E Se Sócrates Tivesse um Instagram? A Filosofia na Era dos Reels

Vamos brincar um pouco: imagine que Sócrates, um dos maiores filósofos da Grécia Antiga, estivesse vivo no mundo atual. Como será que seria sua vida? Provavelmente, não usaria uma toga, mas um moletom cinza e um celular na mão, interagindo nos grupos de whatsapp. Talvez trocasse a praça de Atenas por uma sala de bate-papo, e as conversas com seus discípulos ocorresse em debates no Twitter, fóruns e podcasts. Mas, mesmo com toda a diferença de época, uma coisa permaneceria igual: sua vontade de questionar.

Socrates usando celular em uma praca
Sócrates na era digital: da ágora à timeline

Isso porque Sócrates não aceitava verdades prontas. Como um bom filósofo, ele acreditava que o verdadeiro conhecimento nasce da dúvida, e não do número de curtidas, seguidores ou visualizações que uma ideia tem, mesmo que todo mundo goste dela e a ache bonita. E se há um lugar em que as certezas estão abundantes, esse lugar é a internet.

Não é novidade nenhuma que vivemos cercados de opiniões – algumas que nós criamos quase instantaneamente –, respostas rápidas e frases de efeito que servem para estampar posts, camisetas e canecas. Cada post parece querer provar algo, cada comentário busca ter razão. Sócrates, com seu jeito calmo e provocador, provavelmente faria o oposto: ele perguntaria até cansarmos de refletir. Talvez fizesse essas perguntas: “Por que acreditamos tanto em tudo que lemos?”, “por que compartilhamos antes de pensar?”, “Por que nos importamos tanto com o que os outros pensam de nós?”

Mural digital cheio de opiniões, emojis e frases feitas
A internet: território de certezas prontas e respostas rápidas

Talvez, se ele abrisse uma conta no Instagram, não postasse selfies nem reels com dancinhas. Ao invés disso, faria lives com questionamentos enquanto respondia os comentários do público. Junto a isso, continuaria publicando perguntas incômodas, daquelas que fazem a gente parar por um segundo e olhar para dentro. Porque, afinal, a sabedoria, como ele mesmo dizia, não está em parecer sábio, mas em reconhecer o quanto ainda não sabemos.

A sabedoria de assumir que “Só sei que nada sei”

Essa é talvez sua frase mais conhecida e mais mal interpretada. Quando Sócrates dizia “só sei que nada sei”, ele não estava se diminuindo, mas reconhecendo o valor da dúvida. Admitir a própria ignorância é o primeiro passo para aprender, enquanto achar que sabe é a morte das possibilidades de um dia alcançar a sabedoria. Na internet, entretanto, quase ninguém admite não saber. Pelo contrário, o mais comum é ter gente ensinando tudo sobre qualquer coisa e sendo especialista em todos os assuntos, como verdadeiros sábios que, no fundo, caminham na escuridão. 

Assim, mesmo sem entender um assunto, as pessoas opinam com confiança e convicção. Ser “especialista” virou uma questão de postura, não de estudo. Sócrates olharia para isso com espanto, ou com humor, e perguntaria: “Se todos já sabem tudo, quem ainda quer aprender?”. Provavelmente ele veria na humildade intelectual uma forma de resistência, algo que no próprio tempo em que viveu já foi usado como uma arma. Vale lembrar que no tempo de Sócrates existiam os sofistas, “filósofos” que cobravam para ensinar e convenciam a todos sobre qualquer argumento, ou seja, ensinavam a arte da retórica, de debater, não de buscar a sabedoria.

A maiêutica digital: perguntar em vez de pregar

A maiêutica era o método de Sócrates para chegar à sabedoria: ele fazia perguntas para ajudar os outros a “dar à luz” suas próprias ideias, revelando assim que qualquer pessoa poderia sair da ignorância e chegar ao saber por conta própria, a partir das perguntas adequadas.

Sócrates em uma live fazendo perguntas filosóficas com comentários rolando na tela
Lives filosóficas: o novo método socrático

Seu método não era comum, mas partia do princípio que o discípulo usasse sua mente para chegar à verdade, libertando-o das suas opiniões. Agora imagine esse método aplicado à internet. Em vez de comentários agressivos, discussões cheias de certezas e memes com “verdades absolutas”, teríamos perguntas como:

  • Por que acredito tanto nisso?
  • De onde veio essa informação?
  • O que me faz querer convencer os outros?
  • Será que o que eu penso é realmente meu ou só repeti o que vi alguém dizendo?

Num mundo em que todo mundo quer ter razão, se questionar é quase um ato revolucionário. Frente a isso, Sócrates provavelmente diria que a internet deveria ser uma ágora digital, ou seja, um espaço de diálogo, não um ringue de opiniões vazias. Um lugar onde as pessoas conversam para aprender, não apenas para vencer debates.

Entre o que é viral e o que é real

Em sua época, Sócrates enfrentou o julgamento por “corromper os jovens” e “questionar os deuses da cidade”. No fundo, o que ele fazia era incomodar o pensamento comum. E a verdade, para ele, nunca foi uma questão de popularidade, tanto que, a bem da verdade, não era um indivíduo popular em sua época. 

Trazendo para o nosso contexto atual, na internet, via de regra, o que é mais compartilhado nem sempre é o mais sábio acerca do assunto que está sendo tratado. Isso não deve nos surpreender, afinal, em um ambiente movido por algoritmos, é fácil confundir visibilidade com valor; logo, acaba-se acreditando que algo muito visto é, necessariamente, bom e correto. Assim, quando algum conteúdo viraliza, assume-se, pela lógica do algoritmo, que é verdadeiro. Se é tendência, parece certo.  Sócrates, com certeza, nos alertaria quanto a isso: “Nem tudo que aparece em destaque é digno de destaque.”

Ele nos convidaria a buscar o que é real, não apenas o que é viral. A verdade, para ele, nascia do diálogo, da reflexão, do confronto de ideias. E talvez dissesse que, antes de compartilhar qualquer coisa, deveríamos fazer três perguntas, como os seus famosos filtros. Assim, antes de compartilhar um reels ou notícia, seria necessário se perguntar:

  1. É verdade?
  2. É útil?
  3. É bom?

Se a resposta for “não” a qualquer uma delas, talvez o silêncio valha mais do que os likes do post. E se assumirmos essa postura diante das redes sociais, quantas publicações seriam evitadas? Talvez acabasse com a enxurrada de conteúdo que recebemos diariamente e compartilhamos, mas filtraríamos bem mais as informações.

Fake news e a ilusão do saber

Usando esses filtros também combateríamos um mal do nosso tempo: as fake news. Como já falamos, Sócrates viveu numa época em que os sofistas dominavam Atenas com discursos persuasivos e argumentos fabricados. Eles pareciam saber de tudo, mas muitas vezes vendiam ilusões, pois seus argumentos, apesar de parecerem lógicos, faltavam com a verdade. Hoje, as fake news são os novos sofistas. Espalham “verdades” moldadas para agradar, provocar ou manipular.

Pessoa olhando para um espelho desligando o celular, em introspecção
Desconectar para se reconectar: sabedoria offline

Na internet, é fácil confundir opinião com sabedoria, por isso passamos tantas informações equivocadas, que carecem de conhecimento. Quando algo é repetido muitas vezes, ganha aparência de verdade, afinal, se todo mundo está compartilhando, é porque deve ser real. No entanto, Sócrates nos lembraria de questionar tudo, inclusive o que confirma nossas crenças. “Por que acredito nisso?”, ele perguntaria. “De onde vem essa ideia? A quem interessa que eu pense assim?” Ele não exigiria que todos fossem sábios,  apenas curiosos com critérios.

O cancelamento de Sócrates

Em 399 a.C., Sócrates foi julgado e condenado à morte. O motivo? Ter “corrompido os jovens” e “desrespeitado os deuses”. Na prática, ele foi cancelado pela Atenas de sua época.Talvez hoje, seu tribunal fosse o Twitter. Hashtags pediriam seu banimento, vídeos cortados mostrariam suas falas fora de contexto, e perfis anônimos o chamariam de “problemático”. Ele seria o filósofo “cancelado por fazer perguntas”. Seu engajamento, certamente, seria muito baixo e socialmente estaria morto, apesar de continuar respirando.

Máscaras de sofistas sendo trocadas por perfis digitais espalhando fake news
Os novos sofistas: fake news com aparência de verdade

O que ele faria diante desse cenário? Certamente, o mesmo que fez em sua própria vida, afinal, mesmo julgado à morte, não tentou fugir ou questionou as leis que o imputaram de tal crime, mas também não abriu mão de continuar pensando. Sócrates não se retratou, preferiu a coerência à popularidade. Segundo Platão, uma de suas frases mais populares foi a de que “mais vale sofrer a injustiça do que cometê-la”, disse antes de beber o veneno que o levou dessa vida. Ele escolheu morrer fiel a seus princípios, em vez de viver negando o que acreditava.

Frente a isso, o que seria um cancelamento? Nada. O cancelamento digital, para ele, seria apenas mais uma forma de controle coletivo, ou melhor, a tentativa de eliminar quem pensa diferente. E nos lembraria sempre que dialogar é difícil, mas silenciar o outro é o fim do pensamento.

A sabedoria é offline: o que você faz quando ninguém está vendo?

Na filosofia socrática, a ética não dependia de leis, mas de consciência. O bem não era o que os outros aprovavam, mas o que permanecia justo mesmo sem aplausos. Assim, mais importante do que o reconhecimento exterior – das pessoas e da sociedade – é o não trair a si mesmo. Os nossos verdadeiros valores se mostram justamente no momento em que ninguém pode ver o que estamos fazendo. Hoje, quando tudo é público, parece que só importa o que é visível.  Mas Sócrates nos provocaria a pensar: “E quando a tela se apaga, quem você é?”

Ele diria que a verdadeira moral começa no invisível, ou seja, naquilo que não gera curtidas, mas forma caráter. Fora do mundo virtual, quem somos? É nesse mundo que apresentamos nossa essência e podemos encontrar a nós mesmos, afinal, dentro do mundo virtual, a caverna em que ficamos brincando ao longo do dia, é tudo ilusão. Simplificando em exemplos: postar mensagens de empatia é fácil; praticá-las offline é o desafio. Ser bondoso diante das câmeras e nos vídeos do youtube é comum, difícil é fazer o bem sem receber nenhum like e nem fazer questão de postar. Se vivesse no mundo atual, Sócrates certamente nos lembraria que o mundo digital precisa de mais consciência ética e menos aparências.

Pessoa olhando para um espelho desligando o celular, em introspecção
Desconectar para se reconectar: sabedoria offline

Ao final, o ensinamento de Sócrates continua o mesmo: pensar é viver. Num tempo em que todo mundo fala, o maior ato de coragem é escutar — inclusive a si mesmo. Desconectar por um instante, olhar para dentro, duvidar das certezas e lembrar que a sabedoria não está em parecer sábio, mas em ser humano. Talvez o filósofo não tivesse milhões de seguidores, mas teria algo mais raro: coerência.  E é isso que falta nas redes — coerência entre o que mostramos e o que somos. Por isso, se Sócrates postasse algo hoje, talvez fosse apenas isso: “Conhece-te a ti mesmo antes de postar qualquer coisa.”

Se Sócrates estivesse entre nós hoje, talvez nos perguntasse: estamos mesmo vivendo ou apenas rolando telas? A reflexão sobre o que é real e o que é aparência no mundo digital não termina aqui. Para continuar esse mergulho no pensamento crítico e entender como a tecnologia pode estar nos afastando da experiência humana autêntica, recomendamos a leitura do texto “Desconexão da Realidade”

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