Todos nós conhecemos um pouco de mitologia. “Quase sem querer”, esbarramos com nomes de deuses gregos, egípcios, e não é raro assistirmos a jogos, séries e filmes que retratam essa temática. Mas você já parou para pensar que há em nossa cultura indígena uma série de mitos tão belos e ricos quanto os da cultura clássica? Muitas vezes olhamos apenas para a mitologia de outras civilizações e quase esquecemos de nossas raízes, que por mais que sejam, em grande parte, influenciadas – até hoje – pelos povos europeus, também temos em nossa gênese grande parte de nossa tradição nativa.
Devemos, pois, explorar a riqueza que existe em nossa mitologia indígena. Sim, temos mitos diversos que contam a saga humana sob a perspectiva dos povos nativos. Certamente, os nomes de Zeus, Prometeu, Athena e todo panteão grego nos parecem mais familiares, em razão da influência europeia em nossa formação, a qual tem suas raízes na cultura grega e romana. Porém, os nossos índios possuem uma herança mitológica riquíssima, que ainda permanece viva entre os milhares de nativos que habitam nosso território, e é tão bonita e profunda quanto aquelas que contam sobre os trabalhos de Hércules ou a jornada de Odisseu.
Nossos grupos indígenas estão concentrados nas regiões Norte e Centro-Oeste, cada um com seu próprio idioma, crenças e costumes. Segundo alguns antropólogos, os mitos para os povos indígenas têm uma função maior e mais importante do que somente a transmissão dos fatos históricos ocorridos nas comunidades, eles são a forma de preservar valores fundamentais da cultura e da religiosidade, que atravessam as várias gerações, e mantêm a identidade desses povos. Nesse sentido, podemos perceber que a função da mitologia é muito mais do que apenas narrativa, mas é uma construção consciente para explicar questões fundamentais dentro de cada sociedade. Encanta-nos notar que essa mesma percepção está presente em diversos povos, mostrando que apesar de traços culturais distintos – o que é normal devido às condições em que cada uma dessas sociedades se desenvolveram –, há um elo invisível que as conecta com uma busca sagrada, que transcende os aspectos objetivos em que estão situadas.
É natural para todas as culturas humanas que os mitos e as lendas estejam ligados à compreensão e ao sentido que elas atribuem aos fenômenos da natureza e aos eventos da vida. Assim, cada civilização humana vai cristalizando através das narrativas orais o significado de suas origens e existência. Nas mitologias indígenas não é diferente. Por isso, equivoca-se quem pensa que não há profundidade humana por trás de cada uma dessas narrativas dos povos nativos. A experiência dos povos se revela através desses mitos, e dá significado aos fatos do cotidiano, por exemplo, a importância de certos alimentos, o cuidado e a manutenção da energia vital e também o respeito diante das matas, dos rios e de todos os seres da natureza, principalmente nos momentos de caça para alimentação.
As práticas culturais, a agricultura e a sacralização dos fenômenos naturais, como o trovão e os eclipses, revelam o desafio de viver a saga humana harmonizada com os diversos aspectos da natureza. No cotidiano desses povos, tudo deve ter uma finalidade clara para o indivíduo, desde uma cerimônia religiosa até o simples hábito da construção de um instrumento de trabalho. Podemos aprender, com essas narrativas, que a vida nos oferece todos os dias uma lembrança do real sentido por trás de cada atividade que fazemos. Nós temos a liberdade de escolher se entramos na mecanização de uma vida sem profundidade, ou se buscamos compreender o sentido de cada coisa que nos acontece.
Um ponto importante nesses mitos é que eles estão ligados diretamente a aspectos e elementos da natureza, palco onde se desenvolve todos os fatos e acontecimentos. Vale lembrar que a floresta é considerada pelos nativos como o seu mundo, o seu habitat, pois é dela onde obtêm tudo o que precisam para sua existência material, desde a construção de suas casas, de seus utensílios básicos, de suas ferramentas e de seus implementos de caça, até a alimentos e remédios. Por acreditar que compartilham esse habitat com outros seres e animais de muitas espécies diferentes, os nativos precisam manter uma relação harmônica, equilibrada e de muito respeito com o meio ambiente, para o bem de todos. A beleza e riqueza dessa relação de grande respeito com o meio ambiente e a coexistência com outros seres nos faz lembrar do sentimento profundo de Unidade e Pertencimento, não só entre os seres humanos, mas com toda a Natureza.
Antes de adentrarmos nas divindades indígenas, cabe introduzir um ponto de reflexão. Cada tribo tem um conjunto de deidades principais, o que torna complexo definir ou mesmo colocá-los em um só grupo. Mesmo sabendo dos perigos dessa generalização, o faremos nesse texto para torná-lo mais didático. Visto isso, é provável – para não dizer certamente – que algumas deidades não sejam citadas. No entanto, isso não significa que as esquecemos ou excluímos sua existência, mas somente que não foi possível abordar todos os deuses em um único texto.
A nossa literatura brasileira está repleta de deuses pertencentes aos panteões indígenas, principalmente dos Tupis e dos Guaranis. Quem nunca ouviu falar do Deus “Tupã”, conhecido como o Deus criador que deu origem a todas as coisas? Tupã é, sem dúvida, a principal divindade no panteão das tribos indígenas, estando presente em praticamente todos os grupos espalhados pelo Brasil. Ele não apenas criou todo o Universo, mas é uma deidade que também ajudou o ser humano a se desenvolver, ensinando aos primeiros humanos os segredos da agricultura, do artesanato e da caça na floresta. É Tupã que ensina também aos pajés a sabedoria das plantas e da natureza, e por isso é um Deus ligado à sabedoria como um todo.
Outra divindade importante dentro do panteão indígena é Guaraci, que representa o Sol doando vida e iluminando tudo o que há no mundo. Guaraci também é o Deus do dia e conta o mito indígena que essa deidade ajudou Tupã na criação do mundo emitindo vida e calor por meio do Sol. Nesta rica mitologia, encontramos também “Jaci”, a Lua, que foi criada para iluminar a noite e proteger as plantas e os animais. Jaci é a esposa de Guaraci, sendo esse o casal de astros: o Sol e a Lua. Como complementares, é muito comum dentro das mitologias associarem o Sol e a Lua ao aspecto masculino e feminino. Essa dualidade é extremamente visível na natureza, e não é por acaso que tantas civilizações representem essa ideia a partir desses dois astros. Além disso, Jaci também é tida como a guardiã da noite, sendo essa divindade responsável pela nostalgia e saudade, ambos sentimentos que tocam os caçadores e que os faz retornar para suas casas. De forma poética, percebe-se que as divindades indígenas representam muito mais do que aspectos da natureza, elas também refletem emoções e elementos mais sutis da vida humana, tornando-se assim seres complexos e ricos em simbolismo.
Outra figura muito importante deste panteão é o Deus “Anhangá”, que representa o mundo dos mortos. Anhangá é visto como uma contraparte de Tupã e por isso é facilmente associado com o “mal”. Em verdade, essa divindade protege os animais e a floresta e age com fúria sobre aqueles que desrespeitam sua lei. Por esse caráter punitivista, Anhangá sempre foi uma divindade temida pelos indígenas. Em outros mitos, Anhangá é conhecido por trazer o castigo àqueles que viveram de forma cruel, dando um aspecto moral para os vivos a partir da lógica da punição.
Todos estes símbolos, da mesma forma que as mitologias europeias e orientais, não são fantasias de povos ignorantes, mas, sim, uma linguagem especial para comunicar ideias muito elevadas, uma linguagem que não pode ser compreendida somente com a mente cartesiana.
Um Deus que desperta uma curiosidade especial é o Deus da agricultura, a divindade de nome “Sumé”. De origem misteriosa, esta divindade tem características diferentes dos outros Deuses, pois, nas narrativas tradicionais, ele é apresentado como um homem branco de cabelos e barbas brancas, e que tinha o poder de flutuar.
Ele é o responsável pelos ensinamentos das regras morais e sociais das tribos, e possui a capacidade de curar todos os doentes. É conhecido como o Deus da agricultura, porque repassou as técnicas de plantio, da transformação da mandioca em farinha, dos nomes das ervas que curam, etc. A questão que mais intriga é pensar de onde surgiu a representação de um homem branco com barbas brancas, já que os nativos não possuem barba e nem pele branca? Considerando que era um indivíduo dotado de muitos conhecimentos e poderes, há pensadores que o associam à famosa civilização de Atlântida. A polêmica é que, para muitos historiadores, Atlântida é apenas um mito e não existiu historicamente, porém, esses relatos de um homem que veio do mar trazendo sabedoria é muito comum nas culturas americanas, desde os Astecas, os Maias e até os Tupis e Guaranis. Isso é coerente com a versão que diz que na ilha de Atlântida, existia uma civilização muito avançada, que levou conhecimento para suas colônias, em vários lugares da Terra.
Contudo, é importante entender que os mitos indígenas carregam símbolos tão importantes quanto qualquer outra civilização, e o fato de não os conhecermos tanto quanto os mitos gregos, romanos e egípcios, por exemplo, é um tanto quanto triste. É apenas mais uma prova de como apagamos nossa memória cultural em detrimento de outras referências, quando, em verdade, deveríamos buscar ampliar cada vez mais nosso leque de saberes. Não se trata de escolher um ou outro, mas, sim, de conhecermos e nos aprofundar com afinco em todos os temas que sejam pertinentes à nossa evolução humana. Conhecer os mitos indígenas, nesse sentido, vai além de uma curiosidade intelectual, mas torna-se, de fato, uma busca pela conquista de nossa própria humanidade.
Sabemos, por fim, que cada povo da Terra tem seus mitos que explicam a sua origem, a forma como passou a existir. Ou seja, são os chamados mitos cosmogônicos. Em geral, são transmitidos oralmente, de geração em geração e são muito importantes na formação do indivíduo e da sociedade. É bonito perceber a história humana também sendo contada através dos povos indígenas. E como não poderia ser diferente, para esses povos, a Natureza é o palco desta saga humana. Essas narrativas míticas estão diluídas em diversas lendas e estórias regionais que vão unificando a riqueza de nosso espírito cultural, nos transformando em uma nação forte, principalmente, porque reúne em si elementos diferentes que se complementam harmoniosamente, e tem o poder de nos aproximar de nossa face humana, reforçando uma premissa interessante: somos uma única humanidade.