Você já ouviu falar na batalha do rio Yser? Esta batalha se deu no front belga, durante a Primeira Guerra Mundial. Mais precisamente, no dia 29 de outubro de 1914, quando os alemães atacaram a cidade de Nieuwpoort, ao longo dos rios Yser e Yperlee, alcançando a cidade de Ypres. A participação da Bélgica na primeira grande guerra é desenhada com contornos muito interessantes. Nela, veremos o último rei-soldado da história, o rei Alberto. Recusando uma oferta de exílio francesa, o monarca era presença certa no teatro de operações, ia pessoalmente passar a tropa em revista e tomava parte em todas as decisões de seu enfraquecido exército. As forças armadas desse país eram insuficientes e mal equipadas. Ainda que recebessem ajuda francesa e inglesa, era claro que as chances de manter esse pequeno trecho de soberania nacional eram poucas. A poderosa máquina de guerra germânica já havia tomado quase todo o país e avançava para o litoral, em direção ao país da Torre Eiffel. Para os aliados, era um perigoso movimento que iria expor duas grandes potências, a França e a Inglaterra.
Desesperado, um oficial sugeriu um último movimento para frear a incursão inimiga: inundar o próprio território. Talvez você não saiba, mas a Bélgica faz parte de um conjunto de países chamados de “Países Baixos”, assim denominados por estarem localizados abaixo do nível do mar, por isso seus territórios são marcados por charcos, pântanos e alagados. Isso obrigou aqueles povos a construírem canais e aterrarem artificialmente suas terras. Dessa forma, o plano do oficial era romper esses canais para que a água tomasse as planícies e as pesadas peças de artilharia não pudessem ser movidas, retardando o avanço alemão. O rei concordou com a estratégia, mas o problema é que eles precisavam de ajuda para executar o plano, pois os principais canais estavam perigosamente ao alcance das linhas adversárias. A missão então foi executada por dois corajosos civis, que mesmo sob fogo intenso abriram as comportas e garantiram o sucesso da missão. Para que você possa entender a importância da façanha, graças a ela, os Belgas continuaram tendo um país. Essa luta foi fundamental nesse trágico acontecimento da história mundial.
Qual dos personagens dessa história poderia ser qualificado como o mais poderoso? Talvez, o oficial que possuía a ideia salvadora? Ou o rei Alberto a quem cabia a decisão da ação? Ou quem sabe, os alemães e sua poderosa força bélica? Mas, quem poderia ter vencido a guerra sem a atuação corajosa dos dois civis que abriram as comportas? Nesta grande trama, cada um teve a mesma importância: aquela que lhe cabia.
Alberto I da Bélgica
Esta história real nos remete imediatamente ao conto do Quebrador de Pedras. Esta é uma antiga história contada pelos adeptos da filosofia Zen. Nome japonês para um ramo do Budismo Mahayana, que floresceu na China, recebeu influência do Taoísmo e expandiu-se para o Vietnã e a Coreia, além do próprio Japão. Nele conhecemos um simples quebrador de pedras, inconformado com o seu destino. Ao desejar e viver a fantasia de ter outra sorte na vida, ele vê realizado todos os seus desejos de poder, até que percebe que já era poderoso antes. E assim, ele aprende uma importante lição, a de que ninguém é mais poderoso do que aquele que cumpre o seu papel na Vida. E, por tocar neste assunto, talvez você se lembre também de olhar os lírios do campo… nem tecem… nem fiam… mas, cumprem a sua finalidade: embelezar a vida. E, quem sabe, não seja por isso que nem Salomão, em toda a sua glória, não tenha se vestido como qualquer um deles (se você não entendeu a referência, basta ler o Novo Testamento, livro de Mateus, capítulo 6, versículos 28 e 29). E não é que Salomão tenha feito algo errado, e seja inferior ao lírio, a ele coube a missão de ser rei, e isso ele cumpriu muito bem, pois foi muito sábio e justo, trazendo muita paz e prosperidade ao seu povo. Mas nem mesmo Salomão poderia ser melhor que o lírio na tarefa de ser lírio, pois não lhe coube repetir a finalidade de uma flor. Provavelmente aqui está o problema do protagonista de nosso conto, não saber qual a sua finalidade na vida.
Essa é uma ideia poderosa, a de que a Vida é Cosmos, Harmonia, Equilíbrio… E de que nessa grande teia, quase infinita, todas as coisas, as pequenas e as grandes, as vivas e as não animadas, todas sem exceção, têm sua parcela de contribuição a dar. Imaginem a situação: um sapo com crise de identidade, que decide não comer mais moscas. O que vocês acham que aconteceria com o ecossistema a que ele estivesse inserido? Desequilíbrio, desarmonia, caos. Isso é verdade para qualquer animal, escolha qualquer um, repita a experiência imaginária e comprovará. E conosco, Seres Humanos? Será que se não cumprirmos nosso papel na vida, não haverá consequências? Para continuar parafraseando o texto bíblico, se aos animais e às plantas couberam finalidades tais como essas, o que vocês acham que estaria reservado ao ser humano? Com certeza, não seria repetir os vegetais, ou os animais. Nisso, cabe lembrar o filósofo italiano Pico Della Mirandola, em seu discurso da dignidade do homem:
“E estava certo, pois não é a casca que faz da árvore o que ela é, mas sim a sua natureza entorpecida, incapaz de sentir; não é o couro que faz o jumento, mas sua alma bruta e sensual; não é o corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual.”
Aqui ele nos dá algumas pistas interessantes. O que define um ser não é a forma que ele ocupa, mas a natureza de sua existência. Assim, pessoas incapazes de sentir empatia, são insensíveis como os vegetais; Homens escravizados por suas necessidades sensuais, são animalizados e aqueles que utilizam sua mente em concordância com os grandes arquétipos da humanidade: Justiça, Bondade e Beleza, poderiam ser chamados de criaturas Celestes. E dentre os indivíduos de nossa espécie, aqueles que conquistam o verdadeiro discernimento, essa capacidade de ver a Verdade e, portanto, vivê-la, seriam considerados seres Angelicais. Então, qual é o papel reservado ao Homem? A resposta que o filósofo aponta é: Escolher! Escolher viver como um animal, ou como um anjo. “Quem não se admirará com este nosso camaleão? Ou melhor, quem haverá de se admirar mais com qualquer outra coisa?” Pergunta-nos Pico. Essa liberdade de escolha nos é exclusiva, e é esta a nossa própria natureza. Ele continua:
“Mas a que serve tudo isso? Serve para que compreendamos que, uma vez nascidos com a potencialidade de sermos o que quisermos, devemos tomar o máximo cuidado, a fim de que depois não digam que, tendo recebido a honra, não nos apercebemos e nos reduzimos a nós mesmos a bestas e estúpidos jumentos.
(…) Que uma santa ambição invada a nossa alma, de modo que, não contentes com as realidades medíocres, desejemos somente as superiores, e nos empenhemos com toda força para conquistá-las – pois podemos, se quisermos.”
E aqui está a solução para o dilema do nosso personagem no conto “O Quebrador de Pedras”. Viemos ao mundo para escolher as realidades superiores, em resumo, Sabedoria, Valores e Virtudes.
Pensem um pouquinho no nosso conto: Um alto comissário pode ser justo? Sim! Um comerciante rico pode ser bondoso? Com certeza. E um simples quebrador de pedras? Percebem? Todos esses papéis são só personagens. A nossa verdadeira vocação não é fazer coisas, mas sermos plenamente Humanos em tudo o que fizermos. E poderoso é o Homem que cumpre o seu papel no teatro da Vida. Podemos ser Justos e Bondosos independentemente de qual seja o nosso destino. Basta escolhermos.
Lembrai-vos: “Buscai primeiro o reino de Deus, e sua Justiça, e todas as coisas vos serão acrescentadas”. Em outras palavras, podemos dizer: Busque honrar o Sagrado Destino de tua experiência humana, e toda a tua vida fará sentido, não importa qual seja o papel a desempenhar. Esses são valiosos ensinamentos de grandes mestres do passado, e agora, o que cabe a nós é experimentá-los em nossas vidas, e honrá-los com a prática.