Sejam bem-vindos a mais um texto da série Clássicos da Literatura, que hoje mergulha na obra Fausto, de Goethe, um marco essencial da história da literatura mundial. Hoje nossa jornada vai mergulhar em um clássico moderno que nos últimos dois séculos se tornou uma das maiores influências da arte moderna. Estamos falando da obra “Fausto”, de Johann Wolfgang Von Goethe, o maior escritor da Alemanha.

Antes de mergulharmos nos dilemas presentes em “Fausto” e na sua relação com o poder, é válida para os leitores que ainda não conhecem nossa série a leitura do nosso texto de introdução, pois nele falamos sobre as principais ideias que guiam a nossa análise e reflexões, assim como o objetivo da série e a função da literatura em nossas vidas. Você pode acessar nosso texto de introdução clicando aqui.
Visto isso, vamos conhecer um pouco mais sobre a jornada do Dr. Fausto. É importante salientar que poucas obras literárias têm o poder de atravessar séculos e permanecerem tão impactantes quanto “Fausto”. Mais do que um drama trágico, a obra de Goethe é um tratado filosófico, uma meditação sobre o desejo humano, o bem e o mal e os limites da razão. Escrito ao longo de quase toda a vida do autor, é considerado o ápice da literatura alemã e um monumento do pensamento ocidental.
Ao ler “Fausto”, não estamos apenas diante de uma história de pacto com o diabo, mas diante de um espelho das angústias, ambições e esperanças humanas. Nesse sentido, é uma história humana, demasiadamente humana, e que reflete na psique do leitor seus desejos e até onde pode ir para alcançá-los.
O contexto histórico em que Goethe viveu
Do ponto de vista histórico, Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749, em Frankfurt, no Sacro Império Romano-Germânico (atual Alemanha), em uma família com excelentes condições financeiras. Frente a sua abundância de recursos, Goethe teve acesso a uma esmerada educação e desde cedo demonstrou uma inteligência e sensibilidade artística refinada. Como costume da época, chegou a estudar Direito nas universidades de Leipzig e Estrasburgo, mas sua paixão pela literatura e pela filosofia o levou a se dedicar intensamente à escrita.
Ainda jovem conquistou fama com o romance “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774), escrito aos 25 anos. Essa obra inicial, apesar de ser sua estreia como escritor, já previa o impacto de Goethe na cultura de toda Europa, uma vez que influenciou profundamente o Romantismo e revelou a intensidade emocional de sua visão de mundo.

A sua vida pessoal, entretanto, não pode ser desvinculada do mundo em que ele estava inserido. Goethe viveu em um período de profundas transformações culturais e sociais. Seu tempo foi marcado pelo Iluminismo, que exaltava a razão e o progresso, mas também pelo surgimento do Romantismo, que valorizava a emoção, o mistério e a subjetividade do ser humano. Ele assistiu à Revolução Francesa, ao colapso do Antigo Regime, às guerras napoleônicas e à ascensão da ciência moderna, que substituiu a religião no que tange a busca pela explicação acerca do mundo e seus fenômenos. Esse cenário complexo influenciou sua obra de maneira profunda.
Não por acaso, Goethe era muito mais do que um escritor: seus interesses iam além das páginas, e ele mergulhou nas ciências naturais, especialmente mineralogia, botânica, anatomia e óptica. Foi um homem do conhecimento total, um verdadeiro representante do ideal humanista que buscava compreender o mundo em sua totalidade.
Essa dualidade entre a busca pela verdade e a subjetividade humana é visível em sua maior obra, “Fausto”, que começou a escrever na juventude e terminou pouco antes de sua morte, em 1832. Goethe passou mais de 60 anos escrevendo esse livro, tempo que testemunha não apenas seu rigor, mas também sua maturação espiritual e filosófica. Sua longa trajetória intelectual reflete o espírito de um homem que viveu entre dois mundos: o das certezas iluministas e o das inquietações românticas.

O grande escritor alemão morreu em Weimar, aos 82 anos, deixando um legado monumental não só à literatura alemã, mas também à cultura ocidental como um todo. Sua vida foi, assim como sua obra, uma busca incessante pela totalidade da experiência humana.
Do que se trata “Fausto”?
Não podemos falar dessa obra sem antes entendermos a estrutura do seu texto, afinal, um livro que levou seis décadas para ser produzido não pode ter uma composição simples. Assim, a obra é dividida em duas partes principais, cada uma com tom, estilo e significado diferentes, marcando praticamente a mudança do tempo e a maturidade do autor. Dividir uma obra em duas ou mais partes não é uma invenção de Goethe, mas percebemos isso como uma homenagem a outro grande escritor: Cervantes. Em “Dom Quixote”, o escritor espanhol dividiu a saga do cavaleiro andante em duas partes, também representando dois momentos distintos de sua jornada. Assim, “Fausto”, como um Quixote do século XIX, embarca nessa mesma estrutura literária.
Na primeira parte, conhecemos o doutor Heinrich Fausto, um intelectual atormentado pela insatisfação existencial. Mesmo após décadas de estudo, ele sente que nada do que aprendeu preenche seu vazio. Essa parte inicial do texto é belíssima e reflete a dor do homem que busca o conhecimento e seu dilema: quanto mais se busca o saber, mais percebe-se o quanto nada se sabe. Em um momento de desespero, ele considera até mesmo o suicídio, mas é salvo por um hino pascal que desperta memórias de sua infância e fé.

É então que surge Mefistófeles, um enviado do diabo, que propõe um pacto: Fausto terá todos os prazeres e saberes do mundo, e em troca, entregará sua alma quando disser estar satisfeito. Apesar de relutante, Fausto aceita o acordo e, a partir desse momento, começa a sua jornada. Ganha uma nova juventude e a vive intensamente, buscando todos os prazeres possíveis. Dentre suas aventuras, encontra-se com Margarida, sua amada; porém, a sina de quem vive um pacto com o diabo é a tragédia, e Margarida acaba morrendo.
A segunda parte da história é muito mais alegórica e complexa. Fausto viaja no tempo, encontra figuras mitológicas, envolve-se em política e economia, busca moldar o mundo segundo sua vontade. É o desejo de moldar o destino e controlá-lo que o leva até essas viagens, algo natural e que todos nós desejamos fazer. No entanto, apesar de toda sua capacidade, Fausto nunca encontra verdadeira paz. Ele continua buscando, sempre em movimento, até chegar à velhice.
No final, ao dedicar-se a um projeto coletivo para criar terra fértil para um povo, Fausto encontra um sentido superior. A mensagem do livro, no final, se torna extremamente clara: não há nada mais prazeroso do que ajudar o próximo, de modo que essa é a nossa única chance de salvação. Essa é a grande chave que Fausto encontra ao fim de sua vida, percebendo, após centenas de aventuras, que a única chance de salvar sua alma é usando seus poderes para o bem do Todo e não para a realização dos seus prazeres. Assim, sua alma é salva e o pacto é quebrado graças a essa percepção interna. Fausto alcança, enfim, a redenção.

A Jornada de Fausto e a eterna busca da humanidade
Como podemos perceber pela síntese da narrativa, a trajetória de Fausto é mais do que uma simples história. Na verdade, Goethe foi brilhante ao conseguir apresentar a agonia da natureza humana e sua busca incessante pelo saber e até que ponto podemos ir para realizar os nossos desejos. O homem que faz o pacto com o demônio é, no fundo, uma pessoa que busca uma saída para suas dores e dilemas, apostando nos prazeres do mundo como solução para sanar suas feridas existenciais. É uma exploração profunda da alma humana e das suas nuances: desejos, frustrações, ambições e arrependimentos. Goethe constrói Fausto como um símbolo do homem moderno, que, apesar de possuir vasto conhecimento, sente-se incompleto e vazio.
Não é por acaso que cada vez mais nos identificamos com Fausto. Hoje, ainda mais do que na época em que foi escrito, o ser humano possui conhecimentos e desejos diversos; entretanto, nunca fomos tão infelizes. Nossos índices de suicídios e doenças psicológicas são um retrato desse fato, pois, apesar de possuirmos muito do que o mundo nos oferece, isso ainda é pouco, porque nossas angústias ainda não são atendidas.
Desde o início, Fausto é retratado como alguém que dedicou a vida inteira ao estudo, mas não encontrou no conhecimento a resposta para suas angústias existenciais. Ele dominou teologia, filosofia, medicina e direito, mas tudo lhe parece estéril e inútil diante da vastidão da vida. Assim, apesar de dominar as principais ciências, ele é como uma pequena gota de conhecimento no vasto oceano inexplorado da natureza.
A partir desse dilema, Goethe nos convida a refletir: será que o conhecimento, por si só, basta para satisfazer o ser humano? Ou precisamos de algo mais? Algo que ultrapasse a lógica e toque o coração?
Ao fazer o pacto com Mefistófeles, Fausto deixa claro que não quer apenas prazeres terrenos, mas deseja experimentar tudo, viver todas as emoções, dominar a realidade. Ele quer ultrapassar os limites humanos e tocar o absoluto, ou seja, em última instância, ser Deus. Essa ambição desmedida, que inicialmente parece apenas humana, revela sua face destrutiva ao longo da obra. Fausto transforma-se em um homem que deseja controlar tudo: o amor, a natureza, as pessoas. Ele se torna, em certo sentido, um tirano de si mesmo.

Goethe, porém, é sutil: mesmo nessa escalada de poder, Fausto permanece insatisfeito, como se sua alma pressentisse que nenhum prazer será suficiente para se sentir de fato realizado. Quando a paixão de Fausto leva à ruína de Margarida, o peso da culpa começa a corroer sua alma. A jovem enlouquece, mata o filho, vai presa e acaba condenada à morte. Fausto tenta salvá-la, mas ela recusa, preferindo confiar na misericórdia divina do que fugir com o homem que a destruiu.
É nesse ponto que Goethe introduz a noção de que a culpa não é o fim, mas pode ser um ponto de virada. Fausto passa a carregar essa dor consigo e a usa como impulso para crescer, mudar e encontrar sentido na existência.
Mefistófeles: a representação do mal e da dúvida
Não podemos falar de Fausto sem falar da sua contraparte, o antagonista, aquele que seduz e firma o pacto com nosso herói moderno: Mefistófeles. Nenhum personagem de Fausto é tão fascinante quanto esse mensageiro do diabo e, apesar de ser visto como uma caricatura de Lúcifer, ele é um símbolo da ilusão dos prazeres terrenos. Todos nós somos seduzidos por suas ofertas, afinal, quem não gosta de seus desejos sendo atendidos? Quem de nós nunca valorizou tanto um prazer ao ponto de persegui-lo de maneira desmedida?
Mefistófeles não age como um demônio tradicional. Sua função não é aterrorizar Fausto, mas conduzi-lo para a lama dos desejos, e o faz de modo inteligente, sarcástico, persuasivo e, por vezes, até cômico. Sua função é abalar as certezas de Fausto, desestabilizar sua fé e colocar suas convicções em dúvida para que, com os prazeres em sua frente, Fausto possa mergulhar cada vez mais no poder que conseguiu.
Ao propor o pacto, ele não promete riquezas ou punição eterna. Ele oferece o que Fausto já buscava: experiência, intensidade e liberdade dos limites morais. Essa abordagem faz de Mefistófeles um antagonista sutil, que nos faz pensar: o mal verdadeiro seria aquele que podemos reconhecer facilmente ou aquele que consegue justificar a busca ferrenha por todos esses prazeres?
Mefistófeles usa a razão, nossa maior e mais forte arma, contra o próprio ser humano; usa a lógica para justificar todos os tipos de maldade e desejos. Uma de suas sentenças mais famosas fala sobre essa dualidade que há na razão:
“Sou parte daquela força que eternamente quer o mal e eternamente faz o bem.”
Essa frase revela a complexidade de sua função na narrativa. Embora seu objetivo seja a perdição de Fausto, é por meio de suas provocações que Fausto evolui. No fim, a razão de ele existir é fazer com que o protagonista passe pelas provas e possa superá-las, apesar do seu desejo de levá-lo até o inferno. É o mal que, paradoxalmente, conduz ao bem. Essa ideia pode ser encontrada na mitologia grega através de personagens como Hera, a deusa que coloca provas na frente dos heróis, não pela maldade em si ou pelo desejo de destruí-lo, mas porque a única forma de crescimento é através da superação desses desafios.
O que Fausto ensina para o mundo atual?
A riqueza de Fausto está nos múltiplos temas que entrelaça, todos demasiadamente humanos. Primeiramente, um dos grandes dilemas de Fausto é o fato de estar constantemente dividido entre a racionalidade científica, que busca através da lógica e da razão uma saída para o seu pacto, e a emoção dos seus sentimentos. Esse dualismo reflete o espírito de sua época e que ainda hoje ressoa em nós.

Entre razão e emoção, Fausto é livre para fazer escolhas, porém, cada uma traz consequências. Assim, apesar de possuirmos o livre-arbítrio de guiar nossa vida pela via que desejamos, não somos capazes de controlar as consequências de nossas escolhas. Assim, Goethe desafia a ideia de que o homem é apenas vítima do destino, mostrando que, mesmo diante do mal, é possível escolher o bem. Goethe valoriza o saber, mas denuncia sua insuficiência. O que fica claro em toda a obra é que o conhecimento sem ética e sem conexão com o aspecto humano pode levar à destruição. Fausto aprende isso da forma mais dolorosa ao perder o seu grande amor, Margarida.
Visto isso, fica nítido que a obra de Goethe não é apenas uma peça literária, mas principalmente uma profunda meditação filosófica sobre a condição humana, a moralidade, o conhecimento e o sentido da vida. Uma das maiores lições filosóficas da obra é a ideia de que o ser humano é definido por sua busca constante. Somos uma espécie inconformada e, por natureza, buscamos o saber.
Assim, Goethe revela o ser humano como um ser em constante movimento e que deseja tudo que pode, mas dentre seus desejos o maior é, e sempre será, o desejo pela sabedoria. Ainda hoje vivemos esse mesmo desejo e somos, cada um à sua maneira, buscadores. Entretanto, alguns estão mais presos aos desejos mundanos e confundem sabedoria com conhecimento, poder e outros tantos sinônimos para falarmos do nosso aspecto mais egoísta.
Fausto só se aproxima da redenção quando está velho e cego, e mesmo assim continua sonhando com um projeto coletivo, que é a construção de uma nova terra onde as pessoas possam viver em liberdade. Essa ação altruísta, orientada para o outro, representa a superação do egoísmo inicial, onde a busca era por prazer pessoal. É essa busca contínua que salva Fausto. Goethe defende, assim, uma ética do movimento, da ação, da tentativa como antídoto contra o nosso egoísmo.
No fundo, a verdadeira salvação está no outro, em ajudar o próximo, e não em nós mesmos. Só conseguimos alçar grandes voos quando dedicamos nossa vida a um ideal coletivo, que possa representar e ajudar toda a humanidade. No mundo atual, precisamos desesperadamente aprender esta lição.
A influência de “Fausto” na literatura mundial
Como obra literária, é natural que o texto produzido por Goethe tenha influenciado dezenas de gerações. De fato, poucas obras exerceram tanta influência na literatura, filosofia e arte quanto “Fausto”. Desde o século XIX, autores, pensadores e artistas têm retornado a essa história para interpretá-la à luz de seus próprios tempos.
Muitos escritores beberam diretamente da fonte de Goethe, como Thomas Mann, em “Doutor Fausto”, no qual reinterpreta o pacto com o diabo no contexto da ascensão do nazismo na Alemanha; Oscar Wilde, em “O Retrato de Dorian Gray”, também retrata um pacto em troca da juventude e prazer e mostra uma clara influência narrativa de Goethe. No campo da filosofia, pode-se perceber a influência de “Fausto” em Nietzsche, que o considerava uma das obras fundamentais do pensamento moderno.

Além da literatura, “Fausto” foi adaptado e reinterpretado em diversas outras formas artísticas como óperas, filmes, peças de teatro e diversas pinturas. Tais influências mostram como a obra de Goethe rompeu as páginas dos livros e ganhou adeptos em diversas expressões culturais e artísticas, pois retrata não somente uma história, mas a própria humanidade em seus dilemas mais profundos. A figura de Fausto tornou-se um arquétipo universal, comparável a figuras como Hamlet ou Dom Quixote.
Assim, ao criar Fausto, Goethe não apenas modernizou uma lenda medieval, mas também estabeleceu um arquétipo literário que atravessa gerações: o do homem que, insatisfeito com os limites do mundo, desafia as leis divinas e humanas para alcançar o absoluto. Dessa forma, o grande mérito de Goethe foi construir um personagem cuja luta interna representa a luta de todos nós. É por isso que podemos reconhecer em Fausto uma face de nós mesmos, com nossas imperfeições e limitações.
Por que ler “Fausto” hoje?
Frente a todas essas questões, fica clara a necessidade de nos debruçarmos sobre esse clássico do século XIX. Um leitor cético pode se perguntar: por que ler uma obra que retrata um mundo que já não existe mais? Não vivemos no século XIX; logo, “Fausto” já não está mais nas ruas e avenidas em que caminhamos. Entretanto, como buscamos apontar ao longo de todo o texto, essa obra literária transpõe o tempo e reflete dilemas que, independente do tempo e do espaço, seguem dentro da natureza humana.
Os dilemas enfrentados por Fausto — como o tédio, a ambição, a dúvida, o desejo, a culpa e a redenção — são os mesmos que nos atormentam hoje. Vivemos em uma era de excesso de informação, progresso acelerado e crises existenciais profundas. E Goethe já antecipava tudo isso. Fausto é o homem do século XXI que, mesmo com acesso a todo o saber do mundo, sente-se vazio e quer mais. Sua história é um convite à introspecção, à crítica de nossos próprios pactos cotidianos — com o trabalho, com o consumo, com a pressa.
Sendo assim, ler “Fausto” não é apenas adquirir cultura: é também viver uma jornada interior, enfrentar nossos próprios demônios e anseios, repensar o que significa ser humano. É uma obra que nos exige tempo, atenção e abertura; mas que nos devolve, em troca, uma visão mais profunda da existência.
Por fim, para quem deseja uma literatura que realmente transforme, provoque e ilumine, Fausto é leitura obrigatória. Sua história é a nossa: a de seres inquietos, desejosos, falíveis, mas também capazes de transformação, de redenção e de luz. É essa tensão entre queda e ascensão que torna a obra eterna.
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