Sabia que tem muita gente se redescobrindo na cozinha nestes tempos de quarentena? Com o fechamento de bares e restaurantes, tivemos que trocar a vida de fast food pelo bom e velho fogão. Ninguém pediu esse isolamento, mas porque não fazermos do limão uma limonada? O importante é ver a cozinha como arte, imprimir beleza ao processo, jogar sentimento, não fazer com preguiça, não ter pressa, não se dispersar no processo e buscar sentir prazer não só ao comer, mas na atividade como um todo.
Ainda que seja uma comida simples, como um pão recheado com queijo, não faça rápido, só com queijo e pão, não custa pulverizar um dente de alho ralado, uns talos de cebolinha picada, usar papel alumínio para levar ao forno, sem pressa, ouvindo música, sentindo o aroma.
Tem uma coisa que nos diferencia dos animais: a capacidade de imprimir nossa essência no que estamos fazendo, colocar a nossa alma na nossa obra, e isso é Arte. Quando cozinhamos, algo do nosso interior se expressa ali na comida, isso é intuitivo. Se cozinhamos com afeto, com harmonia, a comida vira poesia, é como compor uma música, porque não somos bichos, somos humanos e o espírito humano é assim. O filósofo Confúcio dizia que a vida em si está na cerimônia, na ação consciente e com algum sentido, pois toda a atitude que não tem um ritual é apenas mecânica ou animalesca. É necessário reverenciar as coisas, pois no nosso trato com elas é que encontramos a nós mesmos. Dessa forma, a nossa relação com os objetos não é apenas uma extensão da vida, mas sim a própria vida. Ainda que por vias nada desejáveis, a realidade está nos dando agora uma oportunidade neste momento de ressignificação, de refinar os gostos, então não desperdicemos essa dádiva.
A industrialização do alimento, as comidas rápidas, feitas numa linha de produção, ao passo que atendem à pressa do cotidiano de quem precisa trabalhar, estudar, levar os filhos na escola, pagar contas, etc., rouba de nós algo que é sagrado, que é o toque sutil do espírito humano no prato. A comida da nossa avó, ou da nossa mãe, ou até daquela secretária antiga da família, mesmo não tendo a tecnologia das grandes indústrias de alimentos tem algo que mexe com a gente, mexe com a memória afetiva. Esse algo é a presença humana, não tenha dúvidas, isso alimenta mais que o nosso corpo, alimenta nossas almas.
Ver o ato de cozinhar por esse ângulo, nos leva à descoberta da cozinha como um lugar especial, em que entramos em contato com o que há de mais profundo em nós. As tradições costumam falar de um lugar que todos temos dentro, um lugar seguro, onde mora o sublime. Às vezes, no corre-corre do dia a dia, a gente vai a muitos lugares, mas acaba nunca indo lá neste lugar interior, onde está a força dos inícios e onde estão guardados todos os nossos tesouros mais importantes. Que este momento de isolamento social, em que não podemos ir a tantos lugares físicos, possamos aproveitar para nos conduzir mais vezes até esse lugar interior.
O que fazemos no plano físico repercute muito nos planos mais sutis que existem dentro de nós. Assim, na hora de cozinhar, faça disso um caminho para dentro de si, uma via de acesso a esse lugar profundo onde mora a beleza, o encanto, a ordem, a suavidade, a serenidade, a calma e o amor. Cozinha com música, de preferência aquelas que te inspiram, que te deixam melhor. Se estiver sem opção, aqui vai uma recomendação: um jazz do Chet Baker, ou Danke Schoen, de Wayne Newton, ou alguma coisa da bossa nova. O importante é que te inspire, que te descortine um cenário agradável.
Cozinhar é um ato de amor, porque é a inclinação de um espírito humano para servir. Ainda que se cozinhe solitariamente, só para si, a arte de cozinhar nesse caso é um ato de preparar o alimento para servir ao seu próprio corpo, recarregar suas energias e lhe dar prazer, e por consequência, lhe permitir um bom funcionamento da mente. Quando se cozinha para outro, ou para outros, a lógica permanece a mesma. É bom mentalizar isso no processo, use a imaginação, pense que aquele prato que você está preparando vai servir ao corpo, às energias, à psique e à mente de outras pessoas, e nesse sentido, a sua arte levará algo de si para o corpo, as energias, a psique e a mente dos outros. O que você quer que seja transmitido nesse nível para os outros? Pense nisso! Desperte a consciência para todo esse processo e carregue isso de boas intenções e bons sentimentos.
Cozinhar é um ato humano, mágico, extraordinário, é mais do que normalmente pensamos que seja. Experimente cozinhar dessa forma e reflita!