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Porta dos Fundos e a Mudança dos Valores

Em dezembro do ano passado, o grupo humorístico Porta dos Fundos, que tem um canal com milhões de inscritos no Youtube, lançou na plataforma Netflix o famigerado “A Primeira Tentação de Cristo”. No filme, os principais símbolos do cristianismo são tratados de forma considerada desrespeitosa pela maioria dos cristãos. Jesus tem um caso homossexual com Lúcifer, Maria é usuária de maconha e a todo momento as relações entre os personagens é retratada de forma vulgar e sexualizada.

Como não poderia deixar de acontecer, isso gerou uma grande polêmica que ainda não teve fim. Diversas pessoas se sentiram ofendidas; Alguns fizeram campanhas de boicote ao Netflix; Um maluco chamado Eduardo Fauzi fez um ataque (sem vítimas) com coquetéis molotov na sede da produtora Porta dos Fundos; o Centro Dom Bosco de Fé e Cultura moveu uma ação pedindo que a exibição do filme fosse suspensa; O desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, atendeu ao pedido; Dois dias depois, a decisão foi revertida pelo Ministro Dias Tofolli do Supremo Tribunal Federal.

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Essa história toda, especialmente por causa do ataque à produtora, lembrou a algumas pessoas o trágico ataque da Al-Qaeda à sede do jornal Charlie Hebdo em 2015, em resposta à uma charge feita ridicularizando a imagem do profeta Maomé. As proporções são incomparáveis, pois no ataque ao jornal francês, os terroristas assassinaram 12 pessoas e deixaram mais 11 feridos, enquanto o ataque do brasileiro não feriu nenhum ser humano. Porém, as motivações são semelhantes, tanto Fauzi quanto os terroristas responderam com violência por se sentirem profundamente ofendidos.

É claro que estas atitudes são inadmissíveis. Nenhum ser humano com o mínimo de bom senso poderia pensar que este tipo de resposta é justificada. Porém, no campo da liberdade de expressão, as discussões têm aflorado bastante. Afinal de contas, como definir o que pode ser ofendido e o que é sagrado demais para ser vulgarizado?

É muito interessante analisar a história recente e identificar como os nossos valores vão se transformando. Há alguns anos, este tipo de ridicularização com os símbolos do cristianismo seria inaceitável na visão das pessoas, e isso jamais seria transmitido em nenhum veículo de mídia relevante. Nos anos 70, tivemos o excelente filme de comédia “A Vida de Brian”, produzido pelo grupo britânico Monty Python. O filme se passa no contexto de Jerusalém, na mesma época em que Jesus Cristo viveu, porém, o personagem principal é Brian, um conterrâneo e contemporâneo do Cristo, que se mete em muitos problemas, e o filme, ao mesmo tempo que mostra as estranhezas daquela época, faz engraçadíssimas críticas às crenças que vivemos hoje em dia. Na verdade Jesus aparece poucas vezes no filme, e sempre no plano de fundo, servindo mais para dar um contexto ao telespectador do que como personagem para a trama.

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Monty Python era um grupo que sempre teve um humor muito ácido e sempre foi muito crítico da igreja e dos cristãos, mas em nenhum momento ele ofende ou ridiculariza as figuras sagradas do cristianismo. Em uma entrevista sobre o filme, eles disseram que, de início, eles realmente pensaram em fazer um filme de comédia com Jesus, porém mudaram de ideia:

“Quanto mais líamos sobre Jesus e a vida dele, ficou óbvio que não havia quase nada para ridicularizar na vida de Jesus. E por isso fomos atrás de um perdedor. Os personagens que gostamos de representar em Python são fracassados, trouxas, incapazes de uma forma ou de outra. Jesus era um homem correto e direto, falando coisas que faziam muito sentido. Então decidimos que seria um filme muito raso se fosse sobre Jesus, então trouxemos o Brian.”

Ou seja, mesmo aqueles que não acreditavam em Jesus como um ser divino, reconheciam que alguns símbolos não poderiam e não podem ser ridicularizados pela mensagem que eles representam.

Hoje em dia, ainda existe essa crença de que alguns símbolos não podem ser tocados, porém os símbolos é que estão mudando. Alguns novos símbolos sobem neste “altar”, enquanto os antigos são jogados no lixo. Se no passado se fazia piada com personagens que eram “pais de santo”, hoje isto não é bem visto pois é considerado um desrespeito a uma vertente religiosa que já é muito marginalizada. Atualmente é quase impensável se fazer humor com a homossexualidade ou a transsexualidade de alguém. Claro que nem precisamos lembrar que nossa sociedade também repudia piadas racistas, coisa que no passado era muito comum. Esta é uma mudança de valores, e não dá para dizer que isto é ruim. Afinal de contas, será que vale a pena fazer algumas pessoas sorrirem, se isso prejudicar a vida de quem já chora? Claro que a “patrulha do politicamente correto” é extremamente exagerada muitas vezes, a ponto de fugir do razoável, mas esta reflexão é muito importante.

Por outro lado, como uma forma de revanchismo, vemos até um incentivo à “destruição simbólica” das figuras do cristianismo. Em 2015, no caso do Charlie Hebdo, muitas pessoas trouxeram a reflexão sobre o conteúdo que eles produziam, e se esse tipo de ofensa a Maomé é moralmente aceitável na nossa sociedade. Acontece que, essas mesmas pessoas atacaram os cristãos que se sentiram ofendidos pelo Porta dos Fundos e pela Netflix, chamando-os de fascistas, intolerantes, homofóbicos, etc.

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Todos se lembram de Marielle Franco, parlamentar carioca, negra e homossexual que foi morta por criminosos e, com isso, se tornou um símbolo muito importante para muitas pessoas. E, independente da crença política de cada um, é importante que se tenha cuidado com a memória de uma pessoa que foi assassinada. Principalmente em respeito àqueles que a amam e ainda sofrem por isso. Acontece que, esses mesmos “defensores” da liberdade de expressão, acham que piadas com Marielle são intoleráveis. Eles argumentam que as pessoas se ofenderam com o Porta dos Fundos por causa de homofobia, pois eles não aceitam um Jesus gay. Então, será que eles aceitariam uma representação de Marielle hetero? A resposta é claro que não.

Então será que Cristo foi rebaixado e agora temos pessoas mais sagradas que ele? E a sexualidade de um pessoa se tornou mais sagrada que a própria religião?

Independente da crença de cada um, é necessário que exista uma regra que valha para todos. No fim das contas, muitos discursos cheios de hipocrisia são usados como armas políticas e nada tem a ver com liberdade de expressão, com defesa da religião ou da memória de ninguém.

Este filme do Porta dos Fundos não deve ser visto isoladamente, mas sim como um sintoma deste mal que nos atinge. Talvez nem mesmo esses humoristas percebem como o seu conteúdo foi mudando ao longo do tempo para se adequar a interesses de grupos políticos. E esses interesses, que vão moldando o “certo” e o “errado” dentro da sociedade, se expressam no que chamamos de “Politicamente Correto”. Acontece que este politicamente correto tem alterado os nossos valores e nós, nem sequer refletimos para tentar entender as mudanças dessas regras sociais e se elas são boas ou ruins.

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Cada um de nós, independente de ser direitista, esquerdista, apolítico, cristão, muçulmano, umbandista, ateu, hétero, homo… Enfim, independente daquilo que acreditamos e aceitamos como importante, ou mesmo sagrado em nossas vidas, devemos sempre olhar para uma pessoa e, antes de qualquer coisa, enxergá-la como um outro ser humano, que tem outra forma de ver o mundo e entender as coisas, porém que merece a mesma dignidade e respeito que eu quero para mim. Somente assim, poderemos nos libertar da manipulação dos grupos políticos e compreender que a maior riqueza que há no mundo, está no coração do próximo, mas só é possível acessá-lo se houver respeito com aquilo que mora dentro dele.

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