Algumas civilizações são facilmente associadas a ideias. Por exemplo: a Grécia nos lembra “Filosofia”, Roma nos lembra “Lei”, “Império”. Já quando falamos em “Antiguidade”, é comum lembrarmos da civilização Egípcia. Não é à toa que Heródoto em seu livro “Histórias” relata que a Grécia seria uma criança quando comparada ao Egito. Berço de uma cultura milenar, os egípcios também são famosos por suas construções: as pirâmides de Gizé e a Esfinge são alguns exemplos de obras que resistem ao tempo e fazem parte da nossa história há, pelo menos, três mil anos. Para além disso, quando falamos do Egito não há como não falarmos também de mistérios e da sua religião. Dona de uma rica e vasta mitologia, cheia de deuses e seres míticos, os egípcios buscaram explicar a natureza do Universo e do Homem a partir de seus mitos. Hoje falaremos de um dos seus mitos mais conhecidos: O mito de Ísis, Osíris e Hórus, e seu conflito com Set.
(Osíris e Ísis)
Conta o mito que em um tempo remoto, muito antes dos dias atuais, os deuses caminhavam sobre a terra e reinavam sobre ela. Osíris teria sido o primeiro rei deste mundo, e junto com Isis reinava sobre todo o Egito. Sob seu domínio, a vida era justa e correta, seguindo um fluxo natural de ordem e harmonia. Um dia, Set, irmão de Osíris, resolveu roubar o trono, e para isso preparou uma armadilha: criou um sarcófago com as medidas exatas de Osíris e convidou-o, junto a outros deuses, para que fizessem um jogo. Todos tentariam entrar no sarcófago, mas somente aquele que coubesse perfeitamente seria o seu dono. Após alguns deuses falharem no teste, Osíris deitou no sarcófago com sucesso. Set então fechou o sarcófago rapidamente e o cortou em catorze pedaços.
(Set)
O corpo despedaçado de Osíris é jogado no Rio Nilo, e Set passa a ser o novo rei. Ísis então sai em busca de reunir os pedaços de seu esposo, Osíris, para tentar trazê-lo de volta à vida. A deusa passa por várias provas para conseguir achar todos os pedaços, ao passo que consegue reunir treze das catorze partes: sendo que apenas o falo de Osíris não é resgatado. Apesar disso, Ísis consegue ser fecundada por Osíris e dessa união nasce Hórus, filho e herdeiro legítimo do Egito. Durante anos, Hórus é cuidado e protegido sem o conhecimento de Set, que transformava toda a ordem existente em caos. Com o Egito dividido e caído em sombras, Hórus vê que seu destino é enfrentar o seu tio e fazer com que a ordem reine mais uma vez. Quando atingiu a idade necessária, desafiou Set em uma batalha terrível que durou vários dias. Ao fim, Hórus saiu vencedor, mas poupou seu parente. Ao invés de matá-lo, Hórus designou Set a viver na barca solar de Rá, O deus Sol, e seria responsável por lutar todos os dias contra a serpente Apófis e evitar que ela engolisse o sol.
(Hórus)
Quanto a Osíris, mesmo após seu corpo ter sido recuperado por Ísis com a ajuda de Anúbis, este não pôde mais permanecer no mundo dos vivos, então foi-lhe atribuído o mundo dos mortos, para que lá reinasse e fosse responsável pelo julgamento das almas humanas. Dessa maneira, o filho reinou sobre os vivos e o pai sobre os mortos, trazendo assim a ordem, a justiça e o equilíbrio de volta à todos os planos da Natureza.
Do ponto de vista lógico (racional, literal) esse mito, assim como todos os mitos, não faz muito sentido. Entretanto, ao observar sua história com um olhar simbólico, poderemos compreender o seu real significado. O primeiro ponto de destaque nesse mito é que Ísis, Osíris e Hórus formam uma tríade, ou trindade. Em diversas religiões, essa formação tríplice pode ser observada, sempre sendo uma manifestação do divino. Logo, devemos começar a compreender que esse mito não fala apenas de um rei governando o Egito, mas de uma expressão da divindade que tutela aquela civilização.
Osíris traz consigo a ordem, a justiça, a harmonia, atributos estes próprios do divino, e ao ser aprisionado em um sarcófago, ele passa a representar o divino que antes estava evidente, visível, e agora torna-se oculto, velado. Ainda mais, é dividido e espalhado no Nilo, o que representa que o divino está também na matéria, na multiplicidade. Uma forma de entendermos esse símbolo nos remete àquela máxima de que “Deus está em tudo”. Assim, o fato do seu corpo ter sido jogado no rio Nilo pode ser traduzido para nós através da ideia de que agora o divino está no mundo e em todas as partes, porém não é mais evidente à nossa visão, é oculto. O que isso significa para nós? Que para enxergarmos o divino no mundo precisaremos treinar nossos olhos, aprender a desvelar seus véus e a revelar essa parte oculta. Agora é o desafio: aprender a olhar a vida sob um outro ponto de vista, enxergando para além do óbvio e superficial.
Visto isso, Set representa o Caos, ou seja, a multiplicidade sem percepção do divino. Ele se faz necessário no processo de ocultar o divino na matéria, mas sua maior representação será a de um destruidor, e por isso está destinado a ser superado por Hórus, pois não é o herdeiro do trono, usurpou-o. Desta forma, esse personagem nos mostra que o caos pode comandar um homem, pode fazer dele um tirano, mas sua natureza de homem não muda. Sempre poderemos seguir nossa natureza, nosso Dharma, como diriam os hindus. Set representa esses aspectos negativos da nossa personalidade, mas que são necessários para percebermos o contraste entre o divino e o instintivo.
Outro simbolismo interessante é o da fecundação de Ísis por Osíris. Como conta o mito, a única parte que a deusa não conseguiu encontrar do seu amado foi o falo, logo, a fecundação não é a partir de um ato sexual, que tem na sua natureza o instinto e o desejo. Hórus é fruto de uma concepção espiritual, um outro tipo de nascimento. Este é também um símbolo conhecido da nossa cultura cristã: Jesus é concebido de maneira espiritual, sendo Maria virgem. Hórus representa, então, um filho espiritual, é a natureza divina que desperta para a vida, é o novo Homem que nasce como resultado desse despertar espiritual.
A batalha entre Hórus e Set representa, então, a batalha humana: Quem governará, Hórus ou Set? O espírito ou o instinto? O mito nos apresenta uma solução interessante. O filho de Osíris derrota Set, ou seja, o espírito vence sobre a matéria, apresentando assim o desfecho de um devir humano: seguir nossa natureza é voltar-se ao espiritual, elevar-se até ele. E o que fazer com os instintos? Toda essa potência que na maior parte das vezes nos conduz e nos escraviza? Hórus não mata Set, assim como não devemos eliminar por completo nossos instintos, mas sim redirecioná-los. Canalizar a nossa energia para ações dignas e trabalhos honrados. Set cumpre seu verdadeiro papel na barca de Rá, lutando contra a serpente Apófis. Logo, sendo colocadas em seus justos lugares, as energias dos instintos podem ser bem aproveitadas e cumprirem com diversos papéis. Por exemplo, se deixarmos o medo nos governar, ficaremos paralisados frente ao mundo, sempre achando que tudo e todos estão contra nós. Mas o mesmo medo pode ser canalizado para agirmos com mais prudência e atenção. Ou seja, ao ser bem canalizado, transformamos os instintos em virtudes.
Portanto, o mito de Ísis, Osíris e Hórus não se trata apenas de uma história, mas guarda em si uma visão que nos possibilita enxergar a vida, o mundo e a nós mesmos de maneira diferente. Que possamos despertar esse olhar simbólico e possamos enxergar os pequenos pedaços do divino em nossas vidas.