A Segunda Guerra Mundial foi o evento mais traumático do século XX. Até os dias atuais, não deixamos as marcas da guerra e os crimes cometidos nesses combates serem apagados da memória. Em 1940, as forças de Hitler surpreenderam o mundo com um ataque brutal à União Soviética, quebrando o pacto de não-agressão assinado em 1939 pelos dois países. A invasão iniciou com quatro milhões de soldados alemães e quase um milhão de tanques de guerra. A resposta da União Soviética foi ainda mais brutal, bloqueando o avanço das forças de Hitler, no que ficou conhecida como a Batalha de Moscou.
Na linha de frente da carnificina, lutava bravamente na defensiva um capitão do exército soviético chamado Alexander Soljenítsin. Durante a guerra, esse valoroso soldado foi condecorado duas vezes pela bravura em prol de sua nação, mas no dia em que resolveu expressar sua opinião crítica, de forma privada, em uma carta a um amigo sobre o primeiro-ministro Stalin, foi interceptado, preso e condenado por propaganda antissoviética. Soljenítsin foi levado para campos de trabalho forçado, os chamados Gulags, e sua pena inicial foi de 10 anos em regime fechado. E, após cumprida a pena, ainda foi obrigado a passar outros cinco anos em exílio.
Despojado da patente de capitão, Soljenítsin vai de uma frente de batalha para os porões mais cruéis de um dos sistemas prisionais mais desumanos da história. Nos Gulags, os prisioneiros dificilmente conseguiam sair com vida. As mortes aconteciam principalmente por falta de alimento, frio excessivo, doenças sem tratamento adequado ou mesmo por execução. As fontes mais confiáveis falam em dois milhões e setecentas mil execuções nesse período.
Mais do que um ambiente carcerário compulsório, a vida no Gulag proporcionou ao capitão soviético uma oportunidade de mergulhar em si mesmo. É evidente que não foi o ambiente hostil do Gulag o responsável por isso; pois, se assim o fosse, outros tantos sobreviventes desse modelo de prisão também teriam alcançado grandes conclusões, e não somente traumas e sequelas. O diferencial de Soljenítsin foi ter percebido que provavelmente sua vida chegaria ao fim naquele local, e isso o levou a refletir: A vida vale a pena? Ela tem sentido? Essa pergunta, motivada pela barbárie que cotidianamente vivia, o fez buscar respostas internas, e graças a isso ele pôde ressignificar grande parte de sua experiência. Assim, Soljenítsin percebeu que a vida é muito mais do que o nosso corpo físico e que o sentido de viver aquele horror estava em aprender esse ensinamento. Em seu livro, descreve esse momento de forma belíssima, apesar de sentirmos suas dores:
“É preciso ir para prisão sem sofrer pela cálida vida que deixou para trás. Nunca mais voltarei à liberdade. Não tenho mais bens. Os entes queridos morreram para mim. Meu corpo, a partir de hoje, é inútil. Só o meu espírito e a minha consciência continuam sendo caros e importantes para mim. Só vence quem renunciou a tudo!”
O trecho acima pode ser encontrado no livro “Arquipélago Gulag”, em que o autor descreve sua experiência desde a prisão até o fim da sua pena no Gulag. O que faríamos nessa situação? A maioria das pessoas chegaria à loucura, entregaria-se ao desespero e encontraria mais rapidamente o seu próprio fim. Contudo, Soljenítsin conseguiu criar uma relação interna profunda consigo mesmo dentro do Gulag, chegando a sínteses brilhantes acerca da existência e do seu propósito de vida. Para lograr tal feito, não abriu mão do mais importante: do espírito e de sua consciência, ambos aspectos atemporais na vida humana. O sofrimento que passou durante os dez anos só foi suportado por saber que dentro de si a vida continuava, cada vez mais pulsante, mesmo com as dores e o cansaço do frágil corpo que arrastava.
Os primeiros anos de Soljenítsin como prisioneiro estão descritos no livro “O Primeiro Círculo”, em que relata o tratamento cruel que sofria em vários campos para onde era levado como uma peça de uma engrenagem. Em 1950 quando estava em um desses campos, trabalhando como pedreiro, Soljenítsin descobre um câncer que vai se alastrando progressivamente, é nesse contexto que escreve o livro “Um Dia na Vida de Ivan Denisovich”. Três anos depois, estava às portas da morte. Somente em 1954, quando finalmente conseguiu se libertar dos campos de concentração, ao converter a sua pena em exílio no Cazaquistão, é que passa por um tratamento para a doença e consegue superá-la. Nesse período, pode-se dizer que ele esteve no inferno. Essa experiência é que dá origem ao livro “O Pavilhão dos Cancerosos”.
Em entrevistas, já na velhice, Soljenítsin diz que o sofrimento formou sua alma. Ele começou a perceber que quanto mais sofria, mais sua vida interior se fortalecia. As dores da prisão, da condenação injusta, da distância da família e dos amigos, do abandono naquele inferno gelado, e ainda o sofrimento de um câncer permitiram descobertas profundas sobre a Alma Humana. Essas descobertas estão nas entrelinhas dos seus livros. É interessante notar que essa experiência profunda de exercício interior não é conquistada facilmente. Como apontamos, quantos de nós pensaríamos nisso nas condições que Soljenítsin foi submetido? Normalmente, nos apegamos a emoções inferiores como a raiva, o rancor, a sensação de injustiça e impotência. O cárcere, nesse sentido, pode destruir a alma humana e nos tornar seres brutais, capazes de ir até as últimas consequências para nos vingarmos.
Poucos conseguem encontrar a nobreza e o seu próprio coração nessas situações, construindo assim um edifício interior que sirva de morada para a sua alma. Desse modo, é possível superar os traumas de uma prisão como a do Gulag, em que provavelmente o prisioneiro saia morto ou traumatizado ao ponto de não mais conseguir viver normalmente.
Como exilado, condenado a nunca mais retornar à sua pátria, Soljenítsin ensinava durante o dia em escolas públicas no Cazaquistão e à noite escrevia suas experiências dolorosas e suas descobertas filosóficas provenientes dessas vivências. Convencido de que nenhuma das linhas que tanto escrevia jamais seriam publicadas, e que se fosse pego escrevendo sobre aquilo, seria mandado de volta aos campos, escondia a sete chaves as suas obras. Somente a partir de 1962, depois de muitas transformações no regime soviético, é que seus livros começaram a ser publicados: “Um Dia na Vida de Denisovich” (1962), “O Primeiro Círculo” (1968), “O Pavilhão dos Cancerosos” (1968).
É por conta dessas publicações que em 1970 Soljenítsin ganha o Nobel de literatura. Ele não por aí, e em 1973 publica o famoso “Arquipélago Gulag” e em 1984 publica “Agosto 1914”. Somente em 1994 é que consegue retornar à sua pátria, falecendo na cidade de Moscou em 2008.
Não somente as obras, mas o próprio exemplo de vida de Soljenítsin deixa profundas lições para toda a Humanidade. Ele não apenas suportou, mas transcendeu todo o sofrimento e mostrou como o ser humano pode ser maior do que o meio em que está inserido. Podemos também observar sua vida como um exemplo nítido de nobreza perante as mais complexas experiências de nossa existência e, assim, aprendemos a encarar de frente os problemas com nossa melhor parte, com nosso espírito inquebrantável.
Encarando situações que levariam muitos à loucura ou a cultivarem um ódio dentro de si, Soljenítsin descobre como transformar tudo isso em Sabedoria, em alimento para a Alma. Em meio a tanta dor, ele toma consciência de que ele não é aquela carne que sofre, mas sim uma Alma livre; então, passa a usar todas aquelas experiências para se elevar mais e mais, e se libertar deste mundo de vilanias, tiranias e injustiças.
Esperamos que Soljenítsin nos faça refletir sobre a vida e que todos nós possamos nos inspirar com esta linda biografia, e também aprender a crescer com todas as dificuldades que a vida nos apresenta.