Uma mulher com uma fé inabalável e de uma história incrível. Assim poderíamos definir Cecília de Roma. Ela era filha de um senador romano, em uma época em que o império vivia sob o medo de revoltas e combatia fortemente tudo o que via como ameaça. Cristã desde a infância, ela foi prometida a casamento ao jovem Valeriano. Todavia, fiel a seu voto de castidade, defendeu tão vivamente sua fé que seu marido não só respeitou a sua decisão, como converteu-se ao cristianismo e convenceu seu irmão a fazer o mesmo. Perseguida por sua fé, Cecília fora condenada a ser colocada em uma instalação balneária e a morrer por asfixia por vapor d’água. No entanto, ao perceber que ela havia sobrevivido à pena capital, seu algoz a condenou à morte por decapitação. O carrasco deu três fortes golpes, mas a cabeça de Cecília não se separou do corpo, porém, ela estava mortalmente ferida. Ainda assim, ela viveria por três dias, aconselhando os cristãos que lhe procuravam e entoando músicas de louvor à Deus sem parar. Esse último detalhe de seu martírio, a levou a ser considerada a padroeira dos músicos. Na Idade Média, o culto a Santa Cecília foi muito difundido, de tal forma que ela é a santa com maior número de catedrais erigidas em seu nome. Sua festa foi estabelecida na data de 22 de novembro e até hoje, neste dia, comemoramos o Dia do Músico.
Do ponto de onde vemos a Vida, os músicos continuam repetindo esse martírio santo. Mas, antes de explicar melhor esse ponto de vista, queremos os prevenir de julgamentos precipitados. Não estamos falando necessariamente de uma forma religiosa, mas sim dos verdadeiros músicos como Idealistas. Não idealistas ingênuos, que veem o mundo através de lentes cor de rosa, mas sim pessoas que sabem que o mundo vive uma noite escura, mas que preferem olhar para as estrelas que guiam a trilha, enquanto o Sol não volta a nascer. Todos nós, músicos ou não, também devemos viver por um Sonho, ou pelo menos procurar um Sonho pelo qual viver. Só não podemos ficar no grupo daqueles que já desistiram, ou dos que nunca sonharam.
Por isso, dizer que os músicos repetem o roteiro da Santa Cecília, não significa afirmar que sejam santos, nem tampouco que todos os músicos vivam essa trama sacra. Mas, que acreditamos (e acreditar é sempre uma escolha) que os idealistas estão em todas as partes, inclusive entre os músicos.
Decifremos a afirmação feita anteriormente sobre os músicos e a sua relação com a história de Cecília. Ela deu tudo o que tinha pelo que considerava Sagrado. Pense em um músico. Não em um “vendedor de música”, mas em um daqueles que têm a música como sua própria Alma. Aqueles que se encaixam na letra da música de Milton Nascimento, para quem:
Cantar era buscar o caminho
Que vai dar no sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe tudo tão bom
Até a estrada de terra na boléia de caminhão
Era assim
Com a roupa encharcada e a alma
Repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se for assim, assim será
Cantando me disfarço e não me canso
de viver nem de cantar
Um daqueles músicos para quem a música está tão profundamente ligada a sua própria identidade que já não é possível separá-los. E que mesmo surdos, continuam fazendo música, assim como continuam respirando. Tal como Beethoven, que mesmo sem ouvir nos deixou a belíssima Nona Sinfonia, uma canção de alegria.
Você não acha que, para esses músicos, Nietzsche estava certo quando disse que a Vida sem a música seria um erro? Agora venhamos de novo para o nosso mundo real. Ser um músico é escolher uma Vida de muitos desafios. Mal remunerados, pouco valorizados, seus trabalhos são uma das primeiras coisas que queremos deixar de pagar quando a situação é desfavorável. Ainda assim, eles continuam acreditando, da mesma forma com que nossa santa padroeira, continuou defendendo sua “fé” até a morte.
Sem fé, a Vida se torna insuportável. E não defendemos a obrigatoriedade de se professar alguma crença religiosa, mas sim a necessidade Humana de ter Esperança. Mesmo ateus têm fé. Não em um “senhor barbudo”, mas frequentemente têm fé na própria Humanidade como redentora de si mesma. Por isso, dizemos que aqueles Seres Humanos, como Santa Cecília, que foram capazes de viver e morrer pelo que acreditavam, mostrando uma convicção heróica, são fundamentais para nos manter nessa trilha de Esperança.
‘Esperança’ é a coisa com asas
Que eleva-se na alma
E canta a música sem palavras
E nunca para, de jeito nenhum
Emily Dickson
Nesse exato momento em que você lê estas linhas, um músico caminha para seu “sacro ofício”. Ele vai continuar defendendo sua convicção de que a música é extremamente necessária e leva Esperança. Mesmo que não sejam reconhecidos, mesmo que muitos lhes voltem as costas, mesmo que tantos paguem o couvert artístico à contragosto, mesmo que tenham que passar as noites pelos bares da vida, ainda assim eles farão de sua persistência, seu ato de maior generosidade a um mundo que clama por Beleza e Harmonia. Eles continuarão colocando seus violões nas costas, aquecendo suas pregas vocais e alcançando uma oitava acima. Sem boa música, a vida se torna insuportável. Não há um só momento em nossa memória que não possa ser melhorado com a trilha sonora certa.
Não à toa, Platão ao imaginar uma cidade ideal, em seu livro “A República”, deu à música um destaque fundamental. Houve um tempo em que a música era Sagrada e os músicos sacerdotes. Onde foi que mudamos o rumo dessa relação? Talvez, quando aceitamos ser controlados por um “velho deus”: o dinheiro. Aprendemos que o dinheiro traz liberdade e felicidade e colocamos toda a nossa vida em seu altar de sacrifícios. Nesse contexto, a música passou a ser também um de seus servos. Se antes ela era vista como uma forma de se conectar com a Divindade, como um ato de Fé, hoje ela é só mais uma das maneiras de ganhar dinheiro e fama.
“A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia.”
Ludwig Van Beethoven
Quem sabe, essa não seja a maior heresia de nossa civilização? A de corromper algo que fala tão diretamente ao nosso coração. A música tem o poder de nos tranquilizar, nos arrebatar, nos energizar, ou nos entristecer. Como dissemos neste texto, ela pode ser um remédio para o corpo e para a alma. Ela pode ser um canal para nosso mais profundo Ser, uma via que transcende a razão.
“A música exprime a mais alta filosofia numa linguagem que a razão não compreende.”
Arthur Schopenhauer
Você pode não ser devoto de Santa Cecília. Mas, talvez não se incomode de no dia 22 de novembro elevar seus melhores pensamentos para um tipo especial de Ser Humano. Um tipo que nos faz sorrir e chorar. Um tipo que exprime a matemática sagrada de uma forma tão bela, que sem eles nossas Almas não sobreviveriam.
E se você é um desses músicos idealistas que vêem sua música como uma oferta de Beleza para o mundo, receba este texto como uma forma de oração. Que você, músico, possa continuar a nos inspirar, mas que também busque cultivar em si mesmo as Virtudes que reconhece que o mundo precisa. Escutemos Confúcio quando diz:
“Como é que um homem sem as virtudes que lhe são próprias pode cultivar a música?”
Confúcio
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