Os deuses protetores da infância surgiram em diferentes culturas para simbolizar o cuidado com essa fase tão especial da existência humana. Carregada de fragilidades, a infância guarda também potência e esperança. Não por acaso, ao estarmos diante de uma criança, nos sentimos renovados, pois podemos imaginar o futuro e todas as suas possibilidades naquela existência. Não por acaso, ao estarmos diante de uma criança, nos sentimos renovados, pois podemos imaginar o futuro e todas as suas possibilidades naquela existência. Além disso, as crianças representam a continuidade da vida, a renovação da humanidade em uma nova geração como nós um dia fomos.
Em diferentes culturas, a criança foi vista não apenas como um indivíduo em formação, mas também como um reflexo da própria comunidade, um espelho daquilo que uma sociedade acredita ser o mais sagrado e digno de preservação. A cada nascimento, os povos antigos reconheciam um elo entre passado e futuro, uma linha de continuidade que precisava ser defendida contra as forças destrutivas do mundo.

Essa consciência de que a infância exige cuidado gerou, em várias civilizações, a criação de divindades protetoras das crianças. Não se tratava de superstição, mas de uma forma simbólica de expressar a urgência em resguardar o mais frágil, o mais vulnerável e, ao mesmo tempo, o mais essencial à perpetuação da humanidade. Nesse sentido, as divindades e os mitos não refletiam apenas uma ideia, mas também uma necessidade objetiva de garantir a perpetuação da geração para a sobrevivência daquele grupo humano.
Assim, as crianças, reflexo de uma pureza e esperança, eram o verdadeiro tesouro a ser protegido. Não por acaso, em caso de guerras, eram as primeiras a serem resgatadas juntamente com as mulheres, enquanto os homens lançavam-se aos combates. Visto isso, vamos percorrer diferentes civilizações e observar como cada uma delas elencou algumas divindades como protetoras das crianças. É importante ressaltar, contudo, que cada uma delas carrega virtudes que dialogam diretamente com a sua própria cultura; logo, é fundamental conhecermos um pouco sobre como aqueles homens e mulheres do passado, inseridos naquele contexto histórico, pensavam sobre a infância e a ideia de criança.
Mais do que estudar mitos antigos, trata-se de uma reflexão sobre nossa responsabilidade no presente, pois, se os povos antigos criaram deuses para guardar as crianças, o que fazemos nós, em nossa era, para garantir que a infância continue sendo espaço de cuidado, liberdade e esperança?
Ártemis: a defensora da inocência e da liberdade
Comecemos pela civilização mais conhecida pela nossa cultura ocidental. Entre os gregos, a deusa Ártemis ocupava um lugar paradoxal: ao mesmo tempo em que era a caçadora, ligada à vida nos bosques e montanhas, também era invocada como protetora das mulheres em trabalho de parto e das crianças recém-nascidas. Essa dualidade mostra como a deusa não era apenas uma figura da natureza, mas também a guardiã daquilo que havia de mais frágil e sagrado. Tendo como seu atributo a pureza, Ártemis protegia os animais dos caçadores que, insuflados por desejos e ganância, perseguiram suas caças. Ártemis, muitas vezes, fazia dos caçadores a sua presa e os atacava com suas flechas.

Além desse aspecto, Ártemis é a irmã gêmea de Apolo, nascida da união de Zeus com Leto. Apolo é o deus do sol e por essa relação, Ártemis, a deusa da lua, representando assim a noite e o mistério. Como podemos perceber, há diferentes atributos e símbolos sobre essa divindade, porém, vamos focar no mais pertinente para o nosso momento: o seu papel como guardiã das crianças.
Tudo começa durante o nascimento dos dois deuses. Leto, perseguida por Hera devido à sua relação com Zeus, precisou se esconder na ilha de Delos para ter seus filhos. Durante o parto, Ártemis nasceu primeiro e, logo após vir ao mundo, ajudou a mãe a dar à luz Apolo, tornando-se assim símbolo do auxílio nos partos. Devemos lembrar que essa é uma narrativa mitológica e que só pode ser compreendida através de uma linguagem simbólica. O fato de Ártemis nascer primeiro mostra que antes da Luz, ou seja, o sol, há a noite, o Mistério. E é esse mistério que faz nascer a luz do astro-rei.
Essa cena inaugural já a coloca em ligação direta com o nascimento e a proteção da infância. Ártemis, deusa das crianças que surgiam à vida. Para os gregos, invocá-la nesse contexto era apelar à força da natureza em sua forma protetora. Para além disso, sua pureza, muitas vezes representada em sua condição de deusa virgem, tinha um significado mais profundo: a preservação daquilo que é intocado, autêntico, livre de corrupções externas. Assim também são as crianças, que são seres sem máculas, ainda não marcados pelas imposições e pressões da vida adulta, e que eram associadas e protegidas por essa divindade.
Ísis: a grande mãe universal
Se Ártemis é aquela que protege as crianças e conduz sua pureza, com Ísis, na tradição egípcia, podemos aprender sobre a mãe que protege seus filhos com amor incondicional. Sua história é uma das mais conhecidas da mitologia egípcia, entrelaçada com temas de morte, ressurreição e cuidado materno.

Tudo começa quando Ísis, esposa de Osíris e mãe de Hórus, vê seu marido ser morto por Seth. Inconformada com a perda, a deusa percorreu o Egito em busca do corpo do marido, reunindo seus pedaços espalhados e, com o auxílio de sua magia, conseguiu restaurá-lo temporariamente, gerando assim seu filho Hórus. O nascimento da criança já foi, por si só, um ato de vitória sobre o caos. Contudo, Seth continuava a perseguir Ísis e o pequeno Hórus, tentando destruí-los para consolidar seu poder.
Foi então que Ísis se refugiou nos pântanos do Nilo, escondendo o filho e protegendo-o contra os perigos. Em muitas narrativas, Ísis enfrenta serpentes, espíritos malignos e doenças que tentam atacar Hórus, sempre usando sua sabedoria e sua determinação para afastar o mal. A proteção de Hórus garante que este, ao se tornar adulto, vença Seth e restabeleça a ordem no Egito. Nesse aspecto, Ísis é a representação da força materna que garante o desenvolvimento do filho para que este faça girar a roda da História.
Não por acaso, a imagem de Ísis como mãe protetora ganhou força dentro da cultura egípcia e se tornou, junto com outras divindades femininas, a referência de uma grande mãe. Ao longo do tempo, ela se tornou referência universal de maternidade e proteção, fazendo com que mães egípcias invocassem seu nome para garantir a segurança de seus filhos e criassem amuletos com sua imagem, que eram colocados em berços e casas como forma de pedir sua bênção.
Para além do aspecto mitológico, Ísis nos mostra que a maternidade vai além do instinto e se mostra como um verdadeiro sacerdócio, um compromisso com a vida, mesmo diante dos piores momentos. Ao proteger Hórus, sua coragem é, ao mesmo tempo, uma metáfora da luta de todas as mães que, ao longo da História, defenderam seus filhos contra forças externas, visíveis ou invisíveis. Quando conhecemos seu mito, podemos extrair valiosas lições não somente a respeito da cultura egípcia, mas também do próprio entendimento do que é ser mãe. Assim, entende-se que proteger a infância exige mais do que leis ou formas, mas, acima de tudo, amor, dedicação e disposição de se sacrificar em prol daqueles que precisam ser ajudados.
A figura de Ísis, assim como outras deusas que expressam força e cuidado, revela o profundo simbolismo do feminino nas culturas ancestrais. Para conhecer mais sobre esse tema, leia também o texto “O Poder do Feminino na Mitologia”, que explora como essas divindades representam sabedoria, proteção e transformação ao longo da história.
Bes: a alegria como escudo contra o mal
Se Ísis nos oferece a imagem da mãe protetora, Bes, outra divindade egípcia, revela uma forma de cuidado completamente diferente, mas igualmente necessária: a proteção pelo riso, pela alegria e pela leveza. Muitas vezes visto como uma divindade “menor”, tida como doméstica, ou seja, que cuidava do lar e da família, Bes está ligado à vida cotidiana, especialmente à proteção das mulheres e das crianças. Sua representação é a de um pequeno ser com a língua para fora, o que indica seu papel de causar riso e trazer alegria para os lares. Sua grande função era a de alegrar os ambientes e, dentro da infância, garantir o riso dos bebês e das crianças.

Apesar da aparência inusitada, não devemos achar que Bes foi uma divindade de pouca relevância. Pelo contrário, isso fazia dele um protetor temido pelos espíritos malignos. Na crença egípcia, as forças do mal frequentemente rondavam os lares, tentando atingir justamente os mais frágeis: recém-nascidos, gestantes e crianças pequenas. Bes, com sua aparência e seu comportamento lúdico, tinha a função de afugentar essas forças. Ele dançava, fazia caretas, tocava instrumentos, rindo na cara do mal e protegendo os inocentes. Assim, não pensemos nessa divindade como um “bobo da corte”, mas sim como a própria ideia de blindar as crianças dos problemas do mundo.
Essa é uma reflexão importante que devemos fazer: quantas vezes acabamos brigando ou discutindo em frente às crianças? Muitas vezes, por assuntos que os jovens não podem compreender e muito menos resolver, o que torna a situação apenas traumática aos olhos dos pequenos. Esse tipo de cenário pode provocar traumas e travas na personalidade da criança, colocando-a em uma situação psicológica adversa.
Assim, manter um ambiente alegre e saudável, mesmo com os males do mundo à espreita, é uma tarefa fundamental de pais e responsáveis pela formação de qualquer criança. Nesse aspecto, Bes era esse espírito de alegria, que deveria estar sempre presente nas casas dos egípcios. Não por alienação do mundo, mas por proteção daqueles que ainda não eram capazes de compreender as nuances da existência em sociedade. Ao contrário de Ísis, que protege pela força do amor, Bes protege pela força da alegria e nos ensina que a infância não deve ser marcada apenas pela sobrevivência física, mas também pelo direito de brincar, sorrir e crescer em ambientes leves.
Numa sociedade, na qual muitas crianças crescem sob o peso da violência – tanto física quanto simbólica – e do medo, o símbolo que Bes nos deixa é de extrema importância. Devemos assegurar que a infância seja também tempo de alegria, imaginação e encantamento para os jovens, pois são os sonhos que nutrimos nessa fase da vida que nos impulsionam a buscar novos ares, a criar novas possibilidades no mundo.
Bes nos ensina que proteger a infância é também garantir espaço para a leveza e o riso. Esse é o convite feito no texto “Reviva a infância: resgate a alegria e a simplicidade de ser criança”, que mostra como reconectar-se com o brincar pode ser um gesto de cura e consciência.
Sashsitsh: Os filhos sob cuidado da comunidade
Se nas culturas grega, egípcia e maia encontramos deusas e deuses associados à proteção da infância, nas tradições indígenas da América, essa proteção ganha contornos ainda mais coletivos. Entre os povos ameríndios, a infância não era apenas responsabilidade dos pais, mas também da comunidade como um todo. A criança era vista como filha da aldeia, pertencente tanto à família biológica quanto à coletividade e, de forma ainda mais ampla, à própria natureza. Nesse aspecto, não cabia apenas aos pais educarem e protegerem, mas toda a comunidade era responsável pelos jovens.

É nesse contexto que surge a figura de Sashsitsh, o espírito protetor ligado às crianças. Ele não se apresenta como uma divindade distante ou monumental, mas como uma presença espiritual que resguarda a vida em seus primeiros anos e acompanha o crescimento em harmonia com a comunidade e a terra. Salvaguardando as diferenças, Sashsitsh se aproxima da ideia de “anjo da guarda” que o cristianismo exalta, uma figura que protege de maneira sutil a criança dos perigos invisíveis do mundo. Assim, esse espírito da natureza encarna a convicção de que o cuidado com a infância não pode ser isolado, pois a sobrevivência e o bem-estar das crianças dependem de uma rede coletiva de proteção.
Ao contrário de muitas tradições ocidentais, nas quais a criança pertence à família nuclear, nas culturas indígenas, prevalece a visão de que a criança pertence ao grupo, ao clã e até mesmo aos ancestrais. Por isso, cuidar de uma criança é também um ato espiritual, um gesto de continuidade cultural e de respeito ao sagrado. Além disso, essa visão aproxima-se de uma perspectiva platônica de sociedade, no qual o filósofo grego dizia que as crianças não são filhas apenas dos pais, mas sim o futuro da pólis, da cidade, logo, deveriam ser criados sob as leis, cultura e cuidado do Estado.
Partindo dessa perspectiva, podemos refletir sobre como é importante a proteção das crianças dentro de uma perspectiva sociopolítica; afinal, as crianças são, de fato, o futuro da humanidade. Elas herdarão, bem ou mal, o mundo que estamos construindo hoje, e caberá a elas, quando adultas, assumirem as rédeas da sociedade que formamos. Assim, a criação dos filhos deveria ser uma obrigação do Estado e de todos nós, não apenas da família nuclear. Sashsitsh, nesse sentido, é a resposta de uma forma de vida coletiva que necessita cuidar do seu futuro.
Ao resgatarmos essa perspectiva, percebemos que a infância precisa de redes de apoio, de pessoas e instituições que assegurem às crianças não apenas sobrevivência, mas também pertencimento a essa vida coletiva para que, ao se tornarem adultos, não seja difícil ajudar o próximo, devido ao senso de comunidade construído desde os primeiros dias de vida. Apesar de advir de uma sociedade milenar, essa lição é profundamente atual. Vivemos em sociedades que exaltam o individualismo, mas é justamente nesse contexto que crianças acabam sofrendo as consequências mais duras.
A infância como arquétipo universal
Ao refletirmos sobre o simbolismo dessas divindades é perceptível que cada uma delas, a seu modo, expressa diferentes ideias sobre a infância e como devemos cuidar das crianças. Parece-nos que, apesar das diferentes maneiras que cada cultura retratou essa necessidade social, há uma imagem que perpassa todos, cultivando assim suas características e virtudes.
Podemos citar a pureza, por exemplo, como um desses arquétipos próprios da fase infantil. A necessidade de um amor profundo e incondicional, que aprendemos no Egito com Ísis, também nos mostra uma imagem importante para entender como devemos criar nossas crianças. Junto a isso, a alegria de Bes é um escudo importante para blindar as crianças dos problemas da vida “adulta”, chamemos assim. Já nos povos ameríndios, a comunidade inteira se tornava guardiã através de Sashsitsh, mostrando que a educação não deve ser uma responsabilidade apenas dos pais, mas sim de toda a sociedade.
Essas divindades, apesar de diferentes em seus detalhes, convergem em uma mesma mensagem: a criança não é apenas um ser em desenvolvimento, mas uma promessa de continuidade, uma centelha de esperança que precisa ser protegida. Frente a isso, quando olhamos para essas divindades, não estamos apenas estudando crenças antigas, mas tocando em algo que ainda habita o coração humano: a certeza de que o cuidado com as crianças é a forma mais autêntica de cuidar da própria humanidade.
O futuro da humanidade está nas crianças
Visto tais aspectos, devemos refletir sobre como os mitos não falam apenas de ideias, mas também deixam uma marca profunda na cultura, coletiva e individual, dos seres humanos. Quando entendemos a ideia por trás dessas divindades protegerem as crianças, estamos compreendendo muito mais do que uma cultura antiga: estamos validando o valor que há na continuidade das gerações, na proteção dos jovens, para que o futuro possa existir. Essa necessidade biológica da nossa espécie já foi vencida há muitos séculos, mas psicologicamente é extremamente necessário continuar desenvolvendo esse elo de proteção para as crianças; afinal, o modo como tratamos nossas crianças é o reflexo mais direto do que somos como humanidade.
Proteger a infância vai além do cuidado diário: é um gesto civilizatório. No texto “Dia das Crianças: mais do que presentes, um chamado à consciência”, refletimos sobre como a data pode ser uma oportunidade de compromisso coletivo com o futuro das crianças.
A infância, portanto, funciona como espelho. Se vemos crianças famintas, violentadas, exploradas ou negligenciadas, não estamos apenas diante de tragédias individuais, mas também de um retrato cruel do estado de nossa civilização. Por outro lado, quando vemos crianças brincando livremente, cercadas de amor, saúde e pertencimento, estamos diante de uma sociedade que compreendeu seu papel como guardiã do futuro. Os deuses que estudamos são, nesse sentido, metáforas de virtudes que precisamos cultivar para garantir não apenas o desenvolvimento das crianças, mas a nossa própria evolução. Se falhamos em qualquer uma dessas dimensões, a infância sofre, e com ela, o futuro da humanidade inteira.
Por fim, cada criança carrega em si não apenas a promessa de sua própria vida, mas a promessa de dias melhores para o mundo. Não por acaso, falamos que “as crianças são o futuro”, pois depositamos nelas a responsabilidade de tornar o mundo melhor do que o que estamos deixando. Essa não é uma tarefa fácil, uma vez que a criação que estamos dando aos jovens determinará, necessariamente, o tipo de adultos que eles serão. Nesse aspecto, as crianças são como sementes que podem germinar em múltiplas direções, dependendo do cuidado que recebem. Será que estamos plantando corretamente verdadeiras sementes de humanidade em nossos jovens?
Muitas vezes, podemos ter dúvidas sobre isso, principalmente quando estamos diretamente ligados à educação dos nossos próprios filhos. Quando não sabemos a resposta, devemos nos voltar aos mitos e perceber quais ideias e virtudes devemos garantir que estejam presentes em nossa forma de educar. Como vimos, basta apenas uma ideia das que trabalhamos hoje para construir uma vida com mais profundidade e proteger a infância dos diferentes caminhos que podemos tomar ao nos direcionarmos pelo lado equivocado da vida.
É fácil perder-se na infância, e é por sua vulnerabilidade que ela está sempre em risco. Antigamente, os perigos eram doenças, guerras e fome. Hoje, eles assumem novas formas como a exploração sexual, o trabalho infantil, a violência urbana e tantos outros medos que nos afligem. O inimigo mudou de rosto, mas o princípio permanece: proteger a infância é enfrentar forças poderosas que constantemente ameaçam destruí-la.
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