Você já parou para pensar sobre o que significa ser um humano? Essa é uma reflexão que quase nunca fazemos, visto que parece ser uma resposta óbvia. Podemos dizer, a rigor, que o ser humano é uma espécie de hominídeo que desenvolveu a consciência e hoje é a raça dominante do planeta Terra. Em uma análise “fria” essa perspectiva é real. Mas você se sente satisfeito com essa definição? Imaginamos que não.
Sabemos que o ser humano está além de uma definição biológica, pois nossa forma de viver e interagir com o mundo à nossa volta vai muito além de uma experiência que outro animal possui. Nossa mente nos permite conhecer os mistérios do Universo de maneira consciente, algo que nenhum outro ser deste planeta é capaz. Graças à nossa mente, somos capazes de criar arte, religião, política e ciência, características que, definitivamente, nos tornam muito mais do que apenas uma espécie animal. Assim, cabe a nós fazer o seguinte questionamento: o que nos faz, definitivamente, humanos?
O que nos separa dos demais seres conhecidos nesta vasta imensidão de nossa nave-casa? Fazendo uma rápida análise, poderemos encontrar a resposta que, de certo modo, já começamos a desenhar em nossa reflexão. Comecemos comparando os seres humanos com as pedras. Talvez seja fácil separar os humanos do reino mineral, afinal, aparentemente as pedras não se mexem e não estão vivas, de acordo com a perspectiva biológica. Assim, podemos dizer que, se assemelhamos as pedras apenas pelo fato de ambos possuírem minerais que compõem seu corpo físico e pronto, nossa semelhança termina aqui.
E com os seres do reino vegetal? De certo modo ainda percebemos uma grande diferença entre nós e as plantas, visto que apesar destas últimas serem seres vivos, o máximo que se assemelham a nós são suas características fundamentais: reprodução, preservação e movimento. Entretanto, não temos dúvida de que há um abismo que separa as plantas de nós, pois estas não são capazes de sentir emoções, de ter felicidade ou angústias. Assim, nos parece relativamente simples traçar uma fronteira entre a vida humana e a vegetal.
Mas, quando comparamos homens e animais, essa linha fica esmaecida, tênue, e não é tão fácil de perceber. Os animais, assim como os seres humanos, são seres sensíveis. Basta observarmos nossos animais de estimação e perceberemos o carinho, o afeto e todas as emoções que nós compartilhamos com eles. Ao mesmo tempo, os animais são movidos por instintos e em grande medida agem apenas sob o seu interesse, visando como ação última sua sobrevivência ou da sua espécie.
Nisso também nos assemelhamos, visto que, em grande parte do nosso tempo, tomamos decisões baseadas nesses mesmos instintos. Talvez seja por isso que é tão comum relacionarmos o ser humano a um “animal racional”, pois nossa vida em muitos momentos se resume a agir com base no instinto, que é tão similar ao dos animais.
O instinto faz com que naturalmente queiramos nos aproximar do prazer, que nos causa uma sensação de bem-estar e segurança, enquanto nos obriga a fugir da dor, que é sempre um desconforto e resulta no sofrimento. Os animais vivem esse dilema igualmente ao ser humano, pois quem de nós não desejaria viver imerso nos prazeres mais diversos e viver uma vida sem dores? Esse tipo de busca também nos aproxima dos animais. Porém, há um fator decisivo que nos separa: o ser humano tem a possibilidade de ir contra o seu instinto e tomar ações altruístas.
Podemos nos sacrificar por um desconhecido, pela busca de uma ideia e até mesmo nos colocar em perigo para entender um pouco mais dos mistérios da natureza. Esse tipo de movimento é próprio do ser humano e aí está a nossa verdadeira natureza, o que nos diferencia por completo de todos os outros seres.
Assim, somos muito mais do que seres que se movimentam com base em emoções como a alegria, a raiva ou a tristeza. Do mesmo modo, podemos superar essa relação entre o prazer e a dor, pois muitas vezes buscamos a dor e evitamos o prazer. Tudo isso, porém, pautado em uma lógica racional e uma verdadeira busca transcendental. Esse é o ser humano e sua capacidade de viver de maneira plena o sentido de sua natureza.
Um dilema, porém, nasce em nosso pensamento: quantas vezes vivemos de modo verdadeiramente humano, ou seja, contemplando e buscando se mover por ideias e não por instinto? Se observarmos nossa sociedade atual, veremos matilhas de homens e mulheres que dedicam a maior parte de suas vidas à procura do prazer e autopreservação. Por exemplo: Trabalhamos para ter dinheiro. Precisamos de dinheiro para comprar coisas. Compramos coisas para ter prazer, ou para evitar um desconforto, e muitas vezes as duas coisas. Queremos uma casa para evitar o sofrimento de uma vida sem-teto, mas também para reproduzir a brincadeira infantil em tamanho real, decorando com vários penduricalhos nossa casinha de boneca.
Por motivos muito semelhantes, o arquiteto joão-de-barro também faz sua moradia. Como podemos ver, somos em muitas situações realmente típicos membros do reino animal. Significa dizer, em resumo, que muitos de nós passamos a vida vivendo com base somente em nossos instintos, e isso não nos faz, de fato, muito superiores aos animais. Talvez seja por isso que é comum vermos tantas comparações em que o mundo dos animais, principalmente os domésticos, parece ser mais afetuoso do que nosso mundo, o dos humanos. Como podemos superar essa questão?
Se voltarmos à tradição grega poderemos encontrar uma perspectiva interessante para entendermos como superar a nossa ação pelo instinto. Dentro da filosofia grega, encontramos três dimensões para a vida humana: Nous, Psique e Soma. Esta última se relaciona com o mundo das ações, o mundo físico e dos instintos, nossa parcela animal. A primeira se refere ao nosso lado inteligível, divino, a dimensão imortal da alma humana. E no meio dessas duas, aquilo que anima o corpo, a alma, nossos pensamentos e emoções.
Se o homem elevar sua Psique até Nous, realiza seu “eu humano”. Se rebaixa até Soma, faz nascer o seu “eu animal”. Assim sendo, o homem tem uma escolha para toda a vida: viver como ser humano, ou como um animal pensante. Se escolher o segundo, viverá como descrevemos anteriormente. Mas, se voltar sua alma, sua mente, para o inteligível e imperecível em nós, poderá gerar frutos indistintamente humanos. E aqui reside a resposta à nossa primeira pergunta. O que nos faz humanos?
Os seres humanos são os únicos que roçam o divino. Só a nós cabe o benefício da contemplação da beleza! Não veremos nunca uma girafa aproveitar sua posição privilegiada para admirar as árvores e a harmonia de um crepúsculo. Só o homem pode tecer argumentos sobre as Leis da Natureza. Um macaco usa uma ferramenta, mas não escreve livros para tentar explicar o Universo. Só a mente humana pode escolher ser caridosa, humilde, boa, racional, justa, enfim, virtuosa! É isso que nos faz humanos. Não é a quantidade de contas que podemos fazer, isso as máquinas fazem melhor.
Nossa humanidade está na possibilidade de olhar para o mundo de um ponto de vista não pessoal, ou seja, de um ponto de vista de alteridade, compreendendo como tudo está unido numa mesma cadeia de causas e efeitos. Assim, conseguimos olhar para cada ser na face da Terra e ver resplandecer de dentro dele a luz de uma águia dourada, e entender que essa é a mesma luz que cintila e brilha dentro de cada um de nós.
E dessa possibilidade de sermos Um, de compreender que mesmo que haja sombras em nossas personalidades, mesmo que nossos pequenos eus escondam nosso grande e único Eu, mesmo que nossas escolhas, palavras, ações pareçam esconder a luz do Sol, que podemos afirmar que ainda há em cada ser humano a potencialidade de realizar essa transmutação e brilhar como uma estrela. Para ver isso, temos que deixar nosso próprio Sol nascer e desenvolver nessa aurora um olhar que não seja centrado somente em nós mesmos. Se conseguíssemos ver que somos todos partes de um mesmo mistério, talvez seria mais fácil compreender os outros!
Dito isso, no dia 17 de setembro, comemoramos o dia da compreensão mundial. Um dia dedicado à convivência fraterna, à concórdia e ao respeito. Essa é uma realidade difícil de conquistar. Porém, que outra batalha valeria a pena?
Como diz uma tradição tibetana, há no mundo um grande mal chamado de “Heresia da Separatividade”, anunciando que entre eu, você e as outras pessoas do mundo há um vazio, ou seja, não há nada que nos conecte. Para superar esta ilusão e alcançar uma visão que permita compreender a tudo e a todos, temos que tentar ver para além dos muros que nos separam, para além das palavras agressivas, para além das críticas maledicentes, para além dos rompantes de destempero, para além dos tipos de violência existentes. Para isso, é necessário esforço!
É um trabalho longo e difícil, é verdade, mas quando um de nós consegue algum progresso e constrói em si um pouco de sua própria humanidade, ganha o poder de inspirar a muitos! E na trilha desses que superam a grande Heresia da Separatividade, vamos recordando o que é ser “Humano”. O vídeo abaixo nos mostra um grande exemplo disto:
Observemos o caso de Agnes Furey e Leonard Scovens. Ele é um homem negro que – quando jovem, era viciado em crack – assassinou a namorada e seu filho pequeno. Ela é uma mãe e uma avó, que chora uma perda irreparável. Nada poderia unir esses dois, a não ser a humanidade que teima em nos chamar de volta para casa, que trepidava no peito de Agnes e que adormecia no de Scovens.
Nenhum outro ser na natureza é capaz de perdoar. Fala-se que no Universo não existe perdão, mas somente redenção. Nada mudará o crime cometido por Leonard, mas sem dúvida a atitude de Agnes lhe mostrou o que há de mais belo na humanidade.
Superando toda raiva, rancor e instinto de violência, essa bela mulher conseguiu mostrar o que é o verdadeiro amor pelo próximo. Por mais que pareça uma atitude rara, se estivermos conscientes de nosso papel como ser humano e imbuído de ideias que nos aproximem da Unidade, poderemos entender como Agnes foi capaz de perdoar o algoz de sua filha. A bondade, enfim, é uma lei universal e que nós podemos captá-la através do sentimento e colocá-la em prática por meio de nossas ações.
A aproximação dos dois ocorreu de forma singela: ela escreveu, ele respondeu. E de tanto ambos lerem as histórias um do outro, encontraram um ponto de encontro. Agnes encontrou uma pureza que seu nome já denunciava. Leonard encontrou um novo significado para a palavra “Amor”. Os dois se aproximaram do conceito de “Justiça”, que eles chamam adequadamente de restaurativa porque devolve o sentimento de humanidade para o centro de nossas relações.
E se essa senhora de 80 anos encontrou forças para compreender alguém com tantas sombras, e que teria todos os motivos para odiar, se mesmo assim ela encontrou razões para perdoar e ver o outro apenas como um ser humano, será que nós temos o direito de nos esconder em desculpas vãs para manter aquela mágoa estúpida?
Para finalizar, por meio do link que deixamos anteriormente, assista ao vídeo com essa história, contada pelos olhos de Leonard. Olhe nos olhos dele e veja a sua própria humanidade refletida. Quem sabe isso nos ajude a compreender o sentido de nunca desistirmos da humanidade e de sua natureza divina.