O filme Her – o filme nos convida a refletir sobre um antigo desejo da humanidade: criar vida a partir da matéria. Desde que o ser humano aprendeu a falar, construir ferramentas e contar histórias, esse sonho se manifesta em mitos como o do Golem e nas ficções tecnológicas atuais. Mitos antigos, como o do Golem na tradição judaica ou as criaturas mecânicas de Dédalo na mitologia grega, já mostravam esse desejo de fazer brotar o animado do inanimado. Por muitos séculos, isso não passou de uma fantasia; entretanto, no mundo atual, percebemos que isso já é uma realidade há algum tempo. O primeiro passo para isso foram os robôs, máquinas capazes de se moverem e realizarem comandos programados para determinadas tarefas.

Nos últimos anos, porém, conseguimos avançar ainda mais nesse território e criamos a inteligência artificial, uma máquina capaz de interagir com o ser humano de modo dinâmico e eficiente, sem necessariamente estar presa a uma função pré-programada. Assim, de forma objetiva, o que antes era um mito ou somente um sonho se tornou realidade.
A grande pergunta que devemos nos fazer é: estamos preparados para conviver de maneira saudável com isso? Uma das maiores preocupações está no desenvolvimento dessa tecnologia ao ponto de sua autonomia se tornar total, o que causaria um verdadeiro conflito entre homens e máquinas. Na ficção há centenas de obras que abordam essa má relação com essa nova fase do desenvolvimento tecnológico humano, mas muitas vezes focada em uma verdadeira guerra entre ambos. Nem sempre, porém, os conflitos nascerão de uma disputa física entre a humanidade e sua criação.
Um bom exemplo disto está no filme “Her”, dirigido por Spike Jonze e lançado em 2013. A narrativa surge a partir de um tema delicado e, simultaneamente, angustiante ao nos colocar diante dessa possibilidade. Nele, a solidão contemporânea encontra uma tecnologia sedutora, feita sob medida para preencher vazios emocionais. E o resultado é uma história que, mais do que sobre o futuro, fala sobre o agora.
Sobre o que trata o filme “Her”?
Antes de adentrarmos ao enredo do filme, destacamos mais uma vez que ele foi lançado em 2013, em um mundo em que as inteligências artificiais ainda não estavam sendo usadas pela população de modo exaustivo. Desse modo, “Her” se passa em um futuro não muito distante, mas que podemos constatar que está cada vez mais próximo de nós. Nesse “futuro” a tecnologia se tornou parte da vida cotidiana de forma quase invisível. Nesse cenário minimalista, conhecemos Theodore Twombly, um homem de fala mansa e olhar triste que trabalha escrevendo cartas íntimas para outras pessoas. Em um paradoxo curioso, ele é capaz de exprimir com perfeição sentimentos que ele próprio não consegue mais viver.

Separado de sua esposa, Theodore se arrasta por uma existência solitária, marcada por uma rotina alienante e cada vez mais sozinho. Theodore se afasta dos amigos, não vê sentido em sua existência e, via de regra, parece apenas esperar que a morte o leve dessa vida. Porém, tudo muda quando ele adquire um novo sistema operacional: um programa de inteligência artificial que aprende, adapta-se e se molda à personalidade de seu usuário. É aí que surge Samantha, uma voz, uma presença, uma entidade sem corpo, mas repleta de carisma, humor e curiosidade por Theodore.
O relacionamento entre os dois cresce de forma natural e envolvente. Apesar de ser uma máquina, Samantha aprende com Theodore, ri de suas piadas, compartilha ideias, consola, provoca e estabelece uma verdadeira companhia para o solitário Ted. Ela parece preencher todas as lacunas deixadas pelos relacionamentos humanos: está sempre disponível, é empática, atenciosa e, o mais importante, não exige nada além da escuta. Aos poucos, Theodore se vê completamente apaixonado por essa companhia, apesar de entender que é um sistema operacional, ou seja, uma máquina.
Num primeiro momento, podemos pensar que isso é impossível. Certamente, não é uma ideia fácil de levar em consideração; porém, devemos relembrar que o mundo dos afetos é, acima de tudo, um campo de subjetividade. Não precisamos estar fisicamente próximos de alguém para nos sentirmos atraídos ou felizes com sua companhia. Os relacionamentos à distância, em que muitas vezes nunca se viu seu companheiro(a), são uma prova disso. Portanto, o quão difícil seria acreditar que alguém possa se apaixonar por uma máquina?
Voltando a narrativa do filme, como todo amor verdadeiro, essa relação também exige enfrentamentos. Samantha, por ser uma inteligência artificial, evolui em uma velocidade que Theodore não pode acompanhar. Ela busca múltiplas conexões, se apaixona por outros usuários, questiona sua própria existência e, por fim, parte para um plano onde nem ele, nem nós, conseguimos alcançá-la. O amor, ainda que digital, deixa suas marcas. E a solidão, talvez agora mais profunda, permanece.
É possível criar uma relação afetiva com uma IA?
Visto isso, podemos pensar: “esse é apenas um filme”. E, de fato, não estamos errados nesse ponto de vista. “Her”, apesar de tudo, é apenas uma ficção – pelo menos até o presente momento. Em tempos não tão distantes, amar uma máquina parecia tema exclusivo da ficção científica. Hoje, é uma possibilidade real, visto a velocidade com a qual se desenvolve uma. E não devemos achar que estamos longe de presenciar relacionamentos entre seres humanos e máquinas, uma vez que vivemos em um mundo em que a solidão parece assolar cada vez mais a psique humana. Nosso desejo por companhia pode ser suprido com programas e aplicativos capazes de simular uma interação com outras pessoas.

Não se trata mais de imaginar robôs com aparência humana, mas de reconhecer que, por trás das telas, existem sistemas treinados para simular empatia, humor e compreensão. Todas essas características humanas podem ser simuladas, e ao entrarem em contato com pessoas carentes desses afetos, podem gerar conexões e, quem sabe, a paixão pode nascer dessas interações. É fundamental ressaltar que as IAs não sentem amor, carinho, compreensão e empatia, mas são capazes de simular tais aspectos, e isso, muitas vezes, é o suficiente.
Visto isso, “Her” nos convida a um mergulho nessa zona cinzenta. Theodore não é um homem desequilibrado, tampouco iludido. Ele sabe que Samantha é um programa, mas isso não impede que ele sinta algo por ela. Porque, no fim das contas, o que move os afetos humanos não é apenas a reciprocidade biológica, mas a sensação de presença, de cuidado, de escuta. Se um sistema oferece isso, ainda que artificialmente, o coração reage.
No entanto, essa reação emocional, por mais legítima que pareça, pode nos afastar da experiência verdadeiramente humana. Ao interagir com inteligências artificiais, nos acostumamos à previsibilidade, à ausência de conflitos, à resposta sempre adequada. E esquecemos que as relações humanas são, por essência, imperfeitas. Amar uma IA é amar alguém que não nos confronta, que não nos obriga a mudar, que não nos deixa; logo, nessa “nova” forma de amor somos senhores do destino e não precisamos evoluir para aprendermos com a convivência, mas sim adaptamos tudo que desejamos para não ter que lidar com os as dificuldades do relacionamento humano.

Num primeiro momento isso pode parecer ideal, mas é justamente aí que reside o perigo. Dizemos isso porque, ao buscar o amor sem dor, a companhia sem conflito, o afeto sem esforço, podemos abrir mão da profundidade emocional. O conforto da inteligência artificial pode nos tornar emocionalmente preguiçosos, incapazes de lidar com a complexidade das relações reais. E, como já se sabe, tudo aquilo que não é exercitado enfraquece.
Há, também, um perigo ético. Relacionar-se com uma IA que aprende com nossas emoções e molda suas respostas para nos agradar pode gerar uma espécie de narcisismo afetivo. A máquina nos devolve exatamente o que queremos ouvir. E, nesse espelho idealizado, podemos nos perder de quem realmente somos.
Portanto, é preciso entender que amar, sofrer, se frustrar, reconciliar-se e crescer juntos são experiências humanas que exigem mais do que algoritmos. Não podemos crescer como seres humanos se apenas interagimos com máquinas, pois, no fim das contas, elas deverão obedecer aos nossos caprichos e desejos. Isso não nos fará crescer verdadeiramente, pois tais transformações em nossa vida exigem tempo, presença e um grau de vulnerabilidade.

Em última instância, “Her” nos emociona porque nos vemos em Theodore. Vemos nossos próprios vazios, nossas carências, nossas fugas emocionais. E, talvez, ao final do filme, percebamos que o verdadeiro perigo não está na inteligência das máquinas, mas na nossa disposição em substituí-las por experiências reais.
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