Todo Dia Tem Um Milagre Na Sua Janela

O Homem, até pouco tempo atrás, vivia de forma extremamente simples. Todo o extraordinário que vemos hoje é um efeito de uma série de revoluções iniciadas há não mais do que alguns séculos atrás. Camada sobre camada, fomos acumulando novas gerações de mudanças culturais e tecnológicas, até chegarmos aos dias atuais, época em que é possível realizar o incrível e o inimaginável. Num mesmo dia, a pessoa pode almoçar em um restaurante árabe, visitar uma exposição de obras da Europa Renascentista e no fim da noite jantar sushi em um restaurante japonês. Nossa vida é um caleidoscópio colorido e super informado. E imaginar que nossos avós viviam à luz do candeeiro, numa vida monótona que repetia as mesmas ações todo santo dia…

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Pois bem, quis o destino que o ano de 2020 acontecesse. E de repente, toda essa sofisticação da vida contemporânea precisou dar uma pausa. Não havia mais shows pirotécnicos; as festas foram suspensas; os jogos de futebol pararam; até a opção de ir à praia e abandonar-se debaixo do sol, nos foi tirada. E como em um passe de mágica, a gente precisou conviver novamente com uma simplória, comum e insossa rotina.

Tínhamos que acordar e ver as mesmas pessoas todo santo dia. Acordar e repetir as mesmas opções do dia anterior. E foi sofrido. Estávamos muito acostumados com nossa sofisticação. Pelo menos, as novas tecnologias permitiram um entretenimento rápido e acessível. E nos conectaram com outros isolados. Essas soluções paliativas para a socialização foram fundamentais para atravessarmos esse período. Mas, para muitos, não foram suficientes. As taxas de depressão aumentaram, o consumo de álcool e outras drogas também, os números de violência doméstica, a quantidade de divórcios explodiu e cresceu também a dor que leva pessoas a buscarem uma solução final.

Essa realidade é um grito de socorro. Simplesmente, não suportamos mais viver sem a sofisticação e a complexidade do estilo de vida que nós mesmos criamos. Chocamos o ovo, o alimentamos, cuidamos dele, o enfeitamos e só quando ele cresceu, percebemos que era o ovo da serpente. Agora, precisamos viver atentos durante o dia e vigilantes durante o sono, pois qualquer descuido pode ser fatal. Sabemos de todo o risco e todos os males que vem desse nosso estilo de vida “peçonhento”, mas o nosso medo, não é ser picado por ele, mas é que, depois de tantos anos, esta “serpente” vá embora. É como uma síndrome de Estocolmo, em que o sequestrado tem medo de se libertar do cativeiro. Em outras palavras, desaprendemos como viver de forma simples. O comum nos assusta, nos enfadonha e nos entristece. Geramos o luxo e ficamos escravos da luxúria.

Ai ai… que bom…

que bom, que bom que é…

uma estrada e uma cabocla,

com a gente andando a pé…

Assim, o grande Luiz Gonzaga cantou um elogio à Vida simples do sertanejo de sua época. No fundo, já sabíamos naquele momento que era uma canção profética. A Vida acelerou, encheu-se de condimentos, brilhou em todas as cores e fomos perdendo a capacidade de ver a Beleza da Vida comum.

Obrigados que fomos a Viver com o simples, tínhamos duas possibilidades. Uns enfiaram-se embaixo das cobertas e desejaram que tudo logo passasse. Outros começaram a olhar com mais atenção para a simplicidade que os rodeava. Como o personagem da música do velho Gonzagão, alguns conseguiram ver o galo campina, que quando canta muda de cor. Trocando em miúdos: ao serem obrigados a Viver com o maravilhoso mundo do comum, houve quem percebesse a Beleza das coisas simples. Alguns nunca tinham reparado na Inteligência e Organização militar das formigas em sua procissão ininterrupta nas paredes da cozinha. Outros não tinham percebido como um bom banho alivia as tensões e renova as energias. E aqueles que, há anos, não se reuniam ao redor de uma mesa para fazer uma refeição em família?

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O triste nesta história é que esses parecem-nos que não são a maioria. Muitos não estavam acostumados a ficar sozinhos. O dia-a-dia pode ser massacrante para quem nunca passou muito tempo consigo mesmo. E o silêncio de estar consigo mesmo e não ouvir nada de outro Ser Humano pode ser sentido como a maior solidão de todas. Para muitos, a falta das curtidas e dos compartilhamentos fizeram a Vida parecer ilusória. Já não era mais possível atualizar o Instagram com belos cenários, e estando dentro de casa seria muita forçação de barra postar fotos de biquíni ou mostrando o tanquinho. E enquanto choravam por não poderem mais estar na beira da praia, o Sol continuava sua caminhada simples, rotineira e geradora de todas as cores. Esses bem que podiam se inspirar no poema de Alberto

Caieiro (Heterônimo de Fernando Pessoa)…

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás…

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem…

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras…

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo…

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A vida só é vazia para quem não tem olhos para ver. Repare direitinho: todos os dias tem um milagre acontecendo bem diante de sua janela. A tal Vida comum, pode ser ainda mais especial do que a Vida adornada dessa complexidade que nossa cultura criou. Só precisa ser vivida em sua plenitude, estando inteiramente presente no Agora. Vivendo tudo intensamente, como se fosse a maior sorte do mundo (porque de fato o é), o comum se torna o mais especial que poderíamos desejar. Vá viver seu especial comum hoje mesmo, mas de preferência, vá com calma, andando a pé, “olhando as coisa a grané”… Aproveitando a paisagem; curtindo o sorriso de uma criança quando dorme; limpando você mesmo seu banheiro; fazendo algum conserto naquele vazamento antigo… Se fez isso durante a pausa de 2020, mantenha! Se não o fez, abra sua janela e colha o milagre de hoje. O milagre de ver que sua Vida pode ser uma aventura sofisticada, complexa e desafiadora mesmo de dentro do seu apartamento.

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