Série “Contos Arturianos”: Sir Gawain e a honra

Bem-vindos à série “Contos Arturianos”, uma jornada promovida pela Feedobem e que nos leva ao universo simbólico de Sir Gawain e a honra, valores centrais nas histórias do Rei Arthur e dos cavaleiros da Távola Redonda. Nesse conjunto de textos, falaremos sobre as diversas aventuras desse grupo de cavaleiros medievais que lutavam pela honra, bondade e justiça no mundo. Se você ainda não conhece a nossa série, recomendamos que leia o nosso texto de introdução, pois nele abordamos conceitos-chave e ideias principais que nos guiarão nessa jornada ao longo dos contos do Rei Arthur. Você pode acessar nosso texto clicando aqui.

Dito isso, é inegável que há algo de mágico nos contos arturianos, e não é só por causa das espadas encantadas, da magia e feitiços e maldições que são lançados e quebrados ou desafios como enfrentar dragões ou superar a morte. Na verdade, o que nos encanta nesses contos fantásticos é a profunda sabedoria que há neles e que poucas vezes conseguimos acessar. Normalmente, ao nos depararmos com tais histórias, ficamos presos apenas no entretenimento e na superfície de suas lições; entretanto, ao mergulharmos mais profundamente em seus símbolos, podemos aprender lições extremamente valiosas para nossas vidas.

Cavaleiro medieval Sir Gawain segurando espada com expressão determinada, usando capa vermelha e túnica verde diante de uma parede de pedra
Sir Gawain em postura solene diante da corte de Camelot

Não por acaso, essas histórias atravessaram séculos não apenas por entreter, mas também por tocar em aspectos universais da alma humana: valores como a honra, a coragem, a disciplina, a bondade e a justiça permeiam os contos arturianos e nos relembram o valor de cada uma dessas atitudes humanas perante os dilemas. Mesmo que nos dias atuais não precisemos mais resgatar princesas em castelos, nem mesmo portar armas e armaduras, nossos valores seguem existindo e precisam de representantes. Assim, dentro de nosso contexto histórico, podemos nos inspirar nesses cavaleiros e sermos nós mesmos, artífices de nossas próprias aventuras cavalheirescas.

Frente a isso, hoje separamos dois contos que falam sobre o valor da honra. E não há outro cavaleiro da Távola Redonda que representa mais essa virtude do que Sir Gawain, um dos grandes guerreiros que lutaram ao lado de Arthur para defender os ideais de Camelot. Vamos conhecê-lo?

Sir Gawain e o Cavaleiro Verde: quando a coragem se mede no silêncio

Primeiramente, devemos saber que Sir Gawain é mais do que um cavaleiro corajoso da Távola Redonda. Simbolicamente, esse cavaleiro – assim como outros que compõem o grupo – é a representação do ser humano que busca viver de acordo com os seus valores. Desse modo, todo cavaleiro tende a ser um modelo humano, um arquétipo, como diria Platão. Nesse sentido, suas histórias vão refletir muito mais do que bravura e coragem, mas outra série de virtudes, tão importantes quanto estas, para a nossa vida.

Sobrinho do Rei Arthur, Gawain se destaca não pela força bruta, mas pelo seu caráter, humildade e honra. Suas histórias, em geral, refletem tais virtudes, principalmente quando envolvem o risco a si mesmo e a proteção da imagem do reino. Vamos conhecer agora uma das principais histórias em que Gawain é protagonista: a disputa contra o Cavaleiro Verde.

Sir Gawain enfrentando o Cavaleiro Verde no salão de Camelot
Sir Gawain aceita o desafio do Cavaleiro Verde

Essa história começa de um modo um tanto quanto inusitado. Fala-se que certo dia, na corte de Camelot, surgiu um cavaleiro de armadura verde. Ninguém o conhecia, entretanto, ele fez um desafio aos cavaleiros da Távola Redonda: desafiava algum desses guerreiros a dar-lhe um golpe de espada, seja em qual local for, mas devolveria esse golpe apenas um ano depois. O teste, na verdade, era sobre coragem, a fim de saber quem arriscaria sua vida em nome da honra do reino; afinal, se ninguém aceitasse tal desafio, por mais sem sentido que fosse, a imagem dos cavaleiros ficaria manchada como sendo um grupo de covardes.

Para evitar essa desmoralização, Sir Gawain aceita o desafio do misterioso cavaleiro. Assim, empunhando sua espada, Gawain golpeia o pescoço do cavaleiro, cortando-lhe a cabeça. Em uma história comum essa contenda estaria resolvida, afinal, um cavaleiro morto não poderia combater ou dar o golpe no ano seguinte. Porém, os contos arturianos são envoltos em mistério e, como que por uma mágica, o cavaleiro continuou vivo.

Imagine-se agora estar diante de uma figura que, mesmo decapitada, continua viva. O cavaleiro verde caminhou até a sua cabeça, a segurou e a colocou de volta. Estava mais uma vez inteiro. Olhou para Gawain e todos os outros membros da Távola Redonda, disse: “Daqui a um ano devolverei esse golpe” e saiu do reino. 

O que faríamos se estivéssemos no lugar de Sir Gawain? Nos esconderíamos? Fugiríamos de Camelot? Certamente o medo da morte nos faria cair em alguma dessas questões, afinal, somos seres humanos e o instinto de sobrevivência, por muitas vezes, fala mais alto. Sir Gawain, porém, representa o arquétipo humano, logo, suas ações são tão nobres como deveriam ser.

A grande lição está nesse momento. Ao invés de fugir, Gawain aceita seu destino e busca cumprir com sua promessa. Ao se aproximar da data em que o cavaleiro verde retornaria, o sobrinho do Rei Arthur parte em sua direção, afinal, quem estava em débito era ele e não faria sentido esperar pelo cavaleiro. Em sua jornada, finalmente encontra o castelo do cavaleiro e é bem recebido pelo mesmo. Gawain não demonstra medo, mas sim respeito e aceita a morte para cumprir o seu dever. 

Sir Gawain cavalgando em direção ao castelo do Cavaleiro Verde
A jornada solitária de Gawain em busca de cumprir sua palavra

Sua postura altiva é tão impressionante que o cavaleiro verde, em um ato de piedade, não cumpre sua parte da aposta, libertando Gawain do seu destino. Ao invés de fugir, Gawain foi ao encontro da morte, pois do que valeria viver sem a honra? Assim, essa pequena história é capaz de nos contar muito mais do que apenas uma narrativa fantástica.

Refletindo sobre isso, como podemos aprender com Gawain? Quantas vezes deixamos de descumprir nossos acordos por estarmos sem vontade ou com preguiça de fazer aquilo que combinamos? Nos dias atuais isso está muito presente e, infelizmente, a honra se tornou uma palavra cada vez mais rara de ser vivida. Mesmo que cumprir algum compromisso nos exija um gasto – seja de tempo, dinheiro ou de saúde –, será que não vale a pena viver essa ideia? 

O casamento de Sir Gawain: o poder de escutar o outro

O outro conto que abordaremos nesse texto é conhecido como “O casamento de Sir Gawain”. Neste conto, o Rei Arthur é colocado diante de uma pergunta aparentemente simples, mas que carrega um peso imenso: “O que as mulheres mais desejam?” Arthur é obrigado a responder essa questão para que não seja morto, porém, não sabe a resposta. Assim, sua busca o faz chegar até a irmã do seu algoz, chamada Ragnelle, ou dama Ragnelle em algumas traduções.

Sir Gawain casando-se com a dama Ragnelle diante do Rei Arthur
Gawain aceita casar-se com Ragnelle para salvar Arthur

A aparência de Ragnelle era a de uma bruxa tipicamente medieval: com medidas desproporcionais, era vista como uma mulher horrenda, e por isso ninguém nunca a quis como esposa. Ela sabe a resposta, entretanto, em contrapartida, exige que se case com um cavaleiro. Nenhum dos nobres guerreiros gostaria de se casar com Ragnelle, porém, mais uma vez Gawain se coloca à frente do desafio. Ele aceita ser o marido dela para evitar que Arthur seja morto. 

Assim ocorre: Ragnelle dá a resposta a Arthur: o que as mulheres mais desejam é soberania. Podemos interpretar essa resposta de diferentes modos, a partir de uma análise histórica, afinal, durante grande parte do tempo as mulheres estavam sob o jugo dos homens. Porém, como símbolo, a resposta de Ragnelle nos fala sobre a liberdade, a capacidade de escolher de fato e não ser conduzida pelos vícios ou tendências da própria personalidade.

Arthur consegue sua resposta e é salvo, porém, Gawain precisou se casar com Ragnelle. O sacrifício pelo seu rei sempre vale a pena, afinal, um cavaleiro precisa de um rei para o comandar. No casamento, no entanto, Gawain descobre que Ragnelle vivia sob um feitiço: metade do dia, assumia sua forma horrenda, disforme; e na outra metade, era uma bela princesa, que é justamente a sua face antes de ser amaldiçoada. Esse feitiço só poderia ser quebrado quando ela pudesse ser verdadeiramente livre, ou seja, tivesse soberania sobre suas escolhas. 

Ragnelle, então, pergunta a Gawain: como você quer que eu me pareça? Deseja que eu seja bela pela manhã, na frente de todos, e feia a noite, em nosso quarto ou prefere o contrário? Gawain percebe que não pode decidir pela sua esposa e diz: “Você pode escolher, é livre. Isso depende apenas de ti”. Quando Gawain devolve à sua esposa a escolha, o cavaleiro a liberta do feitiço. Em contrapartida, a jovem também lhe dá o direito de seguir sua vida, não estando preso aos laços do matrimônio.

Transformação de Ragnelle em princesa ao ganhar sua liberdade
A libertação de Ragnelle ao conquistar sua soberania

Este conto é profundamente atual! A palavra mais usada em nossos tempos é “liberdade”. Queremos liberdade de expressão, liberdade de realizar nossos desejos, porém, será que somos livres? Cada vez mais queremos controlar uns aos outros, decidir o que é melhor para nossos parceiros(as) e, ao mesmo tempo, nos mantemos presos a dogmas que já não fazem parte de nós, mas sentimos que não somos capazes de viver sem eles.

Nesse sentido, Gawain nos lembra que amar, colaborar, conviver não é sobre impor vontades, mas sobre respeitar a escolha do próximo. Assim, converte-se a máxima “Viver e deixar viver” em uma forma de vida própria, capaz de ser empático com o outro e, ao mesmo tempo, não desejar impor seus desejos acima das escolhas de cada um.

Por fim, é notável o quanto podemos aprender com cada uma dessas histórias. Esse é o nosso verdadeiro desejo para que cada um possa refletir como podemos ampliar tais ideias e vivê-las em nosso tempo. Se assim o fizermos, perceberemos que a beleza dos contos arturianos não está na magia, nos feitiços ou duelos, mas sim na postura humana diante dos dilemas que precisamos enfrentar.

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