos somente disso, já podemos mudar nossa vida completamente. Ao invés de julgar o próximo e colocá-lo em pechas, muitas vezes injustas, poderemos pensar em quantas batalhas internas aquela pessoa está enfrentando. E isso também cabe a nossa realidade, pois quantas vezes vivemos como Arjuna, com dúvidas e receios, com medo desse combate interno e de decidir agir a partir de nossa essência humana e não por nossas conveniências? 

Ao recontar esse belo mito, a série nos devolve todos esses ensinamentos que, direta ou indiretamente, já conhecemos em nosso íntimo. Portanto, não pensemos apenas em diversão quando nos depararmos com essa série de episódios. Deixemos ser guiados pela voz de Krishna para absorver seus ensinamentos mais profundos. 

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