Um dos rios mais caudalosos do planeta, o Ganges, na Índia, acolhe ao longo dos 2500 quilômetros de margem mais de 400 milhões de habitantes, duas vezes a população brasileira, em uma densidade populacional de cerca de 390 hab/km2. Para se ter uma ideia, por comparação, a densidade populacional brasileira é de 24,57 hab/km2. É a bacia hidrográfica mais populosa do mundo, e isso é resultado de um processo histórico muito longo.
Como toda grande civilização, a Índia nasceu da fertilidade trazida pelas águas do Ganges desde a cordilheira dos Himalaias até a sua foz no Golfo de Bengala, no Oceano Índico, ao longo de um milhão de Kms2, por séculos e séculos. Milhares de Impérios surgiram e desapareceram às margens do Ganges, centenas de ciclos econômicos com seus apogeus, decadências e retomadas se fizeram a partir dessas águas.
Essa simbiose entre o povo e o rio levou a cultura hindu a assimilar o Ganges dentro de uma linguagem mítica, que envolve as principais Divindades da Índia: Vishnu e Shiva, tornando-o um templo vivo. Os corpos são cremados em sua margem e as cinzas lançadas em seu caudal. Milhões de pessoas diariamente visitam suas margens, vindas de toda a parte do planeta e diante de suas águas cinzentas fazem suas orações. Para a maioria dos hindus, a vida não está completa se nunca tiver ido até às margens do Ganges. Em geral, as famílias guardam em suas casas um recipiente com água do rio e tomam um pouco quando estão convalescentes em seu leito de morte.
Os mais antigos contam um mito de que o Ganges vem dos planos celestiais, de uma época em que o Deus Vishnu encarnou em um Avatar anão chamado Vâmana, a fim de combater o Rei Assura que havia dominado todo o planeta Terra. Quando Assura vê o sacerdote lhe implora a bênção, e Vâmana lhe concede desde que o Rei dê três passos de Terra para ele, e assim fica acordado. Mas quando Vâmana está prestes a medir os três passos, Vishnu expande sua forma, de modo que o primeiro passo alcança a metade do Universo e o segundo a outra metade, no terceiro passo ele pisa sobre a cabeça de Assura, que se torna seu adepto. Assim, todo o Universo jaz sob os pés de Vishnu. Nesse mito, em um dos passos de Vishnu, a ponta de seu dedo rasga a abóbada celeste, e começa a correr por ela as águas do Oceano primordial, pois a cultura hindu acredita que o Espaço Sideral, assim como os nossos oceanos, é também um grande mar primordial cheio de organismos e variedades de Seres Vivos. Assim, as águas jorravam do mar primordial sobre a Terra causando uma grande destruição. Para salvar o planeta, o Deus Shiva oferece sua cabeça, a fim de receber as águas que descem pelos seus cabelos desde a cordilheira dos Himalaias dando origem ao Ganges.
Este mito é a expressão do anseio de uma civilização em procurar seu lugar na Natureza, mostra que o Ganges é um símbolo vivo de Unificação, um elo de ligação entre sua realidade vivencial e o Mistério do mundo. Um ponto de conexão entre suas vidas e a vida do Cosmos. Não se via o rio como uma fonte de água e sustento para o povo, mas sim como uma dimensão cósmica. Entretanto, com o tempo, a industrialização e o crescimento das cidades superaram o respeito ao rio, que hoje sofre com muita poluição. Há projetos de descontaminação, mas muitos escândalos de corrupção política atrasam a efetivação desses planos.
O Ganges é um reflexo de como a sociedade está hoje, ele também agoniza. O quadro triste em que se encontra parte do rio Ganges não é inferior ao quadro de desmoronamento civilizatório que amargamos nos dias atuais. Sofremos crises agudas na política, na educação, nas relações entre os povos e nas cosmovisões. Essa época de decadência é um reflexo do afastamento das grandes ideias, da perda dessa dimensão cósmica presente na origem mítica do Ganges. A paisagem das águas Sagradas do Ganges é um convite para retornarmos ao mítico, para vermos o mundo com os olhos da Alma e fazermos o caminho do conhecimento. Que o Ganges conduza a barca da nossa consciência a lugares mais elevados, pois nunca precisamos tanto como agora.