Convivência não é nada fácil. Entender o ponto de vista do outro pode ser uma das tarefas mais difíceis dentro das relações humanas, pois acabamos encerrados em nossos próprios conceitos e desejos, o que normalmente nos faz passar por cima da vontade alheia e não pensarmos em mais ninguém a não ser em nós mesmos. Desse modo, saber se colocar no lugar do outro é uma verdadeira arte, e poucos são mestres nesse tipo especial de habilidade.
Colocar-se no lugar dos outros e enxergar a partir do ponto de vista alheio nos permitem considerar as limitações, debilidades e conquistas de outras pessoas. Muitas vezes gastamos uma grande quantidade de energia julgando, criticando e vendo apenas os defeitos que as outras pessoas carregam, sem perceber, por exemplo, as conquistas diárias que cada um de nós alcança frente às nossas debilidades. Podemos reclamar que uma pessoa não é pontual, mas se fôssemos capazes de observar a mesma pessoa há alguns anos, perceberíamos que ela era ainda mais “atrasada” do que hoje, ou seja, ela evoluiu dentro dessa debilidade.
É evidente que considerar o ponto de vista alheio é uma tarefa árdua e que exige consciência de nossa parte. Em geral, estamos voltados apenas para uma visão egoísta do mundo, ou seja, só consideramos os nossos desejos, necessidades e pouco entendemos da necessidade do nosso entorno. Os estímulos sociais não nos ajudam muito nessa tarefa, afinal, uma mentalidade do nosso tempo é a de que queremos ser servidos e jamais servir aos demais. A ideia de “servir” inclusive é vista de forma negativa, muitas vezes associada à subserviência e até mesmo a uma exploração compulsória. Assim, fugimos cada vez mais da responsabilidade de tentar ajudar o nosso entorno através das capacidades e habilidades que possuímos, mas queremos que todos ao meu redor sejam capazes de nos servir da maneira que quisermos, na hora que quisermos. Será que esse tipo de mentalidade nos levará a uma boa convivência?
Acreditamos que não. Na verdade, o que se observa é que quando colocamos nossos interesses à frente dos demais acabamos gerando brigas, desavenças e rompimentos que, infelizmente, podem ser irreversíveis. Perdemos, assim, a oportunidade de conhecer profundamente o mistério e a beleza que habita nas outras pessoas, o que só é possível observar a partir da convivência.
O primeiro passo para avançarmos na convivência é justamente buscarmos ouvir o ponto de vista do outro. Jamais deveríamos partir do pressuposto que o nosso “jeito” é o melhor, ou seja, que estamos com a razão. Ponderar, escutar e considerar todas as percepções são os passos básicos, mas que poucos estão dispostos a dar. Dentro desse processo, é importante observar os pensamentos de crítica, que são tão comuns nos dias atuais e permeiam nosso cotidiano. É preciso entender as razões pela qual o outro se comporta de modo a nos irritar, por exemplo, pois se não fizermos esse mergulho interno e descobrirmos a causa da irritação, ficaremos eternamente reclamando de algo que não está em nossa alçada. Diante de um conflito de convivência, ou até mesmo um diálogo, se soubéssemos nos reposicionar e tentar entender porque a outra parte vê daquele jeito, não só desenvolveríamos mais compaixão e ficaríamos menos egoístas, como também brigaríamos muito menos com as pessoas à nossa volta.
Pensando sobre isso, a animação de Kyra e Constantin, com o cãozinho Joy, ilustra essa realidade. Joy e seu dono partem para uma tranquila pesca até surgir uma garça que atrapalha os planos. A ave deseja o balde de minhocas, e Joy com toda sua bravura tenta defender, porém com tamanha desproporção entre os dois, o cachorro acaba sempre perdendo a batalha, e ainda leva uma bronca de seu dono, que estava tão concentrado na pesca que nem viu o que se passava.
Quantas vezes não fazemos o mesmo? Assim como o pescador, passamos um olhar rápido pelas situações sem estar verdadeiramente atentos a elas, acabamos por julgar errado as pessoas com suas condutas e já assumimos que elas estão agindo errado, quando muitas vezes elas fazem tudo pelo nosso bem. Vivemos em um mundo que precisa de respostas cada vez mais rápidas, o que interfere fortemente em nosso julgamento. Não temos tempo para pensar, considerar outros pontos de vista e assim tomar melhores decisões. Isso acontece porque a sociedade atual nos exige celeridade, e nesse ritmo nossa postura natural será buscar nossos próprios interesses, pois eles sempre estão no primeiro plano de nosso pensamento. Assim, assumimos que aqueles que não estão fazendo do nosso “modo” estão necessariamente errados.
Voltando para a animação, Joy permanece revoltado com a garça até se deparar com uma realidade que estava fora do seu campo de visão: a ave tentando alimentar seus filhotes. Toda a implicância e ousadia dela não era por ela mesma, mas para sobrevivência dos que dependiam dela. Quando o cãozinho se coloca no lugar dela, ele muda completamente a conduta. E agora ele não guarda mais o balde de minhocas, e sim distribui todas para a garça, sem nem considerar que isso poderia prejudicar a pescaria. Com a consciência tranquila, o cãozinho relaxa até ser surpreendido pela retribuição da garça. Tudo o que ela ganhou em minhocas retornou em peixes, e a pescaria do dono foi muito mais proveitosa do que o esperado.
Na nossa vida ocorre algo similar. Muitas vezes deixamos de dividir ou ajudar quem precisa por termos medo que nos falte algo. Mais uma vez, o pensamento egoísta nutre nossas ações e deixamos de ver a beleza que está por trás da cooperação. No momento em que percebemos a necessidade do outro, somos capazes de abrir mão de nossos próprios interesses e ajudar os demais. Aqui está a verdadeira convivência, que é a capacidade de viver junto e em harmonia. Assim, nada pode nos faltar, pois, ao adotar esse ponto de vista colaborativo, sempre seremos ajudados em algum momento, como no caso da garça que retribui a ajuda do cãozinho.
De modo semelhante, na vida nós podemos ser todos os personagens desta animação, o pescador desatento, o cãozinho briguento, a garça empenhada ou os filhotes necessitados. Como bem sabemos, tudo é muito dinâmico, e a vida passa sempre por constantes movimentos. Hoje podemos assumir a posição do pescador, já amanhã seremos a garça: não temos nenhuma garantia do que está por vir, por isso temos que desenvolver essa visão mais ampla do que se passa à nossa volta.
Visto isso, precisamos aprender a ver a realidade dos outros e não só a nossa. É preciso considerar as dificuldades e limitações dos que convivem conosco, considerar que nem tudo é o que aparenta ser, pois muitos passam por dificuldades ou simplesmente querem nos ajudar e acabam se atrapalhando, mas não cometem erros por maldade. Talvez, esse lembrete diminua nossos julgamentos e nossos falsos testemunhos a respeito dos outros.
Este curta, além de nos alegrar, nos lembra de lições muito importantes. Nós vivemos em um contexto social em que é disseminado o costume de julgar, ao invés de tentar ajudar e compreender. Quando ajudamos o próximo, por puro sentimento de dever, sem esperar nada em troca, sempre há ganhos próprios, seja material, seja espiritual. Afinal, a sensação de dever cumprido é um dos maiores ganhos que um ser humano pode ter.
Tendo em mente todas as reflexões apresentadas até aqui, finalizamos dizendo que é impossível sonhar com um mundo novo e melhor se não considerarmos melhorar nossas relações humanas. Para isso, virtudes como empatia, generosidade e bondade são fundamentais no processo de construção dessa nova realidade. O desafio para nós – e toda a humanidade – é passar a enxergar o outro como um parceiro, alguém que está do nosso lado na vida cotidiana, e não como um competidor, adversário ou mesmo inimigo. Urge melhorarmos nossa convivência a partir de novas formas de relação, mais humanas e com uma finalidade comum. Não deixemos, portanto, o egoísmo vencer e façamos como Joy: enxergar a necessidade das pessoas para, assim, ajudá-las.