O que nos ensina um Deus que possui diversos casos amorosos extraconjugais? Para além disso, todos nós, no mínimo, colocamos em dúvida sua autoridade moral como um ser superior à condição humana, se olharmos para seu mito de forma literal. Quando não sabemos ler simbolicamente suas histórias, é isso o que ocorre, inclusive com os diversos deuses do Panteão Grego, e com Zeus não seria diferente, o Rei de todos eles. Será que um povo que nos deixou o legado da filosofia, da lógica e do pensamento racional escolheria um deus antiético para ser o grande Rei do Olimpo? Ou somos nós que realmente não conseguimos entender profundamente os símbolos daquela civilização?
Zeus, filho mais novo do titã Cronos com Reia, é o deus grego da Ordem, da Justiça, da Lei e da Prudência. Além desses atributos, essa divindade está relacionada diretamente com Cronos, que é o senhor do tempo. No mito, Cronos devora os seus filhos, sendo o símbolo da destruição de tudo que nasce do tempo. Porém, apesar de Zeus ser seu filho, ele não é devorado. Será que o mito está “errado”? Evidente que não. Basta pensarmos que as ideias – que também são traduzidas como alguns dos atributos de Zeus – não morrem, não importa o tempo que passe. Nesse sentido, o mundo inteligível, que é próprio do divino para os gregos, não pode ser alcançado pelo tempo, e muito menos destruído por ele. É por isso que Zeus vence Cronos em seu mito e se torna o deus dos deuses. Como esse mesmo deus pode ser visto com tantos “casos” ao longo da mitologia? Qual o símbolo que esconde essas relações?
Ainda sobre Zeus, esta divindade foi bastante adorada em diversos recantos do mundo onde a cultura grega chegou. Além dos seus atributos, seus principais símbolos são o raio, a águia, o touro e o carvalho. É conhecido como Pai dos deuses, pois, através das diversas histórias amorosas com deusas, ninfas e humanas, gerou muitos deuses e semideuses, cada um representando algum aspecto profundo e importante da Vida.
Para o filósofo neoplatônico Plotino, Zeus é associado ao Nous, Mundo Espiritual ou o que Platão chamaria de Mundo das Ideias. Na filosofia grega, nós encontramos a ideia de que existe um mundo das formas perfeitas, dos arquétipos, onde estão os ideais de Justiça, Bondade e Beleza perfeitas. E é deste plano elevado de consciência, dessas grandes Ideias, que surge a Vida e todas as coisas que existem. Este plano é a causa de tudo o que geramos no plano mais concreto, da mesma forma que um arquiteto, antes de construir a casa, precisa criá-la na mente.
Zeus, então, é o Poder Mental, é esta Semente Divina capaz de dar Vida a tudo, mas para isso ele também precisa de algo que faça a “gestação” desta Vida. Para a civilização grega, além de Nous, também existe o plano da Psique, onde estas ideias elevadas são nutridas de maneira a se manifestarem no mundo concreto, que chamam de Soma. Nous, Psique e Soma são planos da Natureza que existem também em cada um de nós, de acordo com os gregos. Em outras palavras, podemos entender que estes grandes Ideais Divinos que habitam nos céus de Nous, são sementes que precisam ser acolhidas e nutridas na Psique Humana com as emoções e o ânimo adequados, pois sem isso eles não se concretizam no mundo material.
Dentro dessa perspectiva, Zeus representa as ideias que necessitam ser plasmadas na existência, logo, precisa que seus filhos nasçam. Como o mundo em que vivemos é composto por diferentes ideias, formas e arquétipos, Zeus encarna em cada um dos seus casos amorosos uma forma específica, simbolizando a plasmação das formas. É por isso que comumente seus mitos o mostram como um cisne, um touro e até mesmo outro ser humano, além de ter sua própria geração de heróis.
Então, podemos entender que todos os relacionamentos de Zeus são formas de dizer que o mundo inteligível está gerando através da união de outros elementos as diferentes ideias no mundo, para nos mostrar simbolicamente elementos da Vida, da Natureza e das nossas jornadas. No vídeo abaixo, você pode ver um pouco sobre os diversos amores do deus grego que estamos falando.
Durante o vídeo, conhecemos o relacionamento de Zeus e Mnemosine, deusa da memória, e com ela tem as nove musas, patronas das artes e dos artistas. Lembremos de Zeus como essa ideia que vem ao mundo, que na vida humana pode ser traduzida como a nossa consciência ou mesmo a sabedoria. A união desse casal mostra que a memória é fundamental para alcançarmos a sabedoria, afinal, se não lembramos, não conseguimos evoluir em nossas ações. Antes de vivermos uma ideia, é preciso que estejamos conscientes dela, ou seja, que lembremos de suas nuances. Mais do que isso, é preciso entender o que estamos chamando de “memória”. Não se trata apenas de recordar, pois guardamos em nós lembranças que de nada nos servem e que podem, inclusive, nos machucar profundamente, como os traumas. A verdadeira memória consiste em reter o aprendizado que extraímos das experiências que vivemos, e não apenas lembrar do que ocorreu. Se de fato aprendemos algo, guardamos o ensinamento, e os fatos objetivos já não são necessários. Essa é a verdadeira união entre a consciência e a memória. O resultado dessa união são as musas, as guardiãs do conhecimento, ou seja, quando se está consciente e se usa a memória, a síntese é o aprendizado que se torna atemporal.
Percebem o poder simbólico de um mito? Quando reduzimos os amores de Zeus ao seu aspecto mais objetivo, deixamos escapar todas as ideias que o mito contém. Acabamos caindo na esfera do julgamento e da moral, que em grande sentido é construído a partir de uma visão atual sobre as relações humanas, e deixamos a narrativa cair na esfera mais baixa que podemos atingir. É por isso que cabe a nós cada vez mais refletir e pensar o mito como uma maneira de guardar ideias atemporais.
Zeus tem como sua esposa Hera e esta, por muitas vezes, é vista como “ciumenta” e persegue os filhos de Zeus, principalmente os heróis. Porém, Hera é a responsável por provar os heróis e torná-los dignos de serem, de fato, filhos de Zeus. Hera coloca à prova o divino que há neles e representa, nesse caso, a própria natureza da Vida, que busca fazer com que todas as formas evoluam ao longo da sua jornada na existência. Hera, portanto, garante que a concepção desses semideuses não seja em vão, impondo-lhes desafios para que um dia possam se sentar junto aos deuses no Olimpo.
Com Eurínome, deusa que é filha do deus Oceano, Zeus gera as três graças, tidas como a Alegria de Viver. No relacionamento com a titânide Mnemosine, que simboliza a memória, ele gera as 9 musas que lembram os seres humanos no seu aspecto mais divino, e por isso são capazes de fazer Arte. No curta, também conhecemos o Mito do nascimento dos gêmeos Ártemis, deusa da Lua, e Apolo, deus solar da Beleza e da Arte, que são gerados da relação de Zeus com Leto, deusa da noite.
Zeus também cai de amores por Leto, uma titã, filha de Febe e Céos. Com essa divindade, o deus dos deuses vai gerar dois filhos, Apolo e Ártemis, também conhecidos como o deus do sol e a deusa da lua, respectivamente. Apolo terá muitas funções na mitologia grega, sendo um deus popular entre os antigos moradores da Hélade. Ele está junto às musas e as coordena. Já Ártemis é uma protetora da natureza e dos animais, e uma caçadora de todos que transgridem as leis. O símbolo de Apolo e Ártemis é o da dualidade e talvez seja o mais perceptível em nossa vida cotidiana. Isso porque vivemos em um mundo cercado de dualidades, pois essa dicotomia é a maneira natural que nosso cérebro tem de compreender o mundo. Separamos a jornada de um dia entre “dia” e “noite”, falamos em “quente” e “frio”, “alto” e “baixo”, mas no fundo essa dualidade esconde uma mesma ideia, uma essência que se diferencia apenas pela sua presença ou ausência. Do mesmo modo, o Sol e a Lua são dois aspectos que vão representar a natureza, que é Una e indivisível em sua essência.
Por fim, o mais importante que devemos levar de todos estes mitos sobre Zeus é percebermos as profundas mensagens que nos foram deixadas como legado. Dentro de todos nós, existe uma Centelha Divina, esta possibilidade criadora de Vida, simbolizada por Zeus. Todos que refletem, alcançam essas ideias elevadas e compreendem a importância do Bem e da Justiça; porém, não basta pensarmos apenas, precisamos também colocar estas ideias no mundo. Assim como Zeus, que gerava vários filhos, nós precisamos fazer com que esta Centelha Divina em nós se relacione com todos os elementos da nossa vida, para que, por fim, através das nossas ações, elas tornem o mundo mais Bondoso, Harmonioso e Justo.