O último dia 20 de março marcou o equinócio de outono. Passou despercebido, diante da atual conjuntura de medo e apreensão. É um fenômeno astronômico e astrológico dos mais interessantes. Há muito tempo que a humanidade se relaciona com ele. No Forte de Greenan, na Irlanda, nessa época, um feixe de luz atravessa bem no meio dessa construção em círculo. Em Malta, em Mnajdra, um grande monumento de pedra é iluminado pelo mesmo evento. A maior pirâmide de Gizé, foi construída de tal forma que em alguns anos específicos, a estrela Polar surge perfeitamente alinhada acima de seu vértice nesse período. Essa estrela tinha um papel fundamental naquela cultura.
O homem sempre olhou para Natureza, leu suas entrelinhas, percebeu seus sinais, deu significado as suas faces e assim compreendeu um pouco mais de si mesmo e do Universo. Desde tempos imemoriais, a usamos para prever e dar sentido à nossa própria vida. Até em nossos tempos, em que a deusa ciência governa o mundo, investigamos a Natureza, a registramos, experimentamos e tentamos domá-la.
Somos como filhos revoltados sonhando em conquistar a mãe, desposá-la, ou submetê-la. E aprender com ela, ouvir seus cochichos, ou chorar seus cascudos. Essa tem sido a saga humana. Buscar sentido para essa viagem quase infinita na nave-mãe Terra. Não conhecemos outro ser nela que possa fazer isso.
Nós, seres humanos, somos os únicos que podemos encontrar o fio de Ariadne da história. Se você não conhece essa heroína, apresento-a brevemente. Ela está presente em um mito em que o jovem Teseu vai até o labirinto do Minotauro derrotá-lo. Nesse labirinto inescapável, como sair? A jovem filha do rei Minos, apaixonada, entrega a Teseu um novelo de lã para que desenrolasse durante a empreitada e marcasse o caminho de volta. Assim, depois de ter matado o monstro, ele retornou e partiu com sua amada em direção a Atenas. Sendo assim, estamos há milênios vagando no labirinto da história, lutando com o monstro, que é o nosso lado mais violento e bestial. Às vezes, achamos o fio e nos dirigimos à saída. Às vezes a besta grita tão alto que esquecemos dele paralisados, ou fugimos ensandecidos. Mas, não nos enganemos. Só sairemos após matar o que precisa morrer. Sem isso, vagaremos como presas, ou algozes nesse labirinto infernal.
(Ariadne)
De tantas formas como esse mito pode ser interpretado, nós descrevemos apenas uma delas. Todos temos em nós mesmos um lado governado pelos instintos indignos da condição humana, um monstro, um Minotauro. Corpo de homem e cabeça de touro. Mas, há em nós ainda, um herói adormecido. Pronto para levantar sua espada e guerrear para dominar seu inimigo. Nessa etapa de nossa experiência, só uma força é capaz de nos levar à vitória completa. A força do Amor. É ele quem nos dará o caminho de ida e de volta. A motivação e a dosagem. E aqui estamos nós, buscando sentido nessa história contada há milênios. E não é essa nossa natureza? Qual o sentido então desse momento que vivemos no planeta? Guardaria alguma relação com o que acontece no céu? Poderia a Natureza nos mostrar a saída?
O Equinócio é o momento em que dia e noite têm igual duração. Poderia ser entendido como um símbolo de equilíbrio, não? Trevas e luz dividindo igualmente o céu. Mas, aparentemente hoje vivemos no Brasil uma meia-noite. Medo, incertezas, recolhimento.
Os gregos de antigamente tinham outro mito muito interessante para ilustrar as estações do ano. Deméter, a deusa da agricultura, teve uma filha com seu irmão Zeus, chamada Perséfone. Mas, a beleza da jovem atraía muitos pretendentes, todos rejeitados por sua mãe.
(Perséfone)
A filha era sua felicidade, e por isso queria sempre mantê-la por perto. Até que Hades, rei do submundo, soberano invencível da Morte, sequestra a bela jovem deusa e lhe faz esposa. A mãe, com a ajuda de um antigo pretendente, Hermes, vai ao mundo inferior resgatá-la. Porém, havia uma lei: aquele que comesse algo deste reino, dele não poderia sair. Hades consegue fazer com que Perséfone coma seis sementes de romã e assim a conquista para sempre. Deméter, a mãe da vida, chora inconsolavelmente. Em sua tristeza, tudo na Terra murcha e morre. Vendo a situação perigosa de sua esposa, Zeus interfere e um acordo é feito. A filha passará seis meses com os pais no Olimpo e seis meses com o marido como rainha do submundo. Dessa forma, quando a filha se vai, a mãe chora e a natureza toda chora. Quando ela volta, a alegria materna retorna e a natureza sorri.
Outono, inverno, primavera e verão são assim explicados. Os equinócios então são eventos de anunciação. O da primavera canta a chegada da filha amada e da expansão da vida. O de outono, avisa a partida dela e um momento de recolhimento da vida. É como se a vida se equilibrasse, para preparar-se para o período difícil que virá. Assim, nesse momento, Perséfone habita o mundo dos mortos e a Natureza se prepara para seu período mais tenebroso: o inverno. No outono, as noites começam a durar mais do que os dias. É como se o Sol precisasse se esforçar mais para nascer.
No momento em que esse texto toma corpo, Jorge Vercilo canta: “mais importante do bordado é o avesso… o mais importante em mim, é o que eu não conheço…” É a esse mistério que o homem anseia eternamente. Entender a vida pelo avesso, porque intuímos que ela não é resultado do acaso, de um caos desordenado. A vida é Cosmos, harmonia, disciplina. E não é porque não conseguimos ver claramente o fio de Ariadne que ele não exista. Até pouco tempo atrás, a internet era um sonho impossível. Bastou o amor pela verdade científica para vencer essa cegueira. Ainda hoje, essas velhas histórias ditadas pela mãe Natureza podem nos ajudar a encontrar sentido.
Vivemos uma noite escura. Talvez, escureça ainda mais. Hoje ela dura muito mais que a manhã. Hoje, o Minotauro grita nesse labirinto de medo e desesperança. Estremecemos, choramos, caímos. Mas, Perséfone não abandonou Deméter permanentemente. Ela haverá de voltar triunfante. E novamente sorriremos. O que podemos fazer até lá? Já que não pode haver plantio externo, pois a Vida está se recolhendo do mundo físico, plantemos internamente. Um pouco de amor, uma muda de coragem, uma semente de luz solar… Sim! Ele, o Sol, apenas passa menos tempo no céu, para poder passar mais tempo dentro de nossos corações. Vamos cultivá-lo. Há sempre oportunidade para isso. Já que você tem que ficar em casa, aproveite! Largue o noticiário um pouco e vá adubar os laços de fraternidade dentro da sua família; Olhe seus filhos com um pouco mais de atenção, veja como sorriem e crescem; Passe a mão no cabelo de seu companheiro(a) e sinta o frescor de ser privilegiado; Coloque um pouco de ordem na casa, como símbolo da necessidade de ordenar sua vida, e também as emoções, os pensamentos, os recursos; Beba mais água, coma melhor; Use a tecnologia em favor de sua humanidade, ligue para aqueles parentes esquecidos e lhes dê um ouvido generoso; Encha-se de coragem, se ofereça como sacrifício para manter seus entes queridos a salvo. E se fizer com todo amor, em breve, você terá forças para fazer o mesmo por idosos que precisam de ajuda, mesmo que não sejam de sua família.
Faça o sol interno brilhar mais e você verá: o fio de Ariadne sempre esteve em você! Ou melhor, ele é você! Você é a solução para dar sentido às experiências humanas. Se você se tornar mais fraterno, mais justo e mais generoso, apesar da noite externa, você é Teseu que matou o Minotauro que tentava crescer em você. Se você fizer isso, se quando o tempo de colher chegar, você for Ser Humano maduro, a crise, o recolhimento, o outono e o inverno não terão sido em vão. E quando esse trecho da eterna música que é a vida chegar ao fim, você poderá cantar com Jorge Vercilo: “o que de mim aparece… é o que dentro de mim Deus tece… é o segredo do ponto… é o rendado do tempo… é como me foi passado… o ensinamento. “