Recentemente circulou em nossas redes sociais um texto atribuído ao Padre Fábio de Melo. O texto contradizia o movimento do politicamente correto e questionava o discurso da classe média de que estamos todos no mesmo barco, e, por isso, todos precisávamos ficar em casa. Embora o boatos.org (https://www.boatos.org/religiao/padre-fabio-de-melo-texto-nao-estamos-no-mesmo-barco.html) já tenha desmentido a autoria, seu conteúdo continua interessante. Esse é um costume que diz muito sobre nós mesmos. Se o texto nos traz profundas reflexões, mas é assinado por seu zé da esquina e não pelo influencer intelectual favorito, muitos de nós o abandonamos. É como se não valorizássemos o texto em si, por aquilo que ele pode nos fazer ver e refletir sobre nossa própria Vida, mas sim o nome na assinatura.
Você que acompanha a Feedobem já deve apresentar uma postura um pouco diversa disso. Afinal, nossos textos não têm nome, nem rostos. E, por isso mesmo, pode ter o seu nome e o seu rosto. Porque você leitor, ao dar um novo sentido às palavras aqui escritas, torna-se coautor. E ao se tornar coautor, carrega para si mesmo o compromisso de levar essas reflexões para a Vida. De nada adiantaria nossos esforços, se ao ser impactado por um texto, ou postagem nossa, você não usasse essa força para alcançar um grau mais profundo de Autoconhecimento, Bondade e Força! Não queremos ser só mais um portal de conteúdos (veja aqui o nosso manifesto), queremos Inspirar para Transformar! E de uma coisa temos convicção: não há transformação possível sem Fraternidade! Disso falam todas as grandes tradições clássicas, Orientais, ou Ocidentais, sejam religiosas, políticas, ou filosóficas. Apontam todas para a necessidade de desenvolvermos a Bondade e o Amor nos corações Humanos. Porque sem eles, não será possível olhar para o outro com a Tolerância necessária para vivermos em Harmonia.
Virou chavão e lugar comum nesse período de isolamento social e pandemia, a hashtag “#estamosjuntos”. E pudemos ver diversas manifestações de solidariedade (escrevemos sobre várias delas, aqui temos um exemplo Seja um sol na escuridão. São pequenas flores que nos apontam um terreno fértil no coração Humano. Nos dizem que no centro de nosso Ser, há um manancial de Amor e Bondade pronto para jorrar. Para alguns, a crise estimula a necessidade de ser canal da Vida. Esses funcionam como pequenas fontes. Quando se juntam, podem correr como cachoeiras e ajudar a muitas outras pessoas. Essa é uma das influências em nós de um tempo como o que vivemos hoje. Todo período de crise intensifica os aspectos preponderantes de nossa psique. Se em nós predomina a raiva, o egoísmo e a intolerância, a crise irá escancarar isso.
Veja abaixo o texto atribuído ao Padre Fábio:
“Cada um sabe de sua vida e de sua situação. Então, não julgue!
Me irrita essa frase “estamos no mesmo barco”????
Não, não estamos. Não seja ridículo. Estamos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco.
O seu barco pode afundar.. e o meu não, e vice versa.
Pra alguns a quarentena tá sendo ótima! Momento de reconexão.. trabalho tá indo suave, etc
Para alguns tá sendo uma crise!
Para outros uma paz… tempo de descanso. Férias.
Para outros tempo de tortura: “como vou pagar minhas contas?!”
Alguns estão preocupados com qual ovo de Páscoa vão comer hoje.. kinder ou Lacta..
Alguns estão preocupados se vai ter pão pra comer até o final da semana, se o arroz e o feijão serão suficientes.
Alguns estão no home office na fazenda.. outros estão catando lixo pra sobreviver.
Alguns querem voltar a trabalhar porque não tem mais dinheiro.
Alguns querem matar quem quer voltar a trabalhar porque ele não tá pensando em dinheiro, afinal ele já tem uma reserva, não precisa se preocupar com isso.
Uns estão com Fé em Deus que veremos muitos milagres ainda em 2020.
Outros dizendo que o pior nem chegou.
Então…Não amigo, nós não estamos no mesmo barco. Estamos passando pelo mesmo momento mas com percepções, experiências e necessidades COMPLETAMENTE diferentes. E sairemos cada um de um jeito desta tempestade.
Por isso neste momento é muito importante enxergar além do que se vê. Enxergar além de partido político, além de religião, além do próprio umbigo… não menospreze a dor do outro porque você não a sente, não julgue a vida boa do outro porque você não sabe o que ele passou pra chegar lá… simplesmente não julguem.
Julguemos menos. Tanto o que não tem, quanto o que tem de sobra. Tanto o que quer voltar trabalhar, quanto o que quer ficar em casa.
Afinal.. estamos em barcos diferentes irmão! Fale por você…”
O texto fake do Padre Fábio de Melo traz algumas ideias que não são mentiras. Será que estamos realmente todos juntos no mesmo barco? Como podemos dizer que aqueles que tiram um ano sabático, aproveitando esse tempo para ler e meditar sobre as grandes questões da Vida, do conforto de um apartamento de duzentos metros quadrados estão embarcados ao lado do entregador de pizzas, que tem que sobreviver navegando em sua jangada de palafita? Como dizer que um avô solitário abandonado em um asilo na Espanha está no mesmo barco daquela família que tem pouco dinheiro, mas muita União?
A reação da maioria das pessoas ao ler esse texto é se dividir em dois grupos: os que apoiam o isolamento social com bases científicas impossíveis de serem ignoradas; e os que defendem a volta urgente da economia, cujo colapso sempre pressiona os mais pobres. Essa reação é um contrassenso sem lógica nenhuma! Intuímos que a maioria de nós concorda com o texto no fato de que não estamos todos no mesmo barco. E que dependendo do valor que sua renda permitir, a sua embarcação fará esse período ser mais ou menos dramático. Todos também parecemos concordar com o fato de que algo precisa ser feito para resolver essa situação de desigualdade e divisão. E o que fazemos para tal? Nos dividimos mais. Entre conservadores e progressistas; comunistas e fascistas; ladrões e ditadores; homens e mulheres; pretos e brancos; entre os #fiqueemcasa e os #salveaeconomia. É como solucionar uma gripe tomando banho de chuva, ou tentar curar uma ressaca com mais bebida. Essa reação revela, como dissemos antes, muito sobre nós mesmos. Vivemos separados e em constante processo de separação. E este período, para muitos, reforçou isso. A semente dessa luta de todos contra todos não está na preocupação com a saúde do corpo, nem do bolso. Está em um nível de intolerância crescente, que nega ao outro um dos direitos mais fundamentais da Vida: o de ter seu próprio ponto de vista.
Sri Ram, filósofo indiano do século passado, escreveu em seu livro “O Interesse Humano”, algumas profundas reflexões. Ele disse que um ponto de vista conflitante é algo necessário para a conquista da nossa própria plenitude Humana. Não se assuste, que a ideia é mais lógica do que parece. Imagine que a Vida é navegar na direção de uma mesma foz; agora imagine que ela tem vários afluentes e pequenos rios que correm para lá. Você seguiu por um deles e durante o trajeto aprendeu sobre o lado esquerdo; Seu irmão seguiu por outro caminho e experimentou o lado direito. Só tem uma forma de ambos serem ambidestros: se compartilharem o melhor que cada um aprendeu individualmente. Não serão, portanto, nem canhotos, nem destros. Serão mais, pois encontrarão um ponto de União que os transformará em uma Unidade. E isso só é possível, porque cada um tem uma opinião diversa do outro. Sábio esse Sri Ram, não?
“Antes que possamos atingir a plenitude de compreensão, parece-me necessário ter experimentado a verdade em princípios aparentemente conflitantes.”
Sri Ram
Nessa metáfora não parece tolice desconsiderar um ponto de vista sem examiná-lo? É o que pensa esse filósofo também.
Nossa discordância geralmente se dá no nível da opinião. Para Platão, a opinião (doxa) se oporia ao conhecimento (episteme). É uma definição bem usual para nossas diferenças atuais. A grande maioria dos debates acalorados que acabam com grupos de amigos e com os natais das famílias, não são frutos de uma reflexão sincera sobre o tema. Mas, de um apego infantil à margem, a partir da qual cada um vive a Vida.
No fim das contas, a atitude é mais importante do que a opinião. Opiniões não podem nos unir; atitudes mentais de franqueza e abertura para compreender o ponto de vista do outro, entender de onde eles partem e refletir sinceramente a partir de nosso próprio local de observação, podem! E o primeiro passo para isso é aceitar o direito que cada um possui de ter suas próprias conclusões.
Isso não significa aceitar tudo e ser indiferente ao que se considera errado. É claro que opiniões que negam aos seres humanos o direito de serem quem são, ou que toleram a desonestidade em nome de um “mal menor” precisam ser combatidas por aqueles que querem uma sociedade mais Unida. Mas, não precisamos combater as pessoas que pensam assim. E para que isso seja possível, é preciso sentir com a pessoa que está por trás do ponto de vista. Entender um pouco quem ela é. Esse exercício pode ser surpreendente, basta começarmos a praticar!