“Troia: A Queda de uma Cidade”: A Adaptação Mais Fiel à Ilíada Já Produzida?

Troia: A Queda de uma Cidade” é mais do que uma adaptação moderna – ela revive a grandiosidade da obra de Homero, que ocupa um lugar singular na história da humanidade ao inaugurar um estilo literário inédito no Ocidente e apresentar a Guerra de Troia como um espelho da alma humana. A Ilíada e a Odisseia formam a base da literatura ocidental, porém, ao mergulharmos em seus versos, percebemos que há um aspecto demasiadamente humano em sua narrativa. A relação entre os personagens e a maneira como expõe suas angústias e emoções continuam a nos acompanhar, pois, mesmo não sendo nem gregos nem troianos, ainda somos todos humanos.

Nesse sentido, Homero não apenas descreve locais, conflitos e cidades, mas também investiga o coração humano. Sua poesia atravessa milênios porque fala sobre honra, medo, desejo, perda e esperança com uma precisão emocional que permanece atual. A história da Guerra de Troia, em particular, funciona como uma espécie de eixo fundador da imaginação coletiva. Ela sintetiza temas que moldaram nossa maneira de contar histórias: o amor que desafia reinos, a fúria que transforma destinos, o heroísmo que custa caro, o desejo humano de significação. 

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É por ter temas tão relevantes à psique humana que essa história, apesar do tempo que se passa, nunca deixa de ser atual. Troia nunca deixou de ser revisitada, seja por poetas, dramaturgos, pintores, cineastas, historiadores. Cada geração retorna a essa narrativa porque ali encontra uma fonte inesgotável de símbolos e perguntas, sendo assim um laboratório emocional que examina as tensões existenciais que todos nós, em maior ou menor grau, sofremos.

Além disso, para os mais céticos, a Guerra de Troia não permanece viva apenas por sua dimensão literária, mas também porque representa um encontro entre mito e história. A arqueologia confirma que existiu uma cidade poderosa naquele ponto estratégico do Mediterrâneo, e que conflitos violentos marcaram sua destruição. Essa confluência entre o real e o imaginado reforça o fascínio da narrativa, pois até então imaginávamos que essa história era apenas uma tradição artística. 

Assim, Homero, em certa medida, não escreveu apenas uma ficção, mas parte da história da Grécia Antiga. Troia passa a simbolizar ao mesmo tempo um lugar concreto e um território mítico, uma fronteira onde o humano se encontra com o eterno. É essa ambiguidade que faz com que a história continue gerando interpretações, debates e novas criações.

Uma pequena síntese da série

Dito isso, hoje estamos indicando a série “Troia: a queda de uma cidade”, produzida pela BBC em parceria com a Netflix. Essa é uma das mais ousadas tentativas contemporâneas de resgatar um mito que sempre esteve presente na formação cultural do Ocidente. Muitas vezes revisitada, reinterpretada e adaptada, ela costuma perder nuances essenciais no processo de criação, seja por estereótipos hollywoodianos, seja por leituras superficiais que reduzem o épico a uma batalha entre gregos e troianos. Porém, em “Troia: a queda de uma cidade” o grande diferencial está na apuração das informações e dos detalhes narrativos precisos que apontam a série com os versos de Homero. 

Nesse sentido, a série retoma o mito com o cuidado de quem sabe que está trabalhando sobre uma das fundações do imaginário humano e, por isso, não economiza na aproximação das fontes. Além disso, apresenta a guerra não como um acidente ou como uma simples disputa por uma mulher, mas como o resultado de uma complexa teia de pressões culturais, interesses e, como se mostra no original, uma disputa entre os próprios deuses olimpianos. 

A narrativa não apressa o espectador – e isso talvez seja o seu grande diferencial – e o conduz pela construção do conflito. Cada cena é uma peça que compõe o mosaico emocional que justificará tudo o que virá a seguir, fazendo o espectador não apenas compreender a causa e consequência, mas também se enxergar nos personagens que são, enfim, um reflexo da própria psique humana.

Ao adaptar a estrutura épica para um formato televisivo, a série faz uma ponte entre mundos distantes, uma vez que a poesia da Ilíada, composta por fórmulas repetidas, epítetos e longas digressões, próprias da escrita homérica, é substituída por diálogos que preservam o conteúdo emocional sem tentar imitar a forma. A série, nesse sentido, consegue transpor a essência do texto de Homero em uma forma atual, dinâmica, que mantém o espectador atento à trama. Outro ponto positivo dessa adaptabilidade bem-sucedida é o fato de permitir que a essência do poema seja compreensível para quem não está habituado à literatura clássica, sem perder a sensação de estar diante de algo maior do que uma simples narrativa.

A fidelidade à obra de Homero aparece, sobretudo, na maneira como a série lida com os personagens. Cada um carrega sua própria tragédia interna, seu conflito que é apenas seu. A série não transforma heróis em figuras unidimensionais, que são movidos pelos mesmos desejos, No fundo, o fato de explorar melhor o universo que circunda cada um deles revela que não existe um lado absolutamente “bom” ou outro que seja absolutamente “mal”. Todos, em diferentes níveis, possuem virtudes e também defeitos. 

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Aquiles, por exemplo, não é apenas a máquina de guerra temida por todos, como usualmente ele é apresentado em outras adaptações. Ele carrega a angústia da mortalidade, a frustração com a liderança grega, o desejo de ser reconhecido e o medo de ser esquecido. Agamenon, por sua vez, não aparece como o grande vilão da trama, pois, em Homero, ele não o é. Suas decisões duras refletem o peso da liderança e o choque entre ambição e responsabilidade. Ele é um rei que acredita que a vitória dos gregos depende da sua firmeza, mesmo que essa firmeza custe sacrifícios pessoais e alianças frágeis.

Entretanto, é na figura de Heitor que a série encontra seu coração. Homero o retrata como o mais humano dos heróis e a série abraça isso de maneira brilhante. Heitor luta não por glória, mas por dever à sua cidade. Ele sabe que Troia provavelmente não vencerá a guerra, mas escolhe permanecer leal aos seus companheiros e ao seu Rei. Na série é nítido o peso de alguém que carrega nas costas o destino de uma cidade inteira.

Outro diferencial da série perante as demais adaptações está na presença dos deuses. Muitas vezes mostrada de maneira sutil, porém decisiva na trama, assim como no original, essa presença torna a série mais misteriosa no sentido de que, de certo modo, o destino humano é guiado, de forma indireta, pelas forças da natureza. Nesse aspecto, a série resgata uma ideia importante ao espectador: a de que existem forças que transcendem a humanidade, mesmo que não possamos entendê-las. Não precisamos pensar em divindades, mas sim em leis que regem o cosmos e a nós também, percebendo que, ao não compreendê-las, estamos sujeitos aos seus efeitos.

Um convite para reviver um dos maiores mitos da humanidade

Por tudo isso, “Troia: a queda de uma cidade” se torna uma porta de entrada extraordinária para a obra de Homero. É evidente que uma adaptação tem seus limites, e não pensemos que ela pode substituir a leitura da obra; porém, para aqueles que pouco conhecem a narrativa, a série nos dá um grande e profundo embasamento. Sua grande virtude, nesse sentido, é mostrar como a mitologia ainda é uma fonte de conhecimento e sabedoria para a humanidade, algo que aos poucos estamos perdendo. Quem assiste à série sente vontade de revisitar o texto original  dado o deslumbre que ela nos causa.

Podemos entender, portanto, que a série não é apenas entretenimento. É um gesto de respeito ao mito, à história e à literatura. É uma tentativa sincera de mostrar que Troia não caiu apenas pelas mãos de guerreiros, mas também pela força do destino e da Vontade de homens e deuses. Entre fato, mito, arqueologia e poesia, a produção consegue recontar uma história conhecida sem esvaziar sua grandeza. Pelo contrário: ela a renova.

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Como apontamos, a série consegue retratar algo sutil que Homero deixou em seus versos: os personagens como símbolos da psique humana. Assim, não basta apenas entendermos suas ações, mas também perceber em que nível nos reconhecemos neles. Para tanto, é preciso conhecer um pouco mais de cada um. Ressaltamos que não poderíamos falar de todos os personagens que estão na série; logo, falaremos apenas de alguns como exemplos para que o leitor, ao assistir a série, possa apurar o olhar sobre a trama e compreender os símbolos de cada um na narrativa homérica.

Comecemos pela causa da guerra: a bela Helena. Na série, fica nítido que ela não é retratada como uma simples causadora da guerra. Em vez disso, vemos uma mulher que carrega, ao mesmo tempo, o drama da posição social que possui e seus desejos. Aos mais atentos, percebe-se que, no fundo, Helena não é a causadora da guerra, mas uma peça dentro de engrenagens históricas, políticas e mitológicas que movimentam a narrativa desde muito antes de seu nascimento. Isso não apenas enriquece sua presença, dando mais protagonismo em suas ações e renegando o lugar pálido em que ocupava nas outras adaptações como apenas uma dama que escapou de um matrimônio ruim.

Entre os personagens masculinos, a contraposição entre Heitor e Aquiles é, talvez, o ponto mais arrebatador da série. Ambos são guerreiros excepcionais, mas carregam sistemas de valores completamente opostos. Heitor é o pilar moral de Troia. Ele luta porque ama sua cidade, porque reconhece sua responsabilidade como príncipe, marido e pai. Para ele, a guerra não é uma busca pessoal por glória, mas um duro dever a ser cumprido. Sua grandeza está justamente na consciência do sacrifício que precisa ser feito. Heitor sabe que a defesa de Troia provavelmente custará sua vida, mas ainda assim permanece cada vez mais firme, como se seu destino estivesse entrelaçado ao das muralhas que protege.

Aquiles, em contrapartida, é movido pela ânsia de eternidade. Ele encarna a tensão entre o desejo de viver plenamente e a busca pela glória e imortalidade. Deseja fortemente que seu nome seja lembrado por todas as gerações humanas e sabe que a guerra pode destruí-lo, mas também sabe que sua ausência significará cair no esquecimento, uma morte ainda mais temida que a física. Na série, assim como na Ilíada, a fúria de Aquiles nasce do orgulho, da sensação de desrespeito por parte de Agamenon, e de um conflito interno que o dilacera mais intensamente do que qualquer golpe de espada.

O ápice da série surge quando esses dois mundos se confrontam. Heitor representa esse grau de maturidade, de entender que o cumprimento do dever está acima dos desejos individuais; Aquiles simboliza a juventude, que, por ser cheia de energia e vigor, busca alcançar a imortalidade. Heitor luta para preservar; Aquiles luta para transcender. E é nesse choque de valores que a narrativa encontra uma das mais belas expressões da tragédia grega: a morte de Heitor não é apenas a queda de um guerreiro, mas também o presságio da queda de Troia.

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Sua derrota é o instante em que os alicerces emocionais da cidade começam a ruir. A série retrata esse momento com a dignidade que ele merece, devolvendo ao espectador a profundidade emocional que fez desse episódio um dos mais doloridos da literatura universal.

Quanto aos deuses, mesmo com uma representação discreta, o fato de mostrar que os fatos históricos são completamente influenciados por suas decisões já diferencia a série entre todas as outras adaptações anteriores. Ao invés de mostrar deuses visíveis descendo do Olimpo, que podem ser vistos por qualquer pessoa, a atuação deles no mundo humano se dá por meio de presenças invisíveis em que apenas os escolhidos ou grandes heróis podem observá-los.

Além disso, a fé na vontade divina acompanha todas as decisões importantes. Cada gesto é permeado pelo temor de desagradar uma força superior. E, quando as ações se desenrolam de forma trágica, há sempre a sensação de que algo maior estava agindo nos bastidores, como se o destino fosse um fio invisível conduzido pelas emoções mais profundas do ser humano.

A perenidade de um mito que nunca envelhece

Ao final da jornada que “Troia: a queda de uma cidade” oferece, percebemos que não apenas assistimos a uma série histórica ou a uma adaptação literária, mas que também podemos vivenciar o renascimento de um mito que continua pulsando no imaginário humano. E isso é muito importante, principalmente no momento em que vivemos, no qual os aspectos mitológicos são vistos, em geral, com maus olhos ou com desconfiança. Olhamos para os mitos das mais antigas tradições humanas com desdém, como se não participassem de nossa realidade psicológica, e assim renegamos o mito apenas a uma série de histórias que não envelheceram bem.

Entretanto, ao encontrarmos as chaves simbólicas dessas histórias, somos capazes de perceber não somente seu valor, mas também o quanto se comunicam com a vida humana em seus mais diferentes sentidos. Desse modo, somos conduzidos durante a série pelas muralhas intransponíveis de Troia e nos tornamos testemunhas da grandeza e queda dessa cidade. A cada episódio, somos lembrados de que Homero não escreveu apenas sobre heróis e deuses, mas principalmente sobre a vida humana e sua conformidade perante os ciclos da natureza; afinal, tal como Troia, também seremos derrotados em algum momento.

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Por fim, a série revela que compreender Troia é compreender a si mesmo. É olhar para o desejo e o dever, o amor e o orgulho, a coragem e o medo, o destino e a liberdade. Todas essas expressões, boas ou ruins, estão em cada um de nós e compõem o que chamamos de ser humano. Muitas vezes, não aprendemos a lidar com nenhum desses aspectos e nos faltam palavras para descrevê-los. Ainda assim, o mito consegue sintetizar em símbolos todas as nuances desse mundo interior que sentimos, mas não enxergamos.

Assim, se faz necessário perceber que os personagens, seja Aquiles, Heitor, Helena, Andrômaca ou qualquer outro, não são figuras distantes, mas espelhos onde reconhecemos nossas próprias contradições. Por isso, a série emociona quem realmente a assiste com os olhos despertos, pois traduz em imagem e gesto aquilo que a poesia de Homero traduziu em verso e ritmo.

Ao devolver profundidade aos conflitos e demonstrar a sutileza de cada personagem, a série consegue fazer jus à dignidade e se colocar à altura do mito. Nesse aspecto, a série se torna não apenas um entretenimento de qualidade, mas também uma ponte entre mundos, entre o pensamento antigo e a atualidade. Assistir a “Troia: a queda de uma cidade” é, acima de tudo revisitar um passado que não está enterrado ou muito menos esquecido, é reencontrar um legado que moldou nossa sensibilidade de todo pensamento humano e criou a base na qual nossas narrativas sobre amor, guerra, honra e destino se sustentam.

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