Curta “O menino que engoliu o choro”

Vivemos em uma sociedade que, muitas vezes, não sabe lidar com as próprias emoções. Desde cedo, aprendemos a esconder sentimentos, a disfarçar a dor, a “engolir o choro” para não parecermos fracos diante dos outros. Esse hábito, aparentemente inofensivo, pode se transformar em uma prisão invisível, onde a espontaneidade e a autenticidade ficam sufocadas pelo medo do julgamento, pelas críticas e por mostrar um tipo de fraqueza que não é bem aceita, principalmente no mundo masculino.

Foi pensando nisso que o curta-metragem brasileiro “O menino que engoliu o choro”, de Bruno Mazzeo, foi produzido. Essa pequena animação nos convida a refletir exatamente sobre os perigos de reprimir emoções e a necessidade de permitir que elas fluam, como um rio, sem serem reprimidas.

Objetivamente, o curta narra, de forma poética e metafórica, a história de um menino que engole o choro, literalmente. A cada vez que ele reprime suas lágrimas, guarda dentro de si algo que não encontra saída. O resultado dessa escolha não é apenas físico, mas existencial: o menino se enche de dores invisíveis, carregando o peso do silêncio que lhe foi imposto. A mensagem pode parecer simples, mas afeta toda e qualquer pessoa que já precisou reprimir suas emoções para se adequar a um ambiente ou simplesmente para “parecer forte”. A simplicidade da narrativa toca fundo porque espelha a experiência de milhões de pessoas que, diariamente, sufocam sentimentos para atender às expectativas sociais.

Esse gesto, aparentemente pequeno, revela uma estrutura cultural muito maior. Ele está presente em frases que ouvimos desde a infância: “Engole o choro, menino!”, “Chorar é feio”, “Homem não chora”. Essas expressões carregam em si um comando social que molda identidades e aprisiona subjetividades. É esse mecanismo, e como ele impacta nossa saúde emocional e nossa forma de estar no mundo, que abordaremos no texto de hoje.

O perigo da repressão das emoções ao longo da vida

Se há algo que aprendemos cedo é que, no imaginário social, mostrar sentimentos pode ser arriscado. Muitos pais, educadores e figuras de autoridade repetem frases prontas que desestimulam a expressão emocional. As crianças, que naturalmente expressam suas emoções de maneira um tanto quanto livre – seja abraçar um coleguinha de que gostam ou até mesmo ter acessos de raiva e chorar –, começam a ser lapidadas ainda nessa tenra idade para não demonstrar esse campo.

foto 1

É importante destacar que esse tipo de “adestramento”, chamemos assim, não ensina a lidar com as emoções nem a saber dominá-las, mas sim a reprimir e não deixar que se expressem na vida. Se, por um lado, não podemos deixar a emoção se expressar de forma totalmente livre, e isso é verdade e necessário, pois, a depender do tipo de emoção, pode-se colocar em risco a vida de outras pessoas; por outro, apenas reprimir não ajuda a entender o que se passa em nosso mundo interno. Assim, ao longo da vida, vamos acumulando instruções de que sentir demais é errado.

A repressão do nosso campo emocional, entretanto, não é um ato isolado. No fundo, é uma cultura instalada dentro de nossas sociedades, tanto antigas quanto modernas. Em muitas culturas, por exemplo, chorar é associado à fragilidade, e a fragilidade é vista como algo a ser evitado, pois ninguém deseja ser “fraco”. Para o homem, que dentro das sociedades tradicionais é o responsável pela família, por ser o provedor e o ponto de segurança do núcleo familiar, demonstrar qualquer tipo de fraqueza é inimaginável. Não por acaso, ainda hoje o público masculino é o que menos busca cuidados médicos, pois ir ao auxílio da saúde demonstra, psicologicamente, que há algo de errado, no caso uma doença. 

Desde cedo, meninos são ensinados a serem fortes, duros, resistentes, enquanto meninas recebem um espaço um pouco maior para expressarem o sensível. No entanto, até elas acabam, em algum momento, sendo cobradas a “se controlarem”. A expressão “engolir o choro” não apenas significa segurar lágrimas, mas também simboliza todo um processo de sufocar sentimentos, como raiva, tristeza, frustração e medo. Assim, não é apenas o menino da história que engole o choro, pois todos nós, em algum grau, já engolimos emoções para caber em determinados papéis sociais, seja no trabalho, em relacionamentos ou na vida familiar.

image

O grande problema é que aquilo que é reprimido não desaparece. As emoções negadas se acumulam, como uma panela de pressão que, em algum momento, precisa liberar o vapor. Pessoas que crescem acostumadas a engolir o choro frequentemente desenvolvem dificuldades de lidar com conflitos, de nomear o que sentem, ou mesmo de construir vínculos afetivos saudáveis, pois não se permitem abrir seu coração para uma convivência saudável. Além disso, a repressão emocional está associada ao aumento de transtornos, como ansiedade e depressão, uma vez que o acúmulo de tantas experiências no campo emocional nos leva ao adoecimento.

Visto isso, é importante falarmos sobre o choro como uma das grandes válvulas de escape do nosso campo emocional. É por esse mecanismo, que tem um papel não somente psicológico, mas também biológico, que podemos distensionar nossas emoções em momentos de aflição, dor, angústia e até mesmo felicidade. Sendo assim, o choro é uma das expressões mais genuínas da condição humana. Ele surge antes mesmo de aprendermos a falar, sendo o primeiro recurso do recém-nascido para comunicar suas necessidades. Ainda sem palavras, a criança chora para pedir alimento, colo, aconchego ou para denunciar algum desconforto. Esse dado já nos mostra o quanto o choro é essencial.

Do ponto de vista biológico, o choro ativa sistemas do corpo que promovem alívio e equilíbrio. Estudos mostram que lágrimas, quando advindas de um abalo emocional, carregam substâncias relacionadas ao estresse, de modo que chorar é também uma forma de expelir tensões acumuladas. E todos nós sabemos disso, pois o choro é, antes de tudo, um mecanismo para lidar com tais picos de estresse. Do ponto de vista psicológico, o choro ajuda a nomear e elaborar sentimentos que, de outra maneira, ficariam difusos, sem forma ou compreensão, uma vez que nem sempre conseguimos traduzir em palavras o que sentimos. 

image 1

Além desses aspectos, muitas emoções são intensas, complexas e ambíguas, logo, não são fáceis de compreender ou lidar em um primeiro momento. O choro, nesses casos, aparece como uma linguagem do corpo, uma fala que ultrapassa o discurso racional e se mostra como uma forma de aliviar essa tensão. Quando choramos, comunicamos vulnerabilidade, mas também pedimos cuidado e empatia para aqueles que estão ao nosso redor. Se consideramos esse aspecto, podemos entender que o choro pode criar verdadeiras pontes entre nós e o outro, pois nos colocamos no papel de ajudar quem está precisando lidar com tais emoções. Nesse sentido, em muitas situações, reprimir o choro significa prolongar o sofrimento interno.

Frente aos fatos, devemos nos perguntar: se o choro é natural, por que tanta gente o reprime? A resposta está em crenças e estereótipos que foram socialmente construídos ao longo da história. Eles moldam nossa forma de sentir e expressar, criando barreiras invisíveis contra a espontaneidade. Talvez o exemplo mais emblemático seja a frase repetida a meninos desde a infância: “Homem não chora”. Essa máxima não apenas sufoca a maneira natural de expressar dores, mas também define um modelo rígido de masculinidade, em que a vulnerabilidade é considerada algo a ser desprezado. O resultado é uma geração de homens que crescem distantes de suas próprias emoções, aprendendo a engolir a dor em silêncio.

image 2

Infelizmente, essas crenças não se limitam a uma geração apenas. A bem da verdade, esse modelo de “força masculina” é imposto há séculos e de diferentes maneiras, não somente com a ideia de que homens não choram. Logo, sabemos que nossos pais foram ensinados a engolir o choro, mas também nossos avôs, bisavôs e toda uma cultura que perpassa gerações. E, como uma corrente de vícios, essa cultura muitas vezes continua a ser transmitida aos filhos, aos netos, e assim por diante, perpetuando ciclos de repressão. A dificuldade em lidar com emoções vai, assim, atravessando décadas, transformando-se em herança cultural.

A importância de saber lidar com as emoções

Se reprimir nos adoece, o caminho da cura é justamente o oposto: aprender a acolher as próprias emoções. Esse é um desafio enorme, porque exige desaprender aquilo que nos ensinaram desde cedo; porém, é um caminho possível e necessário para uma vida mais saudável e plena. O primeiro passo é aprender a reconhecê-las. Muitas vezes, sentimos raiva, medo ou tristeza e não conseguimos dar nome a esses estados, deixando-nos sermos conduzidos por esses estados emocionais. Nesse sentido, nos parece impossível dominar as emoções e nos colocamos como reféns dessas variações da psique, mas isso não é real. 

Logo, a educação emocional tem por grande meta ensinar crianças e adultos a identificar e lidar com seus sentimentos de maneira consciente. O primeiro passo para começar a nos educar do ponto de vista emocional é saber dar nome ao que sentimos. Quando dizemos “estou triste”, “estou frustrado”, “estou com medo”, deixamos de ser reféns de uma sensação difusa e nos abrimos a possibilidade de combater tais estados. Basta pensarmos da seguinte maneira: se precisamos enfrentar um adversário, é necessário enxergá-lo ou não? Será mais fácil ver ou deixá-lo invisível aos nossos olhos? 

É natural que para combater, precisamos ver. De forma semelhante, dentro da psicologia das emoções, se faz necessário entender o que sentimos, sem negligenciar ou mascarar tais sensações. Assim, nomear nos ajuda a compreender e a encontrar formas saudáveis de lidar com a emoção. O menino do curta, se tivesse espaço para nomear seu choro, talvez não precisasse engoli-lo.

É por isso que esse curta é tão importante, principalmente para as pessoas que cresceram escutando que não poderiam demonstrar suas emoções. A obra, então, se converte e deixa de ser apenas um curta bonito, passando a ser uma verdadeira obra de arte poética e simbólica. Acima de tudo, essa pequena história nos convida a refletir. Cada espectador que assiste ao curta é colocado diante de uma escolha: continuar repetindo os padrões de repressão emocional ou buscar novos caminhos para acolher sentimentos. Ao mostrar um menino que literalmente engole o choro, a obra nos faz pensar nas consequências dessa escolha cotidiana. 

image 3

Afinal, quantas vezes já engolimos nossas lágrimas em situações de dor? Quantas vezes nos calamos para não desagradar, para não parecer fracos, para não incomodar? A consequência, muitas vezes, é a formação de um peso invisível que carregamos por anos. Esse peso, que muitas vezes tentamos aplacar com exageros em álcool ou drogas, ou mesmo nos alienando do mundo, é, no fundo, uma tentativa de suprimir e não lidar com o que é necessário. Visto isso, é fundamental reconhecer a importância de expressar emoções, não apenas identificá-las.

O desafio maior está em transformar esse reconhecimento em prática diária. Uma das formas de lidar com emoções de maneira madura é buscar estratégias que permitam a liberação de sentimentos sem que eles se acumulem. Conversar com alguém de confiança, escrever um diário, praticar exercícios físicos ou simplesmente permitir-se chorar são exemplos de recursos que ajudam a esvaziar o peso interior. Uma outra válvula de escape importante é a arte. Pintar, compor, cantar, dançar, escrever poemas: todas essas práticas funcionam para canalizar sentimentos, emoções e pensamentos que surgem ao longo de nossa vida. 

Uma outra maneira natural de lidarmos com nossas emoções é fazer um acompanhamento psicológico. Para isso, a terapia se apresenta como uma ferramenta importante no autoconhecimento, pois, com a ajuda de um profissional, podemos compreender o que se passa em nosso mundo psíquico. Além disso, ter um espaço seguro, mediado por alguém qualificado para falar sobre nossas emoções pode ser libertador. A escuta atenta, sem julgamentos, nos ajuda a organizar sentimentos e a compreender que expressá-los não nos diminui; pelo contrário, nos fortalece.

Caminhos para cultivar um campo emocional saudável

Uma das maiores confusões acerca desse tema está em acreditar que emoção é sinal de fraqueza. Infelizmente, o mundo atual ainda demonstra esse preconceito, pois, muitas vezes, observamos pessoas em estados de vulnerabilidade psicológica; e isso, consequentemente, é associado a um tipo de falha, de insuficiência. Não por acaso, somos treinados a suportar ao máximo e jamais demonstrar que sentimos dor, seja física ou psicológica. Isso é apenas um reflexo do medo coletivo em se mostrar frágil perante um mundo que exige força para sobreviver.

Não por acaso, em um mundo cheio de soluções para aliviar a dor psicológica, vivemos verdadeiras epidemias de suicídio, ansiedade e depressão. Em grande parte, isso acontece  porque, apesar das mudanças sociais e tecnológicas, nossa cultura ainda não se adaptou à realidade de que devemos lidar com nossas emoções. Nesse ponto, estamos mais próximos da sociedade do século XIX, moldada para ser forte e “engolir o choro”, do que da sociedade do mundo moderno em que vivemos. É por isso que “O menino que engoliu o choro” é tão impactante para a nossa realidade e nos convida a repensar essa ideia. 

image 4

É fundamental ensinar a todos, sejam homens ou mulheres, adultos ou crianças, que chorar e admitir medo ou tristeza não nos tornam fracos. Pelo contrário, é preciso coragem para assumir o que se sente, pois é só a partir disso que podemos vencer nossas limitações. Fraqueza, na verdade, é se esconder atrás de máscaras que nos afastam de nós mesmos; permitir-se sentir é um ato de bravura. Numa sociedade que valoriza a aparência de força e autossuficiência, abrir espaço para a vulnerabilidade é um gesto revolucionário. É assumir a própria humanidade diante de todos.

Nos últimos anos, diversas figuras públicas mostraram lágrimas em público, quebrando estereótipos. Para as novas gerações, isso é um exemplo de que podemos, sim, demonstrar sentimentos em público e de que não precisamos nos forçar a ser quase como máquinas. Já para aqueles que cresceram ouvindo sobre a necessidade de ter uma aparente rigidez, perceber ídolos ou pessoas que respeitamos com essa atitude também colabora para nos sentirmos capazes de estar mais abertos para essas experiências. Esses momentos, portanto, quando amplamente divulgados, ajudam a normalizar o choro e a mostrar que não há dignidade maior do que ser verdadeiro.

Frente a isso, uma mudança cultural só pode ocorrer quando diversas áreas da sociedade se juntam e trabalham unidas para reverter um aspecto tão enraizado em nossas tradições. A escola, por exemplo, deve ser um grande alicerce para essas mudanças. Assim, cada vez mais se faz necessário ensinar crianças a identificar suas emoções, a se colocar no lugar do outro, a valorizar o diálogo. Isso é tão importante quanto ensinar matemática ou ciências. A escola, porém, precisa de aliados nesse combate cultural e é nesse momento que o papel da família se faz fundamental. É em casa que a criança aprende, na prática, se pode ou não chorar. Um lar que acolhe lágrimas ensina que a vulnerabilidade é segura. 

Além de escola e família, há um papel que cabe ao próprio Estado: criar políticas públicas que ampliem o acesso à saúde mental. Muitas pessoas carregam dores profundas, mas não têm espaços seguros para falar ou receber acolhimento profissional, seja pelo valor das consultas ou mesmo pelo preconceito ainda evidente em procurar ajuda psicológica. Logo, é fundamental investir em psicologia escolar, CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e campanhas de valorização da vida, sendo esse um passo essencial para quebrar o ciclo do silêncio.

image 5

Frente a todos esses aspectos, acreditamos que somente a busca por uma mente sã é capaz de nos fazer enxergar com clareza os nossos objetivos. Por isso, cada vez mais é necessário evitar o descontrole ou ser conduzido por emoções que, quando fora de controle ou totalmente reprimidas, machucam e destroem o ser humano por dentro. Frente a esse cenário, podemos nos perguntar:  como podemos construir uma cultura que valorize a expressão emocional e não a veja como fraqueza?

Um dos aspectos mais urgentes é repensar o modelo tradicional de masculinidade, que associa ser homem a não chorar, não sentir, não demonstrar fragilidade. Precisamos de novos referenciais que mostrem que um homem pode ser sensível, empático e ainda assim forte. Isso quebra ciclos de repressão que já duram séculos. A sociedade também deve criar espaços culturais e comunitários onde a emoção seja valorizada. Projetos sociais de música, teatro, dança, rodas de conversa, grupos de apoio, todos são exemplos de lugares onde as pessoas podem se sentir sem medo de julgamento e, assim, canalizar a arte para expressão das suas emoções.

Por fim, “O menino que engoliu o choro” é mais do que um curta: é um espelho da nossa cultura. Ele nos mostra, de forma simbólica, os riscos de calar emoções e nos convida a refletir sobre a urgência de acolher sentimentos. Chorar não nos diminui; pelo contrário, nos humaniza, nos conecta, nos fortalece. As lágrimas não são fraquezas, mas expressão legítima daquilo que somos. Reprimir é adoecer; expressar é viver plenamente.

Comentários

Compartilhe com quem você quer o bem

MENU

Siga nossas redes sociais

Ouças nossa playlist enquanto navega pelo site.

Este site utiliza cookies para melhorar sua experiência, de acordo com a nossa Política de privacidade . Ao continuar navegando, você concorda com o uso de cookies.