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Senso Comum

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“De médico e de louco todo mundo tem um pouco” você já deve ter ouvido esse ditado por aí; ou então: “todo mundo é um pouco técnico de futebol, chef de cozinha, presidente da república, etc”. Esse é o jeito irônico de falarmos do senso comum, um sistema de pensamento que nasce da nossa interação com o mundo ao nosso redor e que prescinde da validação científica. Em outras palavras, são conclusões, opiniões, crenças em torno da realidade independente de terem sido provadas ou testadas cientificamente, mas que balizam nosso agir, fundamentam nossas escolhas o tempo todo, orientam nossa produção, nossa existência e sobrevivência. É o jeito como todo mundo assimila o misterioso mundo em que estamos.

Por exemplo, quando cozinhamos, lidamos com uma série de fenômenos físicos e químicos que em geral não conhecemos cientificamente, mas temos experiência suficiente para chegar a um resultado final. Não é preciso medir a temperatura do fogo para saber que a água está fervendo, sabe-se por senso comum que ao borbulhar atingiu o ponto de ebulição. Nem é preciso saber o que é aceleração centrípeta ou centrífuga para contornar uma rotatória com um veículo, administrando a velocidade sem perder o controle. Esse conjunto de conhecimentos espontâneo proveniente da experiência do cotidiano, guiado pelas necessidades é o que chamamos de “senso comum”.

Esse sistema de pensamento atua também em aspectos mais abstratos, mais sutis, como na administração da psique e da mente. Lidamos com uma série de fenômenos psíquicos e mentais a partir do senso comum. Por exemplo, sabemos, mesmo sem validação científica, que uma música bem executada, um ambiente limpo e ordenado nos faz bem; Sabemos que uma boa noite de sono ajuda a mente a produzir melhor. Não precisa descobrir isso em teses científicas, isso advém da experiência.

O que você acha desse jeito de pensar que chamamos de “senso comum”? Será que ele mais ajuda ou atrapalha? Seria possível viver em um mundo sem senso comum? Ele é o limite, ou que horizontes de conhecimentos devemos buscar, enquanto seres humanos partícipes dessa espécie única que é a humanidade?

Para aprofundarmos essas questões, vamos recorrer à filosofia clássica. Platão, que viveu há cerca de 2.400 anos, na Grécia, desenvolveu uma reflexão muito sofisticada a respeito do sistema de conhecimento humano. No tomo VII do livro A República, ele faz uma alegoria desse processo de conhecimento com uma espécie de caverna. Imagine uma sociedade de pessoas que vivem desde o nascimento amarradas no fundo de uma caverna, de sorte que só conseguem ver o que está na parede na sua frente. Passam a vida toda vendo movimentos naquela superfície diante de seus olhos, sem saber que por trás de si haviam pessoas movimentando objetos em frente a uma fogueira, e que por um mecanismo que lhes era completamente desconhecido de ondas, partículas e cores, eram projetadas sombras à sua frente, dando a falsa impressão de que seriam seres em movimento.

Entretanto, aquelas pessoas, no fundo daquela caverna, tinham alcance, potencial para entender todo esse mecanismo e ir muito além. Poderiam até chegar a sair da caverna e se deparar com o Sol, a causa de toda aquela ordem de realidade, a causa da temperatura, do tempo, das estações, do clima, etc. Então, a limitação não estava no indivíduo em si, mas na condição de prisioneiro. O que realmente às limitava era a falta de interesse em olhar para si mesmas, em olhar para os lados e dar um passo na descoberta da realidade, e depois mais um passo, e então o passo seguinte, sem se acomodar.

Nessa alegoria, Platão está falando de etapas no processo de conhecimento humano. Estar no fundo da caverna, preso, vendo apenas sombras, confundindo-as com o objeto projetado estaria relacionado ao sistema de pensamento que hoje entendemos como senso comum. Trata-se de um jeito de pensar que chega a conclusões rápidas a partir do que está diante dos olhos. Por exemplo, se observarmos todos os dias o Sol nascendo e se pondo em pontos diferentes, temos por conclusão imediata que ele está em movimento e que estamos em uma superfície fixa. Ao longo da história foram precisos muitos cálculos e muitas revoluções para descobrir que a verdade seria o inverso, a terra é que está em movimento em torno do sol. Do mesmo modo, sem uma investigação, quem seria capaz de concluir imediatamente que a lua está caindo em direção à Terra, e simultaneamente se deslocando horizontalmente?

Nesta caverna, o primeiro passo dado seria o de se reconhecer como um prisioneiro e como alguém que não conhece a Verdade. Na sequência, a exemplo do heliocentrismo e das descobertas de Newton, o segundo passo equivale na alegoria de Platão ao momento em que o cativo se liberta das correntes e consegue descobrir todo o mecanismo dentro da caverna. Mas isso ainda é dentro da caverna, esse seria o passo da ciência. Na mesma alegoria, Platão trata de um terceiro passo, para o qual usa o termo grego noésis, no sentido de tomada de consciência, é o ponto mais alto do processo. É quando o cativo consegue sair da caverna e ver o Sol, que representa a compreensão da causa de todos os fenômenos. Provavelmente algo que nós, seres humanos comuns não somos capazes de compreender, pois vai além do método científico. Seria a compreensão não só do “Como”, mas também do “Porquê” da existência.

Com essa reflexão, podemos entender o senso comum como uma etapa de um despertar de consciência. Uma etapa necessária, no entanto, é preciso buscar a sua superação, já que é uma etapa de muitas ilusões, equívocos e limitações. O grau de despertar de uma sociedade é perceptível a partir dos alcances do senso comum da mesma. Se quisermos ter uma ideia do quanto estamos avançados na jornada do conhecimento humano, olhemos para o quanto em geral entendemos de sociedade, como escolhemos nossos governantes, como lidamos com o sofrimento, como andam as nossas relações internacionais, como lidamos com a distribuição de recursos na escala planetária, como lidamos com a natureza, o que temos feito de nossas religiões, o que temos feito com nossos símbolos e o quanto realmente compreendemos sobre o sentido das nossas vidas. Essas perguntas nos levam a uma sinalização de como anda nossa trajetória evolutiva no processo de conhecimento. Não se mede o avanço de uma sociedade a partir de descobertas de um grupo diminuto, mas a partir do nível de senso comum dessa sociedade, ou seja, de como a maioria está pensando e agindo. Afinal de contas, na famosa Idade Média, também conhecida como uma era de trevas e ignorância, já existiam grandes centros de pesquisa filosófica e científica, mas isso não participava da vida da imensa maioria das pessoas, que ainda viviam na alienação, superstição e fanatismo.

O horizonte em direção ao qual devemos trilhar enquanto espécie única, é o que aponta para a causa por trás de toda a realidade, que na alegoria da caverna está representado pelo símbolo do Sol. É chegar ao entendimento do porquê de todas as coisas. Seria como entender para onde caminha a humanidade, seria conhecer o destino comum de todos os seres, seria como identificar o ponto onde deságua esse grande rio, que é a Vida, e entender onde ele nasce. Não sabemos quase nada sobre nós mesmos, não sabemos por que nascemos, nem por que vivemos, porque sofremos e porque morremos… Não fazemos idéia para onde vamos. Mapear todo o processo de reprodução humana em um laboratório não equivale a saber por que nascemos, entender tecnicamente a mecânica do corpo humano não é chegar ao sentido da Vida.

E nós, o que devemos fazer nessa caverna escura?

Antes de tudo, se você já se questiona sobre isso, é um bom sinal. Quer dizer que já está desperto e é consciente da própria ignorância. Agora, daqui para frente, precisamos encontrar a saída, e esta saída é sinalizada pela luz. Na prática, deveríamos refletir sobre quais são as experiências realmente que nos iluminam, que nos trazem luz e fazem a vida fazer sentido? Muitos sábios de todas as eras, especialmente aqueles que já saíram da caverna, sempre ensinaram que o caminho é a Virtude. Siga o caminho da Verdade, da Bondade, da Justiça, da Coragem que ele lhe levará para a Luz. Então, por que não colocar esses ensinamentos em prática e transformá-los em atos? Com certeza você verá que algo irá brilhar dentro de você.

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