Quanto pesa um prédio de vinte andares? Um grupo de alunos do curso de Engenharia Civil da PUC do Rio desenvolveu um cálculo para chegar a uma estimativa, multiplicando vinte vezes a média de peso do metro quadrado construído pela área média de um andar, chegaram à conclusão de que um prédio assim, com vinte andares, pesa em média seis mil toneladas.
Por que estamos falando disso? Estamos tentando encontrar uma referência para imaginar a montanha de lixo que produzimos todos os dias. Sabia que em nosso país é produzida diariamente uma média de 250 mil toneladas de lixo? Leve a uma balança 42 edifícios de vinte andares, esse é o peso do lixo que produzimos em um único dia em todo o território brasileiro. Imagina isso ao longo de um ano: quinze mil trezentos e trinta edifícios de vinte andares, ou noventa e um milhões duzentos e cinquenta mil toneladas. Agora imagina em dez anos: cento e cinquenta e três mil e trezentos edifícios ou novecentos e doze milhões e quinhentas mil toneladas.
É muito lixo! Lixos industriais, hospitalares, eletrônicos, comerciais, nucleares, incontáveis tipos. Existem modalidades de materiais que levam mais de um milhão de anos para se decomporem na natureza, alguns plásticos levam quatrocentos e cinquenta anos. Mas, o que é mais grave, é que, em geral, não temos consciência de todo esse volume nem de suas consequências.
É como se tivéssemos um enorme elefante dentro do nosso banheiro e não conseguíssemos vê-lo, mesmo convivendo com o transtorno, o perigo e os resultados letais disso o tempo todo: epidemias; empobrecimento do solo; poluição atmosférica e o subsequente prejuízo na interação com os raios solares; proliferação de doenças na pele e respiratórias, entre outros. A nossa civilização está sendo literalmente esmagada pouco a pouco pelos rejeitos de sua própria produção.
O gravíssimo problema do lixo nesta contemporaneidade tem chance de se tornar, em curto espaço de tempo, talvez o maior problema de toda a sociedade humana. A solução parece cada vez mais inalcançável, as técnicas de aterramentos sanitários, aterramentos controlados, incinerações, entre outras, se mostram estéreis e desencadeadoras de outras problemáticas.
Por exemplo, o aterro sanitário, uma técnica em que o lixo é coberto e compactado com o solo previamente tratado, apesar de inibir o acesso de agentes transmissores de doenças e a subsequente proliferação de bactérias, não serve para tratar lixos hospitalares nem nucleares. E, muito embora seja uma técnica racionalmente avançada, já que drena o chorume, tratando-o e devolvendo-o à natureza, além de captar e queimar o gás metano, esses aterros, longe de ser a solução do problema, tem um tempo de vida útil limitado, fala-se em vinte anos apenas.
Já os sistemas de incineração liberam gases extremamente tóxicos, o que gera outro problema, que demanda ainda mais investimentos para o seu tratamento. Sem falar que os equipamentos utilizados sofrem desgastes muito rápidos em razão da alta temperatura, o que requer um grande investimento do Poder Público.
E pensar que essas técnicas que estamos visualizando como estéreis são uma espécie de “sonho de consumo” de muitas cidades, pois a maioria dos municípios brasileiros nem isso tem. O que é predominante no Brasil é a figura do “lixão”, que é um espaço a céu aberto em que todo o lixo coletado na cidade é levado para lá e jogado sem nenhum tratamento. Esses lugares constituem a visão do próprio “inferno”, pois à medida que o lixo vai sendo despejado, o peso das novas camadas espreme as camadas mais profundas liberando um líquido extremamente tóxico que contamina o lençol freático, tornando a água inapropriada para o consumo humano e prejudicando o solo.
Esses lugares também produzem infestações de moscas, mosquitos, ratos, baratas, etc., que são agentes transmissores de doenças. E o que é mais gritante é que comunidades humanas inteiras usam esses espaços como meio de subsistências, disputando restos de comidas com urubus e insetos de todo tipo.
A técnica, a racionalidade, as respostas objetivas das engenharias sanitárias parecem não dar conta da situação. Nessa altura, já se percebe movimentos globais em busca de uma solução que tenha raízes mais profundas. Já se começa a falar em paradigmas do homem em relação à Natureza. Se você fizer agora uma pesquisa no Google Acadêmico com as palavras “lixo” e “paradigma”, verá centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado nas áreas de antropologia, filosofia, ciências sociais, etc., discorrendo em busca de uma perspectiva que encontre uma saída para esse problema. Começa-se a perceber que a saída não é simplesmente uma questão técnica, mas filosófica, tem a ver com os mitos que desencadearam o processo da modernidade.
O problema do lixo, sem dúvida, está relacionado a forma como lidamos com a Natureza, como nos entendemos enquanto corpo social e o quanto estamos conscientes de quem somos. E essas nossas abordagens em relação à Natureza, aos sistemas sociais e a nós mesmos são decorrentes da virada filosófica moderna, do racionalismo, do desenvolvimento da técnica, da revolução científica, da ruptura com a filosofia antiga e da adoção de paradigmas relacionados ao progresso interminável. Hoje vivemos um mito que prega que a ciência, através da tecnologia, vai encontrar soluções para todos os nossos problemas, ou seja, a moral e as questões filosófica nada tem a ver com isso.
É desse nosso jeito moderno de lidar com a natureza que nasce o problema do lixo e suas afetações em todas as condições materiais de subsistência. O lixo afeta o solo, a água, o ar e o fogo (representado pelo aquecimento do planeta pelos raios solares), ou seja, tem interferência no que as tradições e a filosofia antiga chamavam de quatro elementos: terra, água, ar e fogo.
Uma das máximas da filosofia grega e que se encontra em todas as tradições conhecidas é: “conhece-te a ti mesmo”. Por que essa é uma preocupação central presente na filosofia? Por que é tão urgente e tão fundamental que o homem se conheça a si mesmo? A resposta é: porque a potência que o homem tem para se reconstruir e transmutar é a mesma para se destruir.
O autoconhecimento nos dá poder sobre nós mesmos e é preciso desenvolver esse poder de autocontrole. O problema do lixo é decorrente da falta de controle em uma escala planetária e esse descontrole advém do afastamento do homem em relação a sua própria identidade. Hoje se fala em identidades múltiplas, o homem perdeu a percepção de quem ele é, tornou-se estrangeiro de si mesmo.
Esse conhecimento de si não é um saber intelectual, tem mais a ver com um conhecimento vivencial. Tem a ver com o exercício da vida dentro do cotidiano. Como vivemos, como desenvolvemos nossa existência, nossos meios de sobrevivência, que sonho alimentamos, como lidamos com os recursos naturais. E esse sistema de vivência é o que os gregos chamavam de ética e os romanos chamavam de moral. A modernidade rompeu sutilmente com os sistemas éticos da antiguidade clássica, tomou como abordagem predominante o saber científico, fez uma opção pela técnica, desprezou a perspectiva dos sistemas morais, como o estoicismo, o pitagorismo, o platonismo e passou a viver em busca de um progresso sem fim a qualquer custo.
As medidas objetivas e racionalizadas são indispensáveis para administrar o problema, mas a solução está em uma transmutação do próprio homem. É preciso mudar o paradigma. É preciso despertar dentro do coração humano um outro olhar para a vida. É preciso sair das letras e viver o ideal humano na vida. É preciso mudar nosso jeito de subsistir, de viver, de lidar com o outro, com o poder, com o dinheiro, com a natureza e com as coisas. Somente nesse caminho de mudanças é que visualizamos esperança, e o primeiro passo é começarmos a refletir sobre o lixo que produzimos, não somente fisicamente, mas também daquelas ideias que não servem mais e precisam ser recicladas.