A jornada do herói é uma das estruturas narrativas mais poderosas da literatura e do entretenimento. Usada desde a Antiguidade, essa fórmula narrativa atrai a atenção do público e o prende do começo ao fim nos dilemas e desafios que o protagonista precisa vencer para alcançar sua meta. Assim, desde os mitos de Hércules até as mais renomadas séries de TV do nosso tempo, a jornada do herói é um fio narrativo que perpassa culturas.

No entanto, algumas dessas histórias se afastam do tradicional final redentor e seguem por um caminho mais sombrio, em que o herói acaba por se tornar o vilão. A isso chamamos de “a queda do herói”, que também é uma fórmula narrativa, ou seja, um modo de contar uma história. Assim, ao invés do esperado “final feliz”, se observa um caminho tortuoso que tem como finalidade mostrar o resultado de nossas ações e como podemos nos corromper, se não estivermos atentos aos nossos valores.
Em “Breaking Bad”, uma das séries mais bem-sucedidas da história da TV, criada por Vince Gilligan, acompanhamos uma das mais intensas e bem-construídas descidas morais já retratadas na televisão. O protagonista, Walter White, inicia sua trajetória como um pacato professor de química do ensino médio e termina como um dos mais temidos traficantes de metanfetamina do sudoeste americano. Além de um excelente exemplo de como funciona a jornada da queda do herói, a trajetória de Walter White nos ensina sobre o perigo de sermos levados pela ganância e como podemos corromper nossos valores quando desejamos ter cada vez mais poder.

Walter White: de professor a criminoso em Breaking Bad
No início da série, Walter é um homem comum, com um trabalho normal e que acaba sendo pego de surpresa com um diagnóstico de câncer. Assim, além de sentir as pressões que a vida cotidiana impõe – como a sensação de ter seu trabalho desvalorizado, ser mal remunerado e sentir que todo seu potencial é desperdiçado –, o nosso “herói” precisa lidar com sua mortalidade.
O diagnóstico de câncer de pulmão é o estopim que desencadeia sua transformação. Movido inicialmente por um desejo aparentemente nobre, que é o de garantir a segurança financeira de sua esposa e filhos após sua morte, Walter decide usar seu talento em química para produzir metanfetamina, uma droga altamente popular nos Estados Unidos e que movimenta bilhões de dólares no mundo do crime.

Assim, pensando apenas em ajudar sua família, Walter abre mão dos seus princípios e usa seu conhecimento de química para gerar um produto que traz dor e sofrimento para milhares de pessoas. Apesar de parecer algo “nobre”, que é a ideia de cuidar de sua família, no fundo a ação de Walter White é egoísta, pois, em prol dos seus parentes, ele causa um mal a milhares de pessoas e, como se vê ao longo da série, à sua própria família.
Esse é o primeiro passo em sua jornada rumo à queda. No início da série, é notório que Walter não deseja ser um criminoso, mas é compelido pelas circunstâncias. Como muitos heróis clássicos, ele começa sua missão com boas intenções, acreditando que está fazendo a coisa certa por motivos justos. No entanto, a série rapidamente mostra que há algo mais em Walter: uma raiva latente, um orgulho ferido, uma ânsia por reconhecimento.

À medida que Walter mergulha no mundo do tráfico de drogas, ele começa a se transformar. Seus primeiros atos criminosos o assustam, mas ele rapidamente se adapta e aceita tais ações como meios para chegar a um fim. A cada novo episódio, nota-se que Walter racionaliza suas ações: ele está apenas “protegendo sua família”, entretanto, é com essa justificativa que ele começa a ruir conforme suas decisões se tornam cada vez mais violentas e egoístas.
Frente a isso, a transformação de Walter White em um verdadeiro vilão mostra como uma pessoa comum pode ser levada a ator criminosos quando não conhece a si mesmo e não honra os seus valores. Walter é uma pessoa cheia de medos, anseios e desejos, e são esses os motores que o levam a tomar as decisões. O medo de deixar sua família desprotegida o faz abrir mão de sua moral, o desejo de poder o faz querer cada vez mais construir um império. E mesmo após estar milionário, ainda não é capaz de sair desse ciclo vicioso em que o mundo do crime o colocou.
O que é o herói caído?
Como já apontamos, a trajetória de Walter White pode ser diretamente relacionada ao arquétipo do herói caído, presente em diversas mitologias e obras literárias. Heróis como Anakin Skywalker (Darth Vader), Macbeth ou mesmo Lúcifer, no “Paraíso Perdido” de John Milton, representam figuras que, dotadas de grande potencial, se corrompem por orgulho, ambição ou vingança.
Walter, como esses personagens, é dotado de uma inteligência fora da curva, além de ser hábil no que faz. No entanto, sua tragédia pessoal não está apenas na sua morte iminente ou nos perigos que enfrenta, mas na forma como ele trai seus próprios princípios. A notícia de que poderá morrer em alguns meses o faz questionar se sua vida teve sentido e como, ao longo de décadas, todo seu talento se perdeu em uma função que não corresponde às suas habilidades. Assim, o mundo do crime o faz não apenas ganhar dinheiro e mudar de vida, mas também se mostra um desafio no qual ele pode finalmente realizar suas ambições.
O uso do pseudônimo “Heisenberg” é um marco simbólico dessa queda. Ele já não é mais Walter White, o professor, pai, amigo. Ao assumir a alcunha do grande químico do século XX, Walter se transforma em outra pessoa, capaz de ser impiedoso com inimigos e cometer atos que fogem de qualquer ética aceitável. Vale lembrar que esse alter ego, o Heisenberg, é construído a partir de sua vaidade e desejo de controle; logo, Heisenberg não representa apenas o “lado” criminoso, mas a completa transformação de seu caráter.

É importante salientar que isso não ocorre do nada. Um dos grandes méritos da série é apresentar uma cadência precisa, de modo que a queda de Walter acontece de forma gradual, quase imperceptível em certos momentos. Isso nos leva a uma reflexão importante: ninguém se torna um vilão da noite para o dia. A corrupção moral é um processo de pequenas concessões, justificativas, racionalizações. É o famoso “só dessa vez”, que vai se repetindo até que não haja mais volta.
Isso nos serve como alerta: quantas concessões estamos abrindo? Deixamos de ir um dia para academia, erramos na dieta apenas aquela vez e, quando percebemos, abrimos mão de uma vida saudável e nos entregamos ao sedentarismo. O mesmo enredo ocorre em outros aspectos da vida, que, via de regra, não nos leva a cometer crimes, mas nos faz trair a nós mesmos em muitos momentos.
Assim como Walter não acorda um dia decidido a matar, enganar, manipular ou destruir, também não acordamos de manhã pensando em evitar compromissos e trair nossas metas. Entretanto, vamos dando brechas para que a preguiça se instale, a desorganização ganhe terreno e, quando percebemos, já estamos afundando nessa areia movediça, que são os nossos defeitos. Do mesmo modo, Walter White chega a esses extremos porque permite que cada pequena transgressão se acumule, justificando todas elas como meios para um fim nobre. Esse é um espelho perturbador da vida real, em que muitas vezes nos pegamos cedendo a comportamentos questionáveis em nome de algo maior — um objetivo profissional, um conforto familiar, uma ambição pessoal.
Visto isso, podemos afirmar que Walter White não é apenas um personagem complexo, elaborado e pensado para uma série de TV. Ele é, na verdade, um alerta sobre como a corrupção pode começar com um simples desvio de rota e terminar em ruínas morais completas. Sua história é uma tragédia moderna que revela as nuances do comportamento humano quando não é guiado por princípios bem-definidos.
Não pensemos apenas na sua história como uma narrativa de entretenimento, pois a queda do herói não ocorre em grandes tragédias, mas sim aos poucos, uma pequena desistência por vez e nos afeta diariamente. Não sejamos, portanto, um herói caído, e que esse personagem sirva de alerta para que não deixemos nossos valores se esvaírem pelas nossas mãos.
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